sábado, 3 de março de 2018

Praça Paris (2017)

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Praça Paris de Lúcia Murat (Portugal/Brasil/Argentina) é uma das longa-metragens em competição no FESTIn - Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa a decorrer no Cinema São Jorge, em Lisboa.
Glória (Grace Passô) é uma mulher atormentada por um violento passado de abuso físico e sexual por parte do pai e a eterna guardiã de um irmão cuja vida fora dedicada ao crime. No Rio de Janeiro conhece Camila (Joana de Verona), uma jovem psicóloga portuguesa com quem inicia uma série de consultas de forma a expiar o seu passado e que faz um estudo sobre a violência no país.
Poderá a improvável relação entre estas duas mulheres dar uma nova vida a Glória ou, por sua vez, provocar um ainda mais inesperado desfecho para a condição de Camila?
Raphael Montes e Lúcia Murat fazem revelar toda uma história que tem como ponto de partida, conteúdo e desenvolvimento a ideia de violência sob as suas mais diversas manifestações. "Glória", numa personagem magnificamente interpretada por uma belíssima Grace Passô, é uma mulher que se revela isolada na indiferença que a sociedade lhe reserva. Com uma vida anónima fruto das poucas oportunidades proporcionadas numa cidade gigantesca e cosmopolita como é o Rio de Janeiro, "Glória" passa pelos dias sem que seja vista por todos aqueles com quem diariamente se cruza no seu trabalho enquanto ascensorista. Constantemente reflexiva sobre o seu passado amaldiçoado numa família onde era a eterna vítima de abuso por parte de um pai que via nela a substituta de uma mãe ausente - física, psicológica e sexualmente falando -, a existência de "Glória" manteve-se e mantêm-se exclusivamente num limite de sobrevivência em todos os domínios da sua vida. É então que se cruza com "Camila" que, na prática, se transforma numa inesperada voz da sua realidade.
As duas mulheres interagem num domínio de reciprocidade... Se a primeira quer expiar os seus demónios do passado ou, pelo menos, partilhá-los com alguém que esteja finalmente disposto a escutá-la, já a jovem investigadora portuguesa utiliza todo o conhecimento na primeira pessoa para os seus estudos académicos que não só "Glória" como a própria cidade e até mesmo o país lhe conseguem facilmente proporcionar elucidando-a sobre uma questão que, no final, também a irá atormentar... a perpetuação da violência, ou seja, se é um facto que ela existe desde cedo no grupo primário de cada um, como é aqui o caso de "Glória", não deixa de ser também verdade que esta mesma mulher sempre se sentiu - e foi - uma marginal naquele que seria o normal desenvolvimento do indivíduo... primeiro pelo abuso dentro do seio familiar, depois pela presença da morte na qual esteve envolvida à qual se seguiu a violência da escolha sobre quem iria pagar por esse crime e, finalmente, pelo uso da violência - para consigo - por parte das autoridades em quem (supostamente) deveria poder confiar para a sua própria protecção e isto, sem esquecer, toda a dinâmica da sua realidade quotidiana onde a indiferença e o resultante afastamento das demais pessoas acaba por ser a sua forma de viver e de se encontrar no mundo ou, pelo menos, na sua própria concepção do mesmo.
Determinada a fazer notar à outra mulher com quem se identifica e que espera imitar para uma eventual melhor ou mais fresca existência, "Glória" perde-se num imaginário que a coloca numa assustadora forma de existir que se equipara a um estranho e perigoso limbo que separa a realidade da loucura, a sanidade da perdição e até mesmo a vida da morte. "Glória" aparenta, a certo momento, querer apenas existir... e essa existência é para ela, fruto de toda uma realidade marginal, algo praticamente impossível de conseguir. Grace Passô representa então esta "Glória", intensa, frágil, assustadora e assustada, melindrada, insegura e até mesmo perigosamente mortal - ou pelo menos assim nos faz querer a certo momento - que busca por um momento ou por alguém que a ajude a sair do fosso em que parece estar desesperadamente a cair, é uma mulher actriz poderosa e rica, capaz de deixar o espectador não só intrigado com os seus movimentos nesta actualidade a que assiste mas sobretudo curioso com esse tal passado dantesco que a marcou e transformou nesta mulher que hoje é, mas também intrigado sobre qual poderá ser o destino da mesma... Irá "Glória" resistir a todas estas adversidades? Transformar-se numa vítima de toda esta violência? Ou, por sua vez, encontrar o seu próprio lugar neste mundo criminal e violento de onde tão veementemente tem tentado fugir?
Por sua vez, e do outro lado da barricada, encontramos uma "Camila" de Joana de Verona que percorre todo o caminho oposto ao de "Glória" ao transfigurar-se numa mulher que tendo todo um brilhante futuro académico pela frente, se deixa consumir pela violência que estuda e pelas pessoas que entrevista caindo numa espiral de perdição, num mundo de fantasia e medo onde reina a desconfiança para com todos aqueles com quem se cruza não conseguindo, também ela, distinguir entre o que é real e a realidade que o seu cérebro criou como a dita "normalizada".
Praça Paris é assim o estudo sobre os efeitos dessa já referida perpetuação da violência - principalmente na mulher, uma vez que todas as personagens masculinas são aqui meros suportes das suas histórias -... a forma como influenciou aqueles que foram vivendo com a sua realidade, com os seus medos, com essas tais desconfianças que acorrentam todos a uma distorção das possibilidades que têm à sua frente e, finalmente, à sua aceitação enquanto algo que é presente... e normal. Lúcia Murat cria uma história negra que oscila entre o drama psicológico e o thriller assombroso onde nem tudo parece ser como a certo momento se equaciona... onde não existe obrigatoriamente uma personagem "má" mas sim várias que são o fruto da sua própria realidade, da sua vivência e da forma como o meio os influenciou desesperadamente ao ponto de encontrarem nessa existente violência a única forma de poder (con)viver num mundo que sabem (e esperam) nada de bom lhes poder reservar.
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8 / 10
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