Vergonha de Steve McQueen foi a segunda colaboração do realizador inglês com Michael Fassbender, após o estrondoso
Hunger, e que deu ao actor alemão a Coppa Volpi de Veneza, a nomeação ao BAFTA, ao Globo de Ouro e a inúmeros outros prémios confirmando-o assim (se é que ainda era necessário) como um dos grandes talentos cinematográficos do momento, e que veio para ficar.
Brandon (Fassbender) tem uma boa e organizada vida profissional e um bom apartamento em Nova York. No entanto tem um enorme segredo que aos poucos o vai consumindo. Brandon é viciado em sexo e o seu único propósito diário é acordar e encontrar uma forma de alcançar o próximo orgasmo. Seja com alguém no escritório, alguém que vê passar na rua, o importante é que este seu segredo seja diariamente saciado.
Toda a sua vida e organização são abalados quando reaparece na sua vida Sissy (Carey Mulligan), a sua irmã de quem percebemos estar separado há bastante tempo e também com pouca vontade de a rever. É esta chegada que irá acabar com a aparentemente perfeita e bem organizada vida de Brandon e o lançar no espiral de decadência que aparenta não ter um fim.
Um filme com este tipo de argumento poderia facilmente cair no absurdo de se tornar num filme apenas e só sobre sexo. No entanto, estando por detrás dele alguém como Steve McQueen e na interpretação principal esse que se pode chamar seguramente de gigante da interpretação como é Michael Fassbender, nada poderia cair no absurdo ou ser banalizado. Assim, também de uma forma algo simplista poderia dizer que este filme é essencialmente sobre as necessidades básicas de cada um. Poderia ser sobre a procura de abrigo, de comer, mas aqui a necessidade é o sexo. Não o sexo sob uma perspectiva de procriação mas simplesmente o sexo pelo sexo. Não há afecto, não há intuito de procriar mas sim o sexo que algures no tempo foi procurado como fonte de prazer e que é agora uma obrigação e a forma de obter a próxima
"trip" de satisfação, tornando-se naquilo que se pretende ser o mote principal desta história... a dependência.
Tal como um drogado que procura substâncias ilícitas para alcançar o seu paraíso, ainda que momentâneo, Brandon levanta-se da cama cada manhã com o único intuito de obter mais um orgasmo. Pode ser com alguém que encontrou na rua, no metro, no bar onde vai depois do trabalho ou até mesmo no escritório onde passa os seus dias frente a um computador onde apenas procura tudo o que se relacione com sexo. Este é o seu objectivo de vida... a sua dependência.
Dependência esta que não tem qualquer tipo de limites. Todos os meios lhe servem para a satisfazer. Sejam prostitutas, engates fortuitos em bares ou discotecas gay, cibersexo, revistas pornográficas ou até a imaginação e sugestão que alguém que encontra lhe provoca. Todos os meios são válidos para a satisfazer, variando apenas a forma de o concretizar de facto, o que a torna cada vez menos secreta pelo que constatamos quando o seu computador de trabalho é levado para reparação.
É esta mesma dependência que de certa forma o proibe de ter relacionamentos significativos com outras pessoas. Tem poucas pessoas que possa considerar como amigos e mesmo esses pertencem àquele pequeno núcleo que convive em bares apenas para um potencial engate de ocasião, acabando também eles por se tornarem num veículo para satisfazer a sua dependência mesmo que apenas por breves instantes.
Em oposição a Brandon temos Sissy, a sua irmã (interpretada por Mulligan). Uma jovem mulher que ao contrário de Brandon pretende ser alvo de afecto de todos aqueles que conhece. Sissy pretende que alguém a ame, que trate dele, que lhe dê atenção, carinho e afecto. A sua necessidade de ter alguém a seu lado faz com que se relacione facilmente com as outras pessoas, acabando por apresentar tal como Brandon uma dependência que apenas difere da dele no propósito final. Enquanto ele não pretende saber o nome ou quem é a pessoa com quem se deita, Sissy pretende ter alguém a seu lado que a ame.
A relação entre os irmãos Brandon e Sissy poderá, se analisarmos, ser explicativo da sua actual condição. Percebemos que os limites e as barreiras do normal relacionamento entre ambos não existe. A exposição à nudez, os muito breves instantes em que existe algum afecto bem como alguns dos diálogos entre ambos dão a perceber que o seu passado está ensombrado. Nunca nos é revelado nenhum detalhe, afinal não é sobre isso que o filme trata, mas percebemos que acontecimentos incestuosos ou de abuso sexual enquanto menores, poderiam explicar, por exemplo, a mutilação a que Sissy se sujeita. Algo no passado está, sem qualquer margem para dúvidas, directamente ligado com estas dependências de sexo (Brandon) e de afecto (Sissy).
