segunda-feira, 29 de abril de 2019

A Sombra Interior (2018)

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A Sombra Interior de Diego Tafarel (Brasil) é uma das curtas-metragens presentes na Competição Internacional da décima edição do FICPI - Festival Internacional de Cine de Piélagos que decorre na Cantábria, em Espanha, até ao próximo dia 4 de Maio.
No Brasil rural uma criança (Rafael Schaefer) deseja a companhia de um pai (Frederico Vittola) relativamente ausente preocupado com o trabalho no campo. Insatisfeito com o seu afastamento, a jovem criança segue o pai onde faz uma devastadora descoberta para o seu imaginário.
O argumento da autoria do próprio realizador emerge o espectador na realidade de um Brasil rural... uma sociedade patriarcal onde a imagem de um pai forte e fisicamente musculado se confunde com o exercício de uma forma de poder que é implementado na mente de todos desde o seu nascimento. A principal forma de subsistência de todas estas personagens prende-se, portanto, com essa vida de campo onde o trabalho físico de sol a sol se impõe como uma realidade presente. Tendo esta noção de ordem e estratificação social em mente, as personagens desta curta-metragem correspondem, todas elas, as papéis sociais que delas esperamos... Uma mãe dona-de-casa, um pai que coordena o trabalho da fazenda tendo ao seu encargo diversos trabalhadores e uma criança que vê neste último a sua fonte de inspiração e à semelhança da qual quer definir a sua imagem. Mas, por outro lado, o que acontece à dinâmica afectiva?
Na profunda realidade de um país que está longe de ter o impacto dinâmico e cosmopolita das grandes metrópoles como o são Rio de Janeiro ou São Paulo, ou a força política de Brasília, ali o que define a realidade de todos e cada um é sim o quão fiéis estão para os já referidos papéis sociais. Nesta perspectiva, a esperada afectividade entre o casal e destes para com o seu filho limita-se à estritamente necessária para o seu inicial desenvolvimento deixando toda a demais aprendizagem ao "sabor" daquilo que se espera de um círculo fechado, conservador e onde não há tempo para o desenvolvimento emocional de ninguém. Mas, o que acontece quando algo se esconde para lá daquilo que os olhares mais distraídos não captam? Quem serão, na realidade, estas três pessoas que se constituem como família num local que parece ter sido abandonado pelo tempo?
Por um lado encontramos uma "Mãe" (interpretada por Carina Dias), apagada por uma vida que potencialmente não a representa mas que sustenta por uma qualquer conveniência que é alheia ao espectador. Distante do marido e do filho que parece acompanhar apenas pela inevitável consequência que a vida lhe proporcionou, o distanciamento deste último resulta - talvez a médio prazo - como o espelho de uma maternidade que não desejou. O "Filho" (Schaefer) é o resultado de uma família disfuncional e na qual parece ter sido largado como o resultado de algo que teria de acontecer mas que não fora necessariamente desejado por nenhum dos seus progenitores sendo, dessa forma, tudo aquilo que eventualmente consegue dinamizar para o seu bem e revendo-se no homem adulto que espontaneamente admira como um potencial "modelo" para a vida que o espera. O "Pai" (Vittola), por sua vez, é a representação dessa já referida sociedade patriarcal onde o "Homem" é a força de trabalho, o sustento de uma família, a força moral educadora dos mais novos mas, ao mesmo tempo, são as revelações proporcionadas ao seu jovem filho - e ao espectador - que demonstram que nem tudo é tão moralizador como aparentemente se desenha nem tão pouco a vida perfeita no sertão brasileiro é representativa de um qualquer idealismo moral que se faz anunciar.
Quando a jovem criança descobre que, afinal, o seu pai mantém uma relação extra-conjugal não com outra mulher mas sim com um dos seus funcionários com o qual desaparece nas quentes tardes brasileiras e se deixa levar pelos prazeres carnais que não consegue fazer cumprir com a sua mulher - e mãe do filho -, é o jovem de Schaefer que se ressente com o mais choque da sua vida... primeiro por compreender que o distanciamento sentido em casa entre os seus progenitores mais não é do que o resultado desta falta de afectividade e cumplicidade entre ambos, depois porque se assume como o eventual resultado de uma relação de conveniência e, finalmente, porque o único modelo de masculinidade que aparentava ter numa altura em que as suas próprias hormonas dão os primeiros sinais de vida, resulta como um sentido (por si) embuste que a partir daquele exacto momento não tem qualquer resultado prático enquanto educador por (o) ter presenciado num momento de maior fragilidade física e carnal. Todos os comportamentos entre pai e filho são, a partir desse momento, o resultado de um inevitável confronto do qual ambos sairão fragilizados como que duas vítimas de uma relação agora abalada e onde o respeito e admiração se esvaíram. A tragédia que daí resulta não é só esperada como inevitável e assumidamente transformadora de uma virilidade que agora... ninguém reconhece.
Intensa e até crua pela forma como espelha a desmistificação do papel social da família numa comunidade onde esta representa o pilar moral dos membros que a compõem, A Sombra Interior é, acima de tudo isso, o rosto de um segredo inconfessável que define não só todos aqueles que o vivem como sobretudo a forma como estes encaram o tal mundo (não tão) perfeito como anteriormente o assumiam. Com duas sólidas e interpretações de Schaefer e Vittola, esta curta-metragem brasileira assume-se como o rosto de um novo cinema brasileiro capaz de contar histórias que se situam longe das metrópoles mas igualmente importantes pela forma como desconstroem velhas noções de família, sexualidade, moral e papéis sociais sempre em constante transformação.
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9 / 10
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