Phoenix de Christian Petzold é uma longa-metragem alemã presente nesta edição do Lisbon & Estoril Film Festival que decorre até ao próximo dia 16 em salas de cinema de Lisboa, Cascais e Estoril.
Depois de no final da Segunda Guerra Mundial ter sobrevivido a Auschwitz, Nelly (Nina Hoss) é transportada para uma clínica de recuperação plástica para poder recuperar o seu rosto.
Em Berlim, e na companhia de Lene (Nina Kunzendorf), Nelly tenta descobrir Johnny (Ronald Zehrfeld), o seu marido que sabe estar ainda vivo. Quando as memórias vividas se mesclam com as de uma cidade destruída e os traumas da sua prisão se tornam evidentes através do seu comportamento, estará Nelly capaz de enfrentar o seu próprio passado?
Surpreendente pela sua pausada evolução, o argumento de
Phoenix da autoria de Petzold e Harun Farocki entrega ao espectador uma abordagem diferente e original sobre o "depois" da guerra.
Phoenix debruça-se não sobre os terrores dos campos de concentração que, ainda que abordados, deles apenas conhecemos uma ínfima parte da triste realidade que foi a da personagem interpretada por Nina Hoss, mas sim sobre o que foi a vida de
"Nelly" antes de tudo acontecer.
Dotada de uma vida bem activa na noite Berlinense,
"Nelly" era uma artista que entregava o seu corpo e alma aos êxitos musicais de então fazendo, na companhia do seu marido, as delícias daqueles que frequentavam o reputado clube em que actuava. Mas, nos tempos conturbados da década de 30 do século XX em que a comunidade judaica começara a ser perseguida,
"Nelly" viu primeiro o desaparecimento de alguns dos seus supostos amigos e de seguida a sua exclusão social daquele espaço ao qual tanto entregara. Os detalhes da consequente prisão eram - para ela - desconhecidos até que
"Lene" tem acesso aos arquivos daqueles trágicos anos e onde todas as identidades são finalmente reveladas e entre traidores, denúncias e vítimas, a sociedade Berlinense do pós-guerra perde-se entre aqueles que querem esquecer que sofreram e os que querem esquecer que colaboraram.
Se para
"Johnny" a sobrevivência deve-se a uma - então desconhecida do espectador - traição de
"Nelly", para esta a sua sobrevivência deve-se à ideia de que um dia regressaria e encontraria o marido que tanto amara. Mas um conjunto de pequenos factores parece indiciar que esta aproximação que agora se confirma - ainda que sob falsa identidade de
"Nelly" - está condenada. Factores como o duplo momento reflexivo de
"Nelly" que pára por duas vezes junto a uma linha de comboio com carruagens de transporte que o espectador facilmente identifica como aquelas que transportaram pessoas para os campos de concentração, momentos estes em que a morte passada parece continuar a pairar no ar ou ainda a vontade da dinâmica entre ela e
"Johnny" como a de um esquema que se preparam para tramar sendo ela, no entanto, a única que sempre iria beneficiar do mesmo... excepto a nível pessoal e sentimental.
A perda chega a esta nova vida de
"Nelly" também pela forma do suicídio de
"Lene" que não resiste à sobrevivência da sua amiga que de seguida se entrega nas mãos do homem que a traiu. Tal como para ela a sobrevivência a Auschwitz deve-se graças à imagem de um marido extremoso, para
"Lene" esta sobrevivência chega pela forma de uma amiga - possivelmente a única - que agora se condena. A dor da sobrevivência torna-se pesada demais, e a falta de vontade em rumar a Haifa - terra agora prometida - mantendo-se numa Berlim cheia de fantasmas recentes torna-se impossível de suportar. Mas esta morte não chega sem deixar à amiga o documento que a pode libertar confessando-lhe - do "túmulo" - toda a verdade sobre o seu passado imediato ao campo de concentração.
Mas aquilo que é eventualmente o mais marcante de
Phoenix é um grande dilema que se instala em
"Nelly". Para estar próxima do seu marido - que desconhece a sua identidade - ela assume uma personagem fictícia... ainda que sobrevivente é uma outra mulher com um outro passado e uma outra história. Supostamente desconhecendo o que ali se passa e com a plena vontade de permanecer junto a
"Johnny" ela vai lentamente cedendo aos seus caprichos de se produzir de forma a que seja totalmente idêntica à mulher que outrora teve - e que no fundo ela foi - distanciando-se da mulher sobrevivente que aparenta ser. Mas quanto esta "produção" a obriga a esquecer todo um trauma que mantém desvalorizando a sua estadia no campo de concentração da qual, aparentemente, ninguém quer saber,
"Nelly" questiona-se reflexivamente se não estará a atraiçoar não só a sua memória como a de todos aqueles que, ao contrário dela, nunca conseguiram regressar...
Sobrevivente da morte e de Auschwitz, ela revela sentir-se morta quando o marido não conheceu o seu "novo" rosto... conseguirá ela resistir a uma dupla morte omitindo esta parte do seu passado ou irá finalmente revelar-se bem como à dimensão de toda uma dor que não irá esquecer?! Viverá ou não - atraiçoará ou não - todo o trauma do Holocausto?
A resposta a estas dúvidas de
"Nelly" - e no fundo àquelas que o espectador imediatamente se coloca - chegam através daquele que será provavelmente o mais intenso e arrepiante momento de
Phoenix quando decide, uma vez mais, recuperar uma pequena parte do seu passado tido como feliz e cantar assumindo perante todos a sua verdadeira identidade.
Com uma interpretação tranquila mas avassaladoramente potente, Nina Hoss desfecha toda a acção com a única atitude capaz de retratar o seu estado de alma... Com aquele que será provavelmente o término da sua passagem por um campo de concentração do qual, na prática, parece não ter sobrevivido. A mágoa de um passado que a traiu e de um presente sem esperança colocam-na num limbo que não tem resposta ou para com o qual não existe qualquer acção possível. Terna mas de certa forma indiferente procurando a todo o momento algo ao qual se possa agarrar, Hoss exibe não só um estado psicológico como também físico debilitado e frágil prestes a ceder a qualquer instante deixando o espectador com um questão não respondida... Irá
"Nelly" sobreviver a mais esta provação renascendo das cinzas como a fénix - visto que o título permite esta dualidade - ou irá ceder a uma anunciada decadência que a impedirão, uma vez mais, de (sobre)viver?
Um intenso mas profundamente tranquilo drama,
Phoenix insere-se nesta nova onde de obras cinematográficas que nos entregam um olhar sobre o pós-Holocausto ainda por explorar onde aqueles que sobrevivem não decidem iniciar toda uma nova vida mas sim encontrarem uma qualquer redenção com os locais de onde foram obrigados a partir.