sábado, 13 de fevereiro de 2021

A Pereira da Tia Miséria (2021)

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A Pereira da Tia Miséria de Marie Brand (Portugal) é o mais recente dos telefilmes do segmento Treze produzido para a RTP que revela a história de Miséria (Elsa Valentim), uma mulher cuja única alegria são as deliciosas pêras da sua pereira sucessivamente assaltada pelas crianças da aldeia. Depois de perder todos na sua vida, Miséria acolhe um misterioso mendigo (Paulo Calatré) em casa oferecendo-lhe a sua última pêra. Em retorno, o mendigo garante-lhe que ninguém mais irá pilhar a sua árvore correndo o risco de lá ficar preso até que ela o liberte... incluindo a Morte.
Num relato sobre o Portugal de outros tempos em que a má sorte surge de muito perto aliada ao preconceito para com aqueles cuja vida parece bafejada pela tragédia, aquilo que encontramos nesta A Pereira da Tia Miséria é o conto de uma mulher que se vê subitamente presa a um sem fim de perdas físicas e emocionais que a lançam para o imaginário da personagem indesejada e isolada sobre quem todos se habituaram a olhar como a "bruxa" da comunidade. Numa história que começa como o relato de uma história de amor que, na realidade o espectador nunca chega a conhecer, a "Tia Miséria" cedo se transforma na mulher que perde... que perde o amor, o marido, inicialmente o filho para uma mulher que a desdenha e finalmente este, de forma definitiva, num acidente cuja origem é a sua tão estimada pereira.
Conformada com a sua posição marginal numa aldeia que parece nada querer com ela, "Miséria" distancia-se cada vez mais de uma realidade à qual não quer pertencer e, numa sucessão de acontecimentos que não controla, todo o mal desta realidade parecer querer bater-lhe à porta. Da tentativa de violação a um neto que não conhece, dos boatos à própria miséria, a personagem interpretada por Elsa Valentim deixa-se lentamente consumir por um desgosto que parece não ter fim. Mas, o inesperado encontro com um mendigo com o qual partilha o seu único bem precioso, a última pêra, confere-lhe o conforto e a segurança emocional que tanto esperava. Uma luz ao fundo do túnel permite-lhe preservar a integridade da sua pereira intocável para aqueles que a querem vilanizar e roubar deixando-a numa situação cada vez mais precária. Quando tudo lhe parece condenado à perdição e mesmo quando a "Morte" lhe bate à porta, é o possibilidade do seu último desejo que lhe concede a salvação. Mas... o que sucede aos demais quando a própria "Morte" fica cativa?!
É este retrato de um Portugal de outros tempos, imerso na superstição, na desconfiança, no mal dizer, no boato sendo, todos eles, fruto de uma miséria que é transversal, que encontramos neste filme repleto de pequenos espelhos de uma comunidade rural onde a religião e os bons costumes nem sempre praticados ganham forma. De um padre (Heitor Lourenço) neutro mas que cedo cede aos caprichos da multidão aos boatos gerados por uma jovem mulher (Bárbara Branco) corrompida pelo ódio para com a relação do seu marido com a sua sogra passando pelo oportunismo de um padeiro (Elmano Sancho) que vê na solidão de uma mulher a (sua) forma de satisfazer os seus caprichos carnais, encontramos de tudo num conto que dá corpo, sobretudo, ao preconceito que apenas a carência e a imaginada superioridade de uns sobre os outros pode confirmar, neste Portugal rural, de velhso costumes, de tradições bem definidas e de invejas que o tempo veio consumar.
Assumidamente um dos melhores telefilmes deste segmento, A Pereira da Tia Miséria prima ainda para lá da sua interessante, ainda que pouco explorada, história, mas sobretudo pelo ressurgimento - felizmente - de uma gigante actriz como o é Elsa Valentim. Dona de uma subtileza notável que transforma a sua "Miséria" numa mulher marcada pelo tempo e pelas circunstâncias, vê-mo-la, no entanto, como uma sobrevivente de todas as adversidades que continuamente lhe foram colocadas no caminho. Da perda emocional àquela de filiação, do desdém alheio à tentativa de humilhação física e psicológica passando pela própria passagem da morte pela sua porta, Valentim transforma a sua personagem num marco das agruras... numa "biblioteca" da perda que se reflecte no seu olhar quase sempre passivo como que confirmando a aceitação da tragédia como uma (sua) inevitabilidade. Pecando apenas pela escassa (muito escassa) duração deste telefilme que poderia facilmente ter sido um pouco maior, Elsa Valentim agarra na sua personagem conferindo-lhe uma imensa alma que, caso existissem dúvidas, seriam confirmados nos instantes finais onde compreendemos que o martírio de "Miséria" está para lá daquele que o próprio tempo poderia alguma vez colmatar.
Como referi um pouco mais atrás, este A Pereira da Tia Miséria é um dos melhores telefilmes - à data - que este segmento Treze da RTP já emitiu sendo que, no entanto, exibe um conjunto de fragilidades que o limitam nomeadamente a já mencionada curta duração que não permite a exploração de algumas das personagens secundárias importante e fundamentais para a narrativa, ou mesmo os cenários (naturais) que poderiam ter engrandecido esta atmosfera de perda ou miséria que se faz esperar deste conto deixando-o naquele limbo no qual se compreende que temos aqui uma interessante e forte história sobre o preconceito e a passagem do tempo, sobre a redenção e a perda mas que, ao mesmo tempo, se limita pela ausência de uma exploração total das suas diferentes perspectivas das personagens, dos seus destinos e sobretudo das dinâmicas que poderiam ser criadas entre si. A única certeza que temos é que a "Miséria" - aquela que é literal, a humana e a personagem - se perpetuam no destino sendo tão ou mais ilimitadas que o próprio tempo que desafiam.
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7 / 10
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