quinta-feira, 11 de abril de 2024

Revolução Sem Sangue (2024)


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Revolução Sem Sangue de Rui Pedro Sousa (Portugal/Espanha) é a primeira longa-metragem do realizador de Tsintty (2013), Limbo: A Small Measure of Peace (2016) e Insanium (2018) inspirada em acontecimentos reais da Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974, mais concretamente sobre as últimas horas daqueles que foram mortos às mãos da PIDE/DGS, a polícia política da ditadura.
João Arruda (Rafael Paes) é um estudante de Filosofia vindo dos Açores da Lisboa e cuja grande aspiração é a liberdade que o regime não permite. Fernando Giesteira (Lucas Dutra) é um jovem de 17 anos que trabalha num clube nocturno na capital. Fernando Reis (Diogo Fernandes) é um soldado de férias em Lisboa. António Lage (Manuel Nabais) é um dos secretários da PIDE. José Barneto (Miguel Monteiro) um activista de 38 anos e pai de quatro filhos. Todos estariam ligados pelos acontecimentos inicialmente vividos em alegria e euforia e tragicamente desaparecidos pelos últimos sinais de vitalidade daquela que foi uma terrível polícia política cuja intervenção em Portugal durante quase cinco décadas. A história da "revolução sem sangue" tráz, afinal, factos que muitos de nós desconhecemos.
No ano em que o 25 de Abril - a Revolução dos Cravos - cumpre os seus cinquenta anos, o realizador Rui Pedro Sousa estreia esta que é a sua primeira longa-metragem e o tema não poderia ser mais pertinente. Primeiro porque celebramos um dos - senão o - mais importantes factos da História Contemporânea de Portugal que terminou com uma das mais longas ditaduras fascistas da Europa nos últimos cem anos. Em segundo lugar porque conferiu ao seu povo não só a Liberdade - não fosse ela por si motivo suficientemente maior para ser celebrado - como também impôs um fim a uma guerra civil (e colonial) que durou treze anos nas então Colónia Portuguesas em África onde toda uma geração foi destruída através da sua morte física e psicológica. E finalmente pois, com o finalizar desta ditadura, Portugal encontrou o seu caminho e rumo face à Europa e à modernidade terminando portanto um isolamento que durou 48 anos.
Enquadramento histórico à parte, não obstante a sua elevada importância para o nosso conhecimento de forma geral como sobretudo para nos inserirmos enquanto espectadores na realidade que esta longa-metragem nos propõe retratar, aqui encontramos um conjunto de personagens reais ficcionadas que, desta forma, têm finalmente a sua voz escutada e a sua história contada para um público que, de forma geral, desconhece quem eram e foram. As personagens - e vou aqui referir-me a "personagens" num sentido lato pois tenho presente e bem consciente em todos os momentos que nos encontramos perante uma ficção que, no entanto, se baseia em factos verídicos - são aliciantes e envolventes desde o primeiro instante. Em cada momento em que não se cruzando conseguem preencher o ecrã dando-se assim a conhecer ao espectador, faz com que este se envolva nos seus enredos, nas suas histórias, nos seus sonhos e ambições e sobretudo na sua Humanidade para "um dia melhor" que tarda em chegar. Todos eles, sem o saber, testemunhavam os últimos instantes de um regime que findava impossibilitando-lhes a concretização de pequenos grandes desejos que esperavam ao virar de uma qualquer esquina. É, nesta medida, que o espectador se apaixona por estas pequenas histórias (cada uma delas capaz de suportar a sua própria longa-metragem) e querer saber mais e mais sobre cada um deles... independentemente de compreender que o (seu) fim estará para breve. Começando pelos mártires (que o foram) do 25 de Abril. O primeiro de todos, e que acaba por ser como um não assumido protagonista desta longa-metragem, é "João Arruda" (Rafael Paes), um jovem idealista com sonhos e ideais da tal libertas que tão intensamente descreveu como um bem maior e que por entre os sustos da ditadura e da sua polícia política e os anseios de um dia vivido em liberdade revela a sua humanidade e aspirações de um jovem de vinte anos. Com um ainda muito recente percurso em cinema, Paes demonstra com o seu "Arruda" uma sensibilidade extrema ao conseguir dar corpo e vida a este jovem idealista representando os seus desejos de liberdade através de pequenos traços e expressões corporais aos quais o seu olhar dá uma intensa vida e finalmente, quando a liberdade está à porta, deixa transparecer pela vivacidade da sua voz e da afirmação que impõe no seu percurso por uma Lisboa em transformação. Rafael Paes, jovem de idade e enquanto actor, afirma-se tranquilamente como um silencioso protagonista cujos gestos e dinamismo em Revolução Sem Sangue o transformam num rosto que (espero) veremos em muitas mais produções de destaque e dignas do seu talento.
Outra das personagens de Revolução Sem Sangue é o "Fernando Giesteira", de Lucas Dutra. O mais jovem dos mártires do 25 de Abril ao dar corpo a um jovem de 17 anos que trabalhava num clube nocturno e que, apesar da sua muito jovem idade, revelava todo um sentido de preocupação com uma eventual relação sentimental com uma colega como também para com a sua irmã grávida de um pai mais ou menos ausente a quem ele exigia a responsabilidade que não sentia do mesmo. Dutra dá corpo a um tipo de idealista diferente daquele interpretado por Paes fazendo do seu "Giesteira" um rapaz pacato com anseios de vida não diferentes dos outros mas que os manifestava de uma forma mais tranquila que preponderante. Dutra consegue captar toda a atenção para si, e para a sua personagem, no instante em que se encontra com a sua irmã "Ana" (Catarina Siqueira) no restaurante e falam sobre relacionamentos, sobre a vida, sobre a família e sobre a maternidade não sabendo, no entanto, que aquela haveria de ser a última conversa que iriam ter. Nós, espectadores, ao presenciarmos este seu instante - e que acaba também por ser nosso -, assistimos a todo um comovente momento de uma não compreendida despedida que simboliza uma forte união que nem a morte poderá separar.
Passando já ao terceiro protagonista foi o "Fernando Reis" de Diogo Fernandes que me deixou a marca mais forte de todo o filme. Qualquer um de nós facilmente associa o 25 de Abril aos militares, â Guerra Colonial, aos tanques que a cidade de Lisboa viu cruzar as suas ruas e, nesta medida, sedo a sua personagem a única que era, de facto, militar, a atenção está imediatamente virada para si. Fernandes que chega aqui à sua primeira longa-metragem cativa de imediato pela ambiguidade que a sua personagem acarreta. É militar acabado de chegar a Lisboa e cruza-se com uma mulher - "Inês" (Teresa Vieira) numa soberba interpretação de uma mulher posteriormente torturada pela PIDE - que acaba por ignorar aquando da abordagem dos inspectores da PIDE à mesma num Terreiro do Paço deserto. De militar despreocupado e com pouca vontade de ter problemas seguimo-lo para a sua casa onde vive com a mãe desavinda ou "separada" (não oficialmente pois não era permitido) de um pai pouco preocupado e descobrimos que o próprio não está junto com a mulher (ou mãe dos filhos?!) deixando-lhes apenas uma gravação da sua voz quando chega de uma noite de bebedeira com os amigos. Aos olhares da época facilmente seria apelidado como o eterno bon vivant sem responsabilidades ou preocupações de maior... aos parâmetros de hoje podemos analisar que o seu "Fernando" era um jovem homem (não esquecer que ainda estava nos 20 e poucos anos de idade), já pai e militar de carreira num período em que a qualquer momento poderia ser enviado para África onde a taxa de sobrevivência era mínima. O trauma que potencialmente poderemos atribuir à sua personagem existe, está presente e manifesta-se nestes pequenos momentos apenas deles despertando quando encontra um amigo regressado da guerra - e do qual falarei dentro de momentos -, assimilando todas as palavras que dele escuta e finalmente quando compreende que o seu destino está prestes a mudar ao presenciar em plena pessoa que a Revolução chegou e que a sua vida acabara de mudar. Diogo Fernandes tem, entre estes três protagonistas, aquele que considero ser o desempenho mais transformador, mais subtilmente marcado pelas "curvas" da vida, pela junção de um passado e um presente e até mesmo aquele em que os momentos históricos vividos, ou porvir, ganham uma mais sentida notoriedade fazendo dele um mártir silencioso. Alguém que compreende de facto que a sua vida não tem sido boa, que testemunha o momento em que tudo vai mudar e pode ser para melhor mas que, pela fatalidade dos acontecimentos, vê o seu destino interrompido em nome da Liberdade. Dele destaco dois momentos; o primeiro quando fala "para a posteridade" - os seus filhos - com uma emotiva esperança de que ele possa "estar lá" sempre que eles precisarem. O espectador sente também aqui uma trágica despedida entre ele e os seus filhos... entre ele e o futuro... entre ele e esse tal "porvir" que ninguém saberia o que seria. Emotividade essa, vivida por ele em silêncio quando reencontra "Tomás", o "camarada" acabado de chegar de África e que tanto física como sobretudo emocionalmente revela os traumas de uma guerra desumana - não o serão todas?! - que lhe deixou as suas marcas. É através da forte interpretação do "Tomás" de João Bettencourt que Fernandes revela um segundo grande momento na sua composição enquanto todo um silencioso desespero se apodera das suas expressões conferindo-lhe de imediato um desejo de viver, de sentir e de experimentar o que os seus "últimos" momentos de liberdade lhe pudessem facultar na companhia dos amigos. Dutra, Fernandes e Paes compõem assim um trio forte e dinâmico que apesar de não se cruzar muito (ou não nos momentos do seu desenvolvimento enquanto personagem) ao longo da acção desta longa-metragem, conseguem complementar e centralizar o drama e a emotividade desta história e, com uma notória harmonia, estabelecem todo o centro dinâmico e dramático de Revolução Sem Sangue. Existem, claro, outras personagens de relevo nesta longa-metragem. A já mencionada "Inês" (Teresa Vieira) como uma mulher brutalmente torturada pela PIDE e que assume também um destaque nos fatídicos acontecimentos não sem antes de testemunharmos alguns duros instantes do que acontecera por detrás das paredes do edifício da António Maria Cardoso, o idealista e revolucionário "Nelson" (João Arrais) melhor amigo de "Arruda" que assiste tanto â sua morte como ao despertar da liberdade que não foi permitido a todos, o ideologicamente conflituoso "Lage" (Manuel Nabais) como secretário da PIDE que revela aos poucos estar incapaz de continuar aquele trabalho e assistir a tudo o que decorre nas salas escondidas daquele edifício desejando, nos instantes finais, que tudo termine perante um regime que acaba de desabar e finalmente a brutalmente intensa torturadora "Leninha" (São José Correia) que tanto inicialmente parece esconder um ar maternal e característico da época mas que rapidamente se revela como uma brutal e insana mulher capaz das mais atrozes humilhações físicas e psicológicas e incapaz de sentir qualquer tipo de empatia perante os demais que, para ela, nem humanos eram. Brutalmente honesto nas emoções que pretende passar ao espectador, Revolução Sem Sangue capta alguns dos melhores momentos do sentimento que penso - enquanto curioso da História Contemporânea de Portugal - serem os experienciados por aqueles que viveram esse tal "antigamente", conferindo-nos não só esse tal olhar de época como principalmente um que é visto por um jovem realizador filho dessa liberdade de Abril, incapaz de esquecer os que foram esquecidos pelo despertar da Liberdade e agora recuperados no exacto momento em que a mesma cumpre cinquenta anos. Abril cumpre-se. Lentamente por vezes, mas cumpre-se. É cumprido não esquecendo a História. Não esquecendo factos. Não esquecendo lugares mas, sobretudo, nunca esquecendo os nomes. Os nomes dos que viveram mas também os nomes daqueles que morreram vítimas da ditadura mas com a certeza de que assistiram ao nascimento da Liberdade. Símbolo máximo dessa Liberdade é a capacidade que então a todos foi conferida de poder dizer NÃO. Não à ditadura. Não à tortura. Não à guerra. Não ao fascismo. Um NÃO sem justificações... sem motivos... sem porquês. Um NÃO que existe simplesmente porque todos conseguiram e puderam passar a existir. "Eles não sabem nem sonham... Que o sonho comanda a vida...", assim ditava o final desta longa-metragem pela letra da Pedra Filosofal cantada por Manuel Freire e agora pela voz de Paloma del Pillar (também actriz na longa-metragem) enquanto assistimos aos familiares dos que a longa retrata aqui representados uma última vez pelos actores que lhes deram vida... Não souberam, mas imaginaram. Que a imaginação também comandou o sonho e este a vida. A vida do tal porvir. Do desejado. Da capacidade de decidir. De fazer. De negar. De impôr. De saber. De poder fazer esta longa-metragem tão importante, tão importante, especialmente nos dias que hoje perigosamente vivemos e onde assistimos novamente à privação dessa mesma Liberdade e Direitos por tantos cantos do mundo. Mas sobretudo, e sobretudo, de poder Viver.
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8 / 10
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