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Rasganço de Raquel Freire (Portugal/França) é a primeira longa-metragem da realizadora e a sua acção centra-se na vida académica de um conjunto de estudantes da Universidade de Coimbra e num desconhecido que rapta e viola algumas da suas estudantes à frente de todos sem que os seus actos lhe provoquem qualquer receio de uma captura que parece nunca acontecer.
Distinto e curioso este argumento da autoria da própria realizadora que centra toda a sua trama numa ideia de violência que se assume sob duas distintas perspectivas ao longo desta história. Por um lado, Raquel Freire exibe toda uma dinâmica de vida e convivência universitária de excessos - nem sempre admitidos - por parte do conjunto de estudantes e amigos que o espectador acompanha. Aquilo que se apresenta é o tradicional grupo de amigos eventualmente distante do seu habitat natural - não esquecer que Coimbra recebe ao longo de todo o ano lectivo uma elevada percentagem de jovens vindos de todas as partes do país -, e que ali encontram o seu clã. A ideia de pertença e de identidade de grupo que é então criada, leva-os a formar toda uma espécie de cumplicidade, respeito e dedicação invulgar deixando, por vezes, um real conhecimento sobre aqueles com quem partilham o "espaço" Cumplicidade essa que, por vezes, dá lugar a um silêncio sobre os actos de alguns dos membros do grupo que são aceites como uma realidade com a qual se tem de (con)viver e respeitar como aquela que todos, de certa forma, assimilam como sendo também a sua. Nada se questiona, tudo é permitido e o silêncio (ou omissão de compreensão) são os padrões normativos dessa dita realidade. A individualidade perde-se em favor da identidade de grupo... o primeiro sinal de uma violência normativa que anula o "eu" para o "todo" e que faz do primeiro o agente silencioso e ignorado de uma vivência estudantil que se forma na base da "cumplicidade gera amizade" tantas vezes ilusória.
Esta inicial violência psicológica origina, quase sempre, a outra que lhe está associada por contraposição... se a identidade de grupo se forma e se todos passam a ser "um"... aquele que surge de novo e que não é parte integrante do mesmo acaba por ser um elo mais fraco que todos tomam como o bode expiatório da não aceitação dessa realidade. O "novo" - normalmente o estudante que chega depois e, também ele, deslocado daquela realidade -, tem de cumprir e aceitar (também em silêncio), todo um conjunto de normas - a praxe - que lhe "conferem" a tal "pertença" a esse grupo já formado e que o transformam num instantâneo alvo de todas as frustrações e provas. Esta violência, também ela silenciada com o medo de represálias e de uma ostracização latente, permite a aceitação de todos os devaneios físicos e psicológicos que rapidamente tomam lugar e se auto-assumem como as "provas" de que o elemento novo é, também ele, parte de um sistema que forçosamente aceitou... ou estaria fora. Um por todos... todos por um... mas apenas se este aceitar aquilo que todos desejaram.
Desta realidade - talvez aqui um pouco sombria mas não deixa de, no entanto, ser a realidade mais , ou menos tácita de uma certa vida universitária sedenta de modelos e exemplos que nem sempre chegam ou se manifestam da melhor forma - que se assume sobretudo psicológica mas com diversos elementos de física, àquela que um estranho representa e que a seu tempo faz manifestar pelo elemento físico, vai um pequeno passo que o espectador facilmente identifica. Este estranho "Edgar" (interpretado por Ricardo Aibéo), é um homem cujas origens todos desconhecemos. Nada sobre o seu passado é revelado e apenas alguns traços de poligamia como forma de sobrevivência são revelados ao espectador. Sabemos que a sua influência começa pela relação que estabelece com três mulheres que lhe garantem a sua subsistência... "Ana Rita" (Ana Teresa Carvalhosa) com quem desenvolve o protótipo de uma relação sentimental, "Zita Portugal" (Isabel Ruth), a mulher mais velha que lhe confere uma esperança de estabilidade económica e financeira e finalmente "Maria dos Anjos" (Paula Marques) aquela que mais depende dele e que o próprio toma como uma forma da validação da sua própria masculinidade. Todas elas dependentes física mas sobretudo psicologicamente deste forasteiro que as consome pelo poder de influência e pela forma como colmata algumas das necessidades afectivas destas mulheres invisíveis aos olhares da maioria. Todas possui no silêncio e desconhecimento das demais ao mesmo tempo que dá corpo à sua própria violência física humilhando e violentando sexualmente todas as demais que assume como suas através da agressão e rapto. É então que se estabelece um paralelismo entre os dois momentos em questão.
Se num primeiro momento o espectador depara com toda uma questão de "vida académica" ligada a uma constante praxe que se manifesta através de uma humilhação ao elemento mais novo, é esta chegada de "Edgar" um estranho e anónimo para a vivência da cidade, que transporta para a mesma a perpetuação de uma violência física - e sexual - às jovens mulheres estudantes (e não só) que são sucessivamente levadas para o desconhecido e "tatuadas" com palavras de ordem que tudo remetem para essa mesma vida "estudantil" dificultando a identidade do violador aos olhos tanto da autoridade como dos estudantes que cedo, e muito facilmente, associam a sua identidade àquela de que professor que todos desprezam por ser o galã junto das jovens alunas... as mesmas que os demais estudantes não conseguem seduzir sem que se afirmem perante elas como potenciais predadores a quem já nem as serenatas chegam.
Rasganço é, portanto, para lá de toda uma história sobre a cerimónia última da vida universitária em Coimbra, um relato sobre a manifestação e perpetuação da violência que se assume sob diversas formas... do exercício do poder de um professor sobre as suas alunas, da vontade de prender um jovem forasteiro para garantir a sua feminilidade, da praxe, da violência física e psicológica que lhe está associada, da agressão sexual à marcação da vítima com as suas potenciais palavras de ordem, sem esquecer que também o preconceito marca presença quando se considera alguém criminoso apenas porque tem mais sucesso junto das jovens alunos do que os seus próprios colegas. A violência, enquanto exercício, está presente através desta longa-metragem e manifesta-se constantemente como uma realidade presente nas vidas de todos. Desde a sua manifestação aparentemente mais insignificante àquela que se revela transformadora das vidas de todas estas personagens que por hábito, por receio, por imprudência ou mesmo distracção são suas constantes vítimas e até mesmo perpetradores.
Com uma dinâmica própria onde é a violência que se revela como a personagem principal suplantando todos os actores - onde se destacam, além dos já referidos, Ana Brandão, Ana Moreira ou Ivo Ferreira -, Rasganço deixa uma última e pertinente questão... de entre todos, quem se destaca como o maior prevaricador? Os que se refugiam na tradição para violentar como forma de "inserção" alheia ou, por sua vez, aquele que se refugia no silêncio, nas sombras e no anonimato para agredir sexualmente? Já nesse mesmo final surge a resposta... Todos desejam secretamente alguém... E todos fazem por torná-los uma sua propriedade!
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7 / 10
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