Cavalo Dinheiro de Pedro Costa é uma longa-metragem portuguesa e a mais recente do realizador depois de O Sangue (1989), Casa de Lava (1994), Ossos (1997), No Quarto da Vanda (2000) e Juventude em Marcha (2006).
Observamos um conjunto de imagens do início do século passado. Vários indivíduos que percebemos executarem as mais diversas obras de construção. De seguida, o espectador é levado até Ventura, um homem perdido nas memórias do seu passado - no seu presente - e nas
perturbantes consequências que estas lhe deixaram a nível psicológico.
Depois da experiência nas Fontaínhas através de Ossos, No Quarto da
Vanda e Juventude em Marcha, Pedro Costa regressa com este Cavalo
Dinheiro - que contém um extracto do seu segmento em Centro Histórico
(2012) - no qual volta a colaborar com Ventura, agora mais velho e mais debilitado, que percorre os corredores daquilo que identificamos como um espaço tortuoso e labiríntico, quase fantasmagórico, do que em tempos poderá ter sido - é?! - um hospital. Ventura percorre os seus corredores, as suas alas passando pelas portas de vários quartos sem que se note nesta sua "viagem" a existência de um número significativo de pessoas presentes. Não conhecemos a cara dos médicos que o acompanham - será que algum ou um fruto da sua imaginação? - e as raras visitas que tem mais se aproximam de fantasmas de um passado distante mas que a sua mente mantém viva e presente como se de pessoas do seu dia-a-dia se tratassem.
Ao mesmo tempo visita o seu antigo local de trabalho, uma fábrica agora abandonada e esquecida às suas ruínas onde atende um telefone mantendo uma conversa com alguém que não está lá, toda esta viagem é um espelho da mente enfraquecida de Ventura, um homem cujo passado o marcou de tal forma que se perde nos seus pensamentos já não conseguindo perceber - nem o espectador - se algum deles é minimamente lúcido.
Num momento enquanto questionado, Ventura revela que tem 19 anos - a idade em que a sua mente parou de funcionar a um ritmo evolutivo tido como normal - e que se (nos) encontra(mos) no período pós-Revolução de Abril onde a guerra colonial estava terminada e uma imensa vaga de emigração se deslocava para Portugal continental para construir um país que esteve - até então - atrasado no seu tempo.
No hospital Ventura recebe a visita de Vitalina que surge para o funeral de um marido que ele afirma ainda estar vivo - apenas na sua mente do jovem de 19 anos que já não é - e falam sobre a sua vida passada - e presente - e por entre os escuros corredores daquele hospital, que podem facilmente ser associados às da sua mente presa num passado que já não existe, Ventura e Vitalina conversam... sobre o que perderam... sobre o que são... sobre a sua vida passada e sobre os caminhos que não podem - ou conseguem - seguir. Numa conversa que pode ser simplesmente o desabafo de uma mente perdida que se tenta (re)encontrar, Ventura é apenas banhado por escassos raios de luz - brilhante direcção de fotografia de Leonardo Simões - que permitem ao espectador perceber onde psicologicamente se encontra ainda que esse mesmo espaço possa, também ele, mais não ser do que um sítio seguro criado pela sua mente.
Numa viagem que leva o espectador a percorrer não só alguns caminhos em matas não identificadas onde alguns dos emigrantes Cabo-Verdianos procuram incansavelmente por Ventura que se pensa estar perdido - e está, pelo menos psicologicamente - e vagueiam por espaços não identificados, recuamos ainda a um bairro degradado - Fontaínhas novamente? - onde se centravam muitos destes emigrantes enquanto escutam - escutamos - silenciosamente uma morna contemplando algo - o nada - que têm à sua frente. Despojados de uma qualquer esperança, limitam-se a permanecer no seu espaço - aquele que lhes foi concedido sem problemas - marginalizando-se perante toda uma outra sociedade que ignorou os seus problemas, as suas questões, as suas vidas e essencialmente a sua presença.
Aquele que é provavelmente o momento mais emblemático de Cavalo Dinheiro é o mesmo já presente em Centro Histórico aqui com o título de Sweet Exorcism, onde Ventura entra num elevador que se sente imediatamente minúsculo, no qual se prepara para enfrentar uma voz da consciência e os demónios que atormentam a sua mente. A acompanhá-lo nesta viagem - descida? - temos um soldado que lhe fala sem mover os lábios. Apenas os seus pensamentos transmitem uma mensagem como se telepaticamente mantivessem uma conversa, e esta viagem de elevador transforma-se num perceptível caminho para "outro lado" - definitivo? - que transforma aquele pequeno elevador num purgatório onde serão finalmente expiados todos os momentos de um passado mais ou menos vivido mas assumidamente sofrido.
