Drvo - A Árvore de André Gil Mata (Portugal/Bósnia-Herzegovina) foi a longa-metragem de abertura da décima-quinta edição do IndieLisboa - Festival Internacional de Cinema Independente a decorrer em Lisboa até ao próximo dia 6 de Maio e também um dos filmes presentes na Competição Nacional.
Um Homem (Petar Fradelic), uma Criança (Filip Zivanovic). Duas guerras. Dois estados temporais. Um Rio. Uma Árvore. O Homem e a Criança conhecem-se sob uma árvore junto a um rio. Partilham uma memória.
Com argumento do próprio Gil Mata e uma direcção de fotografia de João Ribeiro - que "pinta" belíssimo quadros de imagem em movimento -, Drvo - A Árvore é assumidamente uma obra de arte que exige, sem se impôr, ser contemplada.
Os dois momentos que acompanham esta longa-metragem aproximam o espectador de duas cruas realidades temporais de uma Sarajevo que, então, viveu sob um manto negro e violento. Numa primeira realidade temos uma criança (Zivanovic) que enquanto brinca "força" o espectador a escutar os bombardeamentos que, distantes, cercam o espaço natural à sua volta. Percebemos, mais tarde, que um homem (Fradelic) vive sob a mesma realidade no mesmo espaço. Distantes pelo tempo, o espectador compreende estas semelhantes realidades como os anos '40 - para a criança - e '90 - para o homem - onde a capital bósnia viveu sob intensos períodos de guerra - Segunda Guerra Mundial e os conflitos resultantes da declaração de independência da então Jugoslávia - nos quais, aqueles que nela subsistiam viviam sob um intenso e violento purgatório. Se a criança encontra espaço para brincar alheando-se (ou talvez não) da realidade "lá de fora", é no homem mais velho que encontramos o rosto marcado por esta (sobre)vivência e uma certa apatia para com aquilo que o rodeia.
"Ele" (Fradelic) recolhe garrafas de vidro que transporta às suas costas, e os únicos ruídos que são perceptíveis são os do vidro que chocalha e o dos seus passos na neve. Distantes, mas igualmente presentes, são os dos bombardeamentos que, no entanto, acabam por ser por ele ignorados tal a sua normalidade nesta que é a sua realidade. Dali parte num barco e desce o rio rumo a uma realidade que o espectador desconhece até que, de repente, um vulto surge numa das suas margens. O vulto de uma criança que ele então persegue até uma árvore. É naquela árvore com as marcas do frio de um rigoroso Inverno, que os dois se encontram e conversam revelando incoerentes momentos de uma memória partilhada, e eventualmente colectiva, da sua realidade e daquela do espaço em que ambos se encontram.
A conversa entre ambos ganha uma dimensão de reflexão na medida em que explora pequenas particularidades que parecem comuns a ambos. Pequenos momentos dessa referida memória que apenas o mesmo ser poderia saber e conhecer. É então que o espectador se questiona se estas duas pessoas não serão uma única em momentos distintos de uma realidade comum e, nesta medida, em que espaço temporal se encontram de facto... naquele que foi vivido pelo jovem ou pelo adulto? Estarão eles distanciados por anos ou simplesmente por realidades distintas mas comuns que se cruzam nesta cidade deserta, quase fantasma, que poderá mais não ser do que a imagem reflectida que ambos encontram e conhecem como o seu espaço de segurança?
Por momentos, e tendo esta linha de pensamento, o espectador questiona-se sobre a possibilidade deste mais não ser do que um espaço transitório para onde ambos foram transportados no seu "depois". Um espaço no qual a mesma pessoa em diferentes etapas da sua vida encontrou para poder tranquilizar o seu outro "eu"... Um jovem que encontra uma qualquer forma de paz compreendendo que o próprio irá existir até tardia idade, e o mais velho assegurando este que as agruras da vida não terminarão com o rugir das bombas que escuta ao longe. Nem tudo serão maus tempos e os anos de uma paz física e psicológica surgirão com os anos mas, ao mesmo tempo, ambos são, no seu tempo, assombrados com a realidade da guerra, do fim, da perda, da inexistência, do nada e até mesmo de uma morte vizinha que espreita pelo melhor momento de surgir e se dar a conhecer.
Também surge ao espectador uma noção de tragédia grega... dos deuses do Olimpo e dos seus servos na medida em que o homem (Fradelic) não só procura a sua subsistência (