Peregrinação de João Botelho, realizador de Tráfico (1998), Quem és Tu? (2000) e Os Maias: Cenas da Vida Romântica (2014), é o relato das viagens de Fernão Mendes Pinto ao Extremo Oriente no século XVI e uma epopeia à epopeia dos Descobrimentos Portugueses da época escritos na obra homónima como um diário de viagem que explora as aventuras dos Europeus pelos mares do Índico passando pela costa Africana, pela Índia rumo à China e Japão.
Se por um lado o espectador reconhece o trabalho de João Botelho em trazer à luz cinematográfica obras de escritores maiores como Fernando Pessoa, Eça de Queirós ou Fernão Mendes Pinto ao qual é acrescida a vontade maior de retratar uma certa portugalidade como já é costume, aliás, na obra passada do realizador, Peregrinação transforma-se rapidamente numa obra que oscila entre o conto histórico e a novela musical que nem sempre se confirma pela positiva.
Do passado - de Mendes Pinto - ao presente - do mesmo - em que se analisa a sua constante necessidade de manter viva a sua viagem através dum registo da mesma, há algo que ensombra a sua vontade ao confirmar-se como alguém como uma história factual que pretende deixar como legado mas que, ao mesmo tempo, vive na sombra de um Luís Vaz de Camões que escreveria aquela que se mantém como a obra maior deste Portugal há beira Atlântico plantado, Peregrinação celebra a narração e reconstituição histórica - dentro dos seus limites - levando o espectador ao passado de um homem que cruzou os mares e viveu uma vida que, há época, não só era (im)possível como assumidamente uma numa vida. Por outras palavras, é depois de Mendes Pinto ter regressado à Europa que não só sente a necessidade de compreender e registar a viagem que viveu como finalmente percebe que para lá dos perigos sentidos e vividos está algo que deixou, que não irá repetir mas que o marcou para todo o sempre definindo uma parte do seu ser que jamais irá reencontrar.
Mendes Pinto está, portanto, numa espécie de limbo existencial que o torna incapaz de se assumir como pleno no espaço em que se encontra... estará ele no local certo nesta Europa que abandonou para conhecer o mundo ou, por sua vez, é a vida dupla que construiu por outras paragens aquela que melhor o define na sua essência?! É com estas questões que cabem apenas ao espectador tentar decifrar que se vive nas quase duas horas de duração de Peregrinação, deixando em aberto um único cenário... a viagem do Homem é tanto física como assumidamente psicológica tentando, no final, encontrar uma resposta para as suas dúvidas quer filosóficas quer existenciais ao mesmo tempo que tenta deixar para a posterioridade o seu testemunho como marca da sua passagem pela Terra... independentemente da paragem específica em que se terá encontrado.
A viagem física, tal como a psicológica, é um relato dos desafios e das novidades que por ela se encontraram. Da descoberta de uma exuberante fauna marítima e flora terrestre, é no alto mar que tudo se define... dos interlúdios musicais que retratam a mente de Mendes Pinto, bem como daqueles que o acompanham, aos povos com que se cruzam já, alguns deles, dotados de uma Europeização notada, Peregrinação funciona como que uma evangelização da alma - de Mendes Pinto ou mesmo do Homem - por destinos e paragens nunca antes alcançados mas nos quais se tentou espalhar a palavra de uma civilização em civilizações que já eram, também elas, dotadas de uma iluminação tão ou mais marcante que aquela - Portuguesa - que a essas paragens chegava. Pelo meio de tempestades físicas e meteorológicas, Peregrinação é assim interrompida por esses já referidos momentos musicais que mais não são, no fundo, do que o espelho de uma incerteza pessoal e nacional em paragens distantes enquanto se relatam as escaramuças e as viagens, o estado de Portugal e a desorientação em alto mar, os motins a bordo ou o desespero pela perda de orientação sem esquecer as ofertas e as oferendas comerciais que se estabelecem pelos povos visitados com quem se estabelecem negócios e negociatas sem esquecer a sempre presente "palavra do Senhor" onde elas, por vezes, já se encontra bem implantada.
Com uma magnífica reconstituição histórica como vem sendo habitual na obra de João Botelho - que o comprove o excelente Os Maias: Cenas da Vida Romântica -, também Peregrinação - nomeada a onze Sophia da Academia Portuguesa de Cinema - é dotada de uma interessante execução que insere o espectador não só na época como principalmente no próprio choque de culturas entre o Ocidente e o Oriente comprovando que a globalização começou, de facto, graças a este contacto cultural existente na época dos Descobrimentos. Ainda com uma interessante interpretação de Cláudio da Silva que se afirma uma vez mais com um actor de cinema presente e capaz de dinamizar o grande ecrã, Peregrinação firma-se não como uma obra maior do cinema nacional mas, ainda assim, um marco nas adaptações de grandes obras literárias nacionais aqui reconstituídas com o primor de cinema clássico de permanecerá na memória para tempos vindouros e que poderá servir de um interessante e importante alicerce de transmissão dessas mesmas obras, de forma "animada", a um público mais jovem nem sempre receptivo às mesmas.
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"Fernão Mendes Pinto: Nós, os Portugueses... numa mão o crucifixo, noutra a espada."
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