As memórias que o atormentam são agora pouco conexas mas o espectador compreende que ele as foi perdendo pelo caminho. São-no de uma guerra colonial, de uma transição democrática que se esqueceu dele - e dos demais - dos seus direitos, das suas vidas, das suas famílias, de um Portugal e de um percurso que nem o próprio sabe se viveu ou se não é mais uma das memórias que o não são. Ventura está perdido e o próprio deambular por todo aquele hospital - imaginado ou não - são disso sinal. Nunca temos do seu espaço uma imagem clara mantendo apenas a vista para a rua através da janela de um refeitório e alguns dos quartos para onde vai... onde fala com o médico... onde recebe as suas visitas... mantendo-se todo o demais espaço como um labirinto pouco iluminado que o impossibilita de sair. Um espaço que o prende - sendo este a sua memória ou o que dela resta - ao que viveu... ao que gostaria de ter vivido.
Numa intensa interpretação sobre os traumas durante a guerra - daqueles que combateram ou dos que dela fugiram para encontrar toda uma nova dinâmica exclusiva neste novo Portugal democrático - Ventura escuta as alucinações das vozes do seu passado que nunca o deixaram de atormentar. Vive a solidão de uma vida incompleta... não foi pai ou marido. Não tem descendência que o imortalize - não que seja um seu desejo - nem, no fundo, alguém que testemunhe a sua passagem pelo mundo, ou seja, aquilo que hoje o atormenta - a sua memória - é exactamente aquilo que não deixa como um legado... ser ele próprio uma memória de alguém.
Em Cavalo Dinheiro, Pedro Costa não é escasso nos tormentos e exibe este homem - que como tantos outros - vive perseguido por um passado só por si conhecido que hoje são memórias desconexas e soltas, perdidas num tempo passado mas que o obrigam a por elas navegar fazendo-o perder-se na imagem do homem que foi e já não é. Por ele os anos
passaram, pela sua memória não. Ventura é um homem desgastado,
amedrontado e cuja pequena grande viagem de elevador lhe serve como
a tal expiação desse passado que vive no silêncio dos seus pensamentos sendo apenas provocados pela imagem daquele soldado - o barqueiro do purgatório - que o conduz
ao outro lado do "rio".
Muito forte ao ponto de provocar calafrios no
espectador - não de um medo da sombra mas do efeito que esta nos pode provocar -, Costa e Ventura conseguem fazer o único e muito fiel marco
que aborda os traumas de guerra - militar ou aquela tida pelos que mudaram de vida abandonando o seu espaço natural - num sentido, dramático e profundamente
intenso momento que toca de muito perto o terror psicológico que se alimenta dos sentimentos tão profundos como a culpa, a incapacidade de se perpetuar ou até mesmo a impotência de se imortalizar num sentido de ser recordado.
E é memória - ou daquilo que é suposto ela registar - que Cavalo Dinheiro tenta imortalizar. Não só a individual como também a colectiva. Por um lado temos logo de início as fotografias - do fotógrafo dinamarquês Jacob Riis - que registam um sem número de imigrantes em Nova York e das suas parcas condições de vida e trabalho mas que construíram as ruas e as cidades que hoje percorremos e que fazem, portanto, parte de um espaço e memória colectivos traçando - ao mesmo tempo - um interessante paralelismo entre essas fotografias e as condições dos Cabo-Verdianos em Portugal num retrato com vida ao som da morna "Alto Cutelo" d'Os Tubarões, que se escuta a meio de Cavalo Dinheiro. Por outro temos todas as experiências que esses mesmos emigrantes atravessaram e que fazem parte do seu registo individual de experiências que só um núcleo restrito de pessoas - o seu - conhece e podem testemunhar transformando-os dessa forma também como uma memória - de grupo pessoal - que ajudou a construir os tais espaços comuns, ruas e cidades. Silenciosamente e no anonimato transformam-se, também eles, na memória colectiva... a nossa.
O final de Cavalo Dinheiro - no elevador - chega com um estrondoso som de orgão que revela uma percepção de uma realidade demasiadamente assustadora - a do tempo que passou - e que Ventura apenas naquele que poderá ser o seu momento final, compreende, entregando-se ao fim - o seu - saindo desta "viagem" de elevador que se destinava única e exclusivamente a "entregá-lo" ao outro lado com a esperança de poder finalmente ter algum descanso.
Com o ano cinematográfico prestes a chegar ao fim, Pedro Costa e o seu já premiado internacionalmente Cavalo Dinheiro conseguem, felizmente, demonstrar uma intensa vitalidade artística do cinema português ao recorrer a um registo pessoal e individual mas que compõe uma História silenciosa de um Portugal moderno e assumindo-se como um dos filmes maiores do ano... (inter)nacionalmente.
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