Les Affamés de Robin Aubert é uma longa-metragem canadiana que recupere o género zombie dando-lhe todo um simbolismo facilmente aplicado aos dias que hoje vivemos.
No Quebèc rural encontramos um grupo de sobreviventes entre os quais se destaca Bonin (Marc-André Grondin), que percorre caminhos e florestas em busca daqueles que se escondem dos que ficaram afectados por uma inexplicável epidemia que os condenara a uma sobrevivência graças ao consumo de carne humana.
Num misto de filme de sobrevivência pós-apocalíptica, renascer dos mortos-vivos e drama existencial, Les Affamés é uma invulgar história de fim de mundo onde talvez nem os que sobrevivem estejam isentos de uma forma de existência diferente daquela que habitualmente conhecemos no género.
Aubert cria com o argumento de Les Affamés a tradicional história de mundo pós o seu fim sem que, no entanto, forneça qualquer indício sobre as origens de uma qualquer epidemia que lançasse os sobreviventes nesta difícil luta pela existência. Aquilo que é fornecido ao espectador são breves indícios de que esta mesma epidemia lança aqueles que são afectados num estado de voraz apetite por carne humana sem que, no entanto, os prive de uma total consciência do estado em que se encontram. Prova disso... os momentos iniciais do primeiro ataque na floresta onde uma estranha mulher parece sorrir a uma das suas vítimas antes mesmo de a atacar. Estaremos perante alguma consciencialização post-mortem? Ou simplesmente um estado de aniquilação do Homem por si próprio como uma vontade extrema de pôr um fim à destruição do planeta pelo mesmo? Não esqueçamos como factor que o possa comprovar, o facto de que estamos uma vez mais numa região interior mas... isolada do mundo exterior por um vasto manto florestal que tudo distancia e esconde a existência de "algo mais" para lá dos seus limites.
Mas regressando um pouco atrás, Les Affamés deixa no ar uma certa incerteza - para o espectador - que se confronta com uma história com larga inspiração em clássicos como Night of the Living Dead (1968), de George Romero ou 28 Days Later... (2002), de Danny Boyle onde os infectados estão, de facto, numa patamar existencial diferente da sanidade mas que, ao mesmo tempo, se perdem numa certa acção concertada de sobrevivência dessa nova existência ao atacar aqueles que ainda não fazem parte do grupo mas que, ao mesmo tempo, não parecem deixar vestígios dos seus actos... por outras palavras, não mordem os não-infectados para comer mas sim para os transformar na realidade a que (agora) pertencem. Afinal, ao longo de toda esta história... encontramos vestígios dos humanos já... devorados?! Ou, mesmo no primeiro atacado concertado na floresta, estariam todas aquelas crianças dominadas e a agir como agente sensibilizador de quem por elas passe ao refugiarem-se nas árvores como vítimas de um qualquer mal?! Nesta perspectiva, e dando credibilidade à mesma, qual o papel de uma jovem "Zoé" (Charlotte St- Martin) que surge ao grupo após este ataque na floresta, como uma jovem indefesa mas que, afinal, poderá ser algo mais do que isso dando credibilidade à possível nova existência... "humana"? A dar crédito a esta teoria e de que existe uma nova consciencialização zombie estão ainda, por exemplo, momentos como aquele em que ela é quase atacada por um zombie num túnel em que é deixada ou quando o jovem desportista já bem perto do final a socorre levando-a para novos territórios... ainda por "explorar"... perante o seu ar totalmente tranquilo face a toda uma desgraça que dizimara aqueles que a acompanhavam... Poderá ser esta a forma de se propagar um novo vírus que, afinal, sabe como preservar a sua existência?!
Existe ainda uma prova desta consciencialização quando observamos estes "infectados" a venerar objectos da sua vida "anterior"... se os electrodomésticos servem como fonte de veneração para uns e as cadeiras como símbolo de um poder para outros, esta teoria ganha forma quando a jovem "Zoé", já solitária no mundo, passa por uma outra coluna apenas composta por brinquedos provando que os seus autores serão eventualmente as inúmeras crianças daquelas terras agora perdidas.
Entre a questão de uma nova forma de consciencialização fruto da epidemia, da libertação da Humanidade dos seus bens e posses materiais à forma como o vírus de propaga ou mesmo a uma certa questão ambiental que deriva da elimação do vírus "Homem", Les Affamés constrói uma certa dinâmica de filme que consegue ser fiel ao inerente princípio do final dos tempos mantendo o nível de suspense sempre alto no que à intensidade e à tensão diz respeito constituindo-se, no final, como um dos mais recentes e notáveis filmes de género. Pausado mas intenso, contemplativo até sem nunca descaracterizar a narrativa em si, Les Affamés pode apenas "perder" por não ser uma grande super-produção de Hollywood... porque quanto a todos os demais elementos sai como um claro vencedor.
.
.
7 / 10
.