Estes acontecimentos passados podem ser mais facilmente identificados no comportamento de Sissy... a mutilação a que se sujeita desde muito jovem, o relacionamento que quase chega a ser incestuoso com Brandon que chega ao ponto de querer dormir com ele, a constante necessidade de uma ideia de afecto venha lá ele de onde vier revelam-nos que algures no seu passado está algo por explicar. No entanto, mesmo em Brandon existem sinais como o nunca atender ou responder aos inúmeros telefonemas da sua irmã e a sua fria relação quando se encontra na sua presença. Tal como ela diz... eles não são maus... vêm sim de um lugar mau...
Se pensarmos bem neste filme, ninguém além destes dois actores poderia ter dado vida a estas personagens. De Michael Fassbender já noutras ocasiões referi o seu enorme potencial e capacidade de encarnar as mais intensas personagens e histórias. Ecléctico e sempre intenso, quem o viu em
Hunger sabe que o seu potencial não tem limites e que com ou sem Oscar (acreditem que ele ainda irá ganhar uns quantos), o seu talento jamais poderá ser questionado. Ele é bom... Ele é MUITO BOM. Fassbender é o rosto perfeito para encarnar um Brandon atormentado. Sim, ele vive atormentado. A sua vida está longe de ser perfeita como aparentemente poderiamos pensar. Nada do que ele faça ou ninguém com quem ele esteja tem outro propósito que não satisfazer incansavelmente a sua dependência. O sexo é aqui para Fassbender o que a bebida foi para Nicolas Cage há largos anos num brilhante
Leaving Las Vegas... o veículo perfeito para a sua auto-destruíção. Aqui o sexo já não é prazer... é uma obrigação a ser satisfeita tal como o era o alcoól no referido filme para Cage. Ambos sabem o que precisam... Ambos sabem onde tê-lo... Ambos sabem que o que querem os vai destruir. A única aparente diferença é o final destas personagens nos seus respectivos filmes. Fassbender e McQueen "encontraram-se" naquela que será uma muito longa (espero) e inspiradora parceria cinematográfica.
E ninguém melhor do que Carey Mulligan para ser a sua actriz protagonista. Mulligan é o perfeito rosto inocente que procura um porto seguro. A sua vontade de ser amada, muito à semelhança do que já acontece em
Drive onde a parte deste filme se afirma novamente como uma das actrizes do momento, são francamente ternas e reveladoras de uma fragilidade imensa expressa não só pelas suas palavras mas principalmente pelas suas expressões e gestos.
McQueen volta a ter ao seu serviço Sean Bobbitt, o mesmo director de fotografia de
Hunger, que aqui recria através dos contrastes de luz e cor, dois ambientes perfeitamente distintos. Se por um lado temos o apartamento de Brandon com cores desprovidas de vida (logo sentimento) onde o branco percorre todo o espaço, por outro temos exteriores em rua ou outros espaços onde a cor predomina, demonstrando que a vida continua a percorrer todos os outros espaços onde outras pessoas existem de facto, não se limitando a viver uma vida de obrigação e dependência.
Shame, será um filme incompreendido por muitos, ignorado por outros tantos principalmente pela sua franqueza na exposição nua e crua de um assunto ainda tão tabu como o sexo (que o é), especialmente se considerarmos que por detrás dele está uma incansável busca anónima e sem qualquer tipo de sentimento. O facto de ser abordado como uma dependência, tal como se de uma droga se tratasse, coloca-o num patamar de "substância proibída" que em última análise levará aquele que o procura num estado de total de decadência e degradação. No entanto, tal como todas as dependências, também esta tem as suas tentações. Esta, por sua vez, encontra-se literalmente em todos os lugares e recantos disponível para todos aqueles que a querem. Não se esconde... oculta-se, mas está ali... sempre ali.
McQueen entrega-nos outro grande filme com duas excelente interpretações que nos fazem esperar pelo seu próximo trabalho, também ele com Fassbender em parceria com Brad Pitt,
Twelve Years a Slave. Deste
Shame só me resta dizer que é de longe um dos melhores filmes do ano.
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