sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Vangelo (2016)

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Vangelo de Pippo Delbono é um documentário em formato de longa-metragem de co-produção italiana, suíça, belga e francesa presente na Competição Internacional do DocLisboa - Festival Internacional de Cinema que decorre em Lisboa até ao próximo dia 30 de Outubro.
O realizador Pippo Delbono abre este documentário com uma breve reflexão sobre o seu momento emocional. Com um diagnóstico de HIV recentemente divulgado e a morte da sua mãe com quem - deduz o espectador - tinha uma grande cumplicidade, Delbono questiona o seu lugar no mundo e o que poderá fazer para encontrar um núcleo no qual se possa enquadrar. No entanto, as aparentes boas intenções de firmar - e filmar - algo com um conteúdo histórico e sociológico importante iriam terminar muito rapidamente à medida que Vangelo se "abre" e revela a sua verdadeira mensagem... Por onde começar?!..
Delbono "arranca" com uma importante - pela negativa - frase quando revela que o único local onde poderá sentir-se bem na sua comiseração será ao "lado" daqueles que (tal como ele?!) sofrem e vivem situações desesperadas. É um facto, a perda de um parente próximo como um progenitor ou até mesmo a confirmação de padecer de uma fragilidade a nível de saúde podem distorcer a compreensão do mundo tal como ele é e equiparar - por baixo - todos os demais problemas do mundo classificando "o nosso" como o pior de todos eles. Mas, questiono-me, até que ponto isto se torna verdade quando se utiliza a débil condição alheia para um qualquer regozijo pessoal manobrando a infelicidade para um qualquer prazer pessoal?! Vejamos os exemplos...
Em primeiro lugar temos o realizador "martirizado" numa penosa viagem até um centro de acolhimento de refugiados - aqueles inúmeros e largos milhares que assolam a costa Europeia nos últimos anos e que só recentemente são falados - com os quais se cruza num registo de desfile de moda junto a um milheiral... Pretensiosamente dispersos pelo referido campo - qual camuflado da tropa - Delbono filma-os como que os seus modelos recentemente adquiridos - não utilizarei contratados - para, ao som de uma respiração ofegante e francamente incomodativa - questioná-los e expô-los ao "mundo". "Come ti chiami?""What's your name?" são as perguntas da praxe como se todos eles tivessem obrigatoriamente de dominar as referidas línguas e satisfazer os caprichos de um italiano (in)satisfeito com o seu quotidiano. Como meros manequins - ou melhor bonecos - o espectador percebe os momentos inconvenientes, incómodos e até mesmo despropositados criados pelo realizador junto deste grupo de homens que parecem querer transmitir uma mensagem - a sua - sem que nunca esta seja desejada. Assumidamente, para ver um desfile de moda... teria escolhido outro "canal"...
Como se isto já de si não fosse um início pouco promissor, Delbono presenteia o espectador com mais um espectáculo decadente e até imoral - digo-o eu que não sou um católico praticante - ao tentar recriar a Paixão de Cristo e demais momentos da vida de Jesus - Última Ceia incluída - com um conjunto de homens que sabemos confessar a religião islâmica. Que reconhecem Jesus como um Messias já o sabemos... mas daí a relevarem a história do dito mundo ocidental como uma certeza ou conferirem-lhe a importância que por cá se dá... é uma história completamente diferente. Como os momentos, arrisco dizer, péssimos não terminam eis que Delbono parece desenvolver uma estranha obsessão por um dos "seus" homens que tragicamente começa a observar como o "Jesus" lá do grupo. Por dois momentos assistimos a uma adoração da (sua) câmara para com este homem que repentinamente começa - o realizador - a despir e vestir com um manto... qual Santo Sudário!!!, e se este momento por si não fosse já suficientemente incómodo, Delbono tinha de o abrilhantar com a sua persistente respiração ofegante naquilo que facilmente qualquer espectador poderia considerar um momento masturbatório (qual pornografia light) - não, não estou a exagerar - e este documentário que já havia perdido toda a sua mensagem simbólica ganha contornos não só assustadores como ofensivos - já para não mencionar as referências sublimares a um conjunto de homens que... como não sabem a tradição cristã serão, certamente, meros selvagens que a civilização ocidental agora quer cristianizar.
Andar sobre a água não sabem... que também não conhecem os nomes dos apóstolos é um facto normal, agora que seja necessário levar estes homens a recriar a prisão dos ditos e transformá-los em meros hereges aprisionados para se manterem fora de uma sociedade "normalizada" é transformar Vangelo num circo pouco cristão ou, aliás, pouco humano.
Quando tudo está perdido num misto de estupefacção e incredulidade, Delbono resolve dar o ar de graça daquele que deveria ser o verdadeiro propósito deste documentário entregando ao espectador o relato de um dos "seus" refugiados a bordo de um pequeno barco que o mesmo revela ser semelhante a um daqueles em que viajou e no qual viu desaparecer um dos seus amigos. Se este breve - muito breve - momento foi único a criar no espectador uma empatia para com o seu sofrimento, o realizador cedo resolve recriar mais uma alarvidade e imoralidade ao retirar a identidade destes homens que, numa festa regional, deixam de ter o seu nome sendo baptizados com os nomes dos apóstolos... Pedro, Paulo, Lucas, Mateus e até um Judas que é rapidamente ridicularizado em público... questiono-me se estes homens perceberam a real dimensão desta exposição ou se, por sua vez, não foram mais que meros joguetes na satisfação dos caprichos de um homem de meia idade com dinheiro e tempo a mais nas suas mãos... Como cereja no topo de um bolo mal confeccionado temos ainda a recriação de uma Última Ceia que transforma os recentemente adquiridos apóstolos em meros bárbaros numa mesa a escutar I Feel Good ao vivo, sabendo que o seu destino será a deportação para as suas trágicas origens ou, quem sabe, para a confirmação de uma esperada miséria, doença e morte...
Que o cinema pode ter uma importância extrema na transparência e transmissão de uma mensagem já todos nós sabemos... infelizmente está ainda pouco explorada a sua capacidade de propagandear um conjunto de ideias extremistas como se o alvo de uma investigação - neste caso os refugiados - mais não fosse do que um conjunto de bonecos disponíveis para manobrar como joguetes de uma instrumentalização não política mas sim pessoal satisfazendo, de forma desumana, o sofrimento alheio como forma de poder (o "eu") alcançar um dia de amanhã mais tranquilo e contente.
Depois disto, a minha única e possível apreciação sobre Vangelo poderá resumir-se numa única palavra... Imoral. Imoral pela forma como ridiculariza as condições precárias de um conjunto de homens perdidos num país que não o seu, depois de uma trágica viagem pelo Mediterrâneo na qual assistiram à morte de tantos dos seus e que chegam ali, esperando uma vida melhor, mas deparam-se com um inferno não tanto pelas más condições de vida que ainda se mantêm - pela escassez e demora de tempo em regularizar as suas situações - mas sim pela forma como todo o seu sofrimento é primeiramente desumanizado, depois ridicularizado e finalmente alvo de uma única resposta... "obrigado... mas tem de regressar"... Enquanto isto... esta "coisa" cinematográfica vai percorrendo uns festivais de cinema por esse mundo (desatento) fora enquanto que os outros... regressaram (ou não) ao país de origem onde "se sabe bem viver e têm boa música".
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