quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Bostofrio, Où le Ciel Rejoint la Terre (2018)

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Bostofrio, Où le Ciel Rejoint la Terre, de Paulo Carneiro (Portugal) é um documentários presentes na selecção oficial da vigésima-quarta edição do Caminho do Cinema Português a decorrer em Coimbra e, possivelmente, um dos filmes mais pessoais presentes em competição.
O que são as origens? Em que medida é que elas influenciam o "eu" e levantam questões sob a pertença e o lugar que esse ser pessoal ocupa no mundo? Partindo destes pressupostos, e de tantas outras questões que o realizador coloca ao longo deste documentário, o espectador acompanha-o numa viagem a Trás-os-Montes onde o mesmo tenta saber que é o avô cuja história nunca conheceu.
Divido em doze distintos mas interligados capítulos, Bostofrio, Où le Ciel Rejoint la Terre inicia com um Prólogo que nos apresenta o espaço em que tudo irá acontecer. Procuram-se as origens... um avô... as explicações para um passado desconhecido que traçou os destinos do seu próprio pai - do realizador - naquele lote de portugueses que são "filhos de pais incógnitos". Filhos de ninguém - como diria a minha própria avó nas mesmas condições apesar de outras particularidades -, e que transformaram cidadãos deste país em proto-fenómenos desconhecedores do seu passado, da sua origem, de uma figura parental e, de certa forma, da confirmação da sua concepção que mais parece, remetida para uma qualquer mensagem divina deixado na Terra algures no tempo.
A viagem de Paulo Carneiro, acidentada por vezes, de descoberta por tantas outras mas sobretudo, e quase sempre, emotiva e fragilizante, é construída graças a um conjunto de entrevistas feitas pelas gentes da terra na primeira pessoa. O realizador, tido por diversos momentos como um invasor, um elemento estranho (até mesmo "estrangeiro") nas terras onde poderá encontrar a sua própria história, deixa-se levar pelos caminhos que, não conhecendo, são também os seus. Conhece as pessoas, cruza-se com alguns rostos mais ou menos familiares e indaga sobre o que poderá ter acontecido décadas antes. Ali espera (?) encontrar não só a história dos seus antepassados mas, possivelmente, aquela qeue poderá contar como também sendo a sua... as origens da sua existência estã, de certa forma, ligada àquele terra que viu o seu pai nascer mas que, no entanto, não o confirmam como o filho... de alguém.
Se algumas das entrevistas começam de forma mais agreste e ríspida, sendo o Capítulo II um excelente exemplo quando a entrevistada não quer a sua presença por perto recorrendo a uma linguagem mais forte e áspera para o afastar do local, lentamente Carneiro aproxima-se daqueles mais dispostos - ainda que de forma algo secreta ou não fossem, todos eles, filhos da terra - a abrir-lhe as portas a propósito do passado e construindo, ele próprio, uma melhor ideia de futuro (o seu). As histórias chegam lentamente, dotadas de alguns silêncios que o espectador nunca compreende se resultam do desconhecimento do entrevistado ou se, por sua vez, da incapacidade de tocas no passado de alguém que conheceram e que podem, de certa forma, estar a quebrar a confiança. Esta componente que alguns exibem de não se quererem intrometer nas histórias das pessoas "da terra", acaba por deixar uma cada vez maior curiosidade por parte do espectador em saber um pouco mais da história desta família e, ao mesmo tempo, também sobre o que poderá reservar o próximo "capítulo".
Aos poucos o espectador compreende que existia uma relação entre o pai e o avô... que se encontravam às escondidas devido ao primeiro ser fruto de uma relação fora do casamento. Um romance proibido... uma paixão da qual ninguém na terra poderia saber... A emoção - ou emotividade - apodera-se do realizador que acaba por ser também ele uma das "personagens" frente à câmara abandonando uma talvez "esperada" posição mais neutral. No entanto, esta não é uma história qualquer... é a sua! Aos poucos chega-lhe mais informação sobre outros elementos da sua família. Pessoas que ou não conhecia ou das quais apenas teria escutado breves relatos mas que, à sua maneira, também contribuíam - ainda que de forma indirecta - para a sua compreensão sobre o seu passado e de que forma tinham estas influenciado o mesmo.
Bostofrio, Où le Ciel Rejoint la Terre marca, ao mesmo tempo - o realizador e o público - pelo registo do espaço... pela forma como o clima influencia os humores e os silêncios... as pessoas, os espaços e as histórias. Um espaço que foi também marcado pelos acontecimentos históricos de outros tempos que fizeram da terra um local esquecido, marcado por alguma miséria e dificuldades onde os espíritos livres - como era aparentemente a sua avó -, tinham dificuldade em sobreviver face ao conservadorismo não só desses tempos como também das suas gentes. Os costumes e os pensamentos - também eles moldados pelos dias que se viviam - levavam a encará-la como alguém fora do seu tempo, talvez até marcada por outras "forças" que ninguém compreendia e das quais queriam distância. A viagem, com algumas descobertas e revelações que apenas podem ser digeridas na primeira pessoa termina com o lugar de repouso para todos. Povoada de silêncios que apenas a mente de cada um pode interpretar, cruza-se o filme com o pensamento de Teixeira de Pascoaes... "Deus e o Demónio são incompatíveis em toda a parte... menos em Portugal" numa clara alusão de que vivemos todos no local onde tudo pode acontecer... mas onde pouco pode ser revelado com a clareza necessária para ser compreendido.
O documentário de Paulo Carneiro é, para lá da sua primeira longa-metragem aquela que o próprio terá como uma das suas mais emblemáticas não só pelo cunho pessoal que lhe entrega - e que refrescante que é quando temos tanto cinema que se esquece de criar uma qualquer ligação com o público em geral -, como também pela forma com que aborda uma temática tão importante e tão, também ela, silenciada como o esmagador número de cidadãos que são, aos olhos do Estado, filhos de ninguém... os filhos de pais incógnitos fazendo dos mesmos desconhecedores das suas origens, impossibilitados de as confirmar e de ter algo "tão simples" como o nome de família que tanto desejam e lhes poderia conferir um sentido de histórias, de História e sobretudo de um passado.
Sentido, emotivo, até mesmo divertido, entusiasmante e motor do despertar de toda uma curiosidade por parte do espectador que se deixa, ao mesmo tempo, deslumbrar pelas paisagens arrebatadoras de um território tão desconhecido como é o de Trás-os-Montes, Bostofrio, Où le Ciel Rejoint la Terre é de longe um dos melhores filmes desta edição do Caminhos do Cinema Português e seguramente um dos melhores documentários portugueses dos últimos anos. Aqui não temos nada incógnito... tudo está devidamente marcado e "assinado" e o espectador compreende a importância desta história para lá de uma obra cinematográfica mas também uma de cunho pessoal que se firma e assume forte pela sua mensagem quase sempre comovente.
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9 / 10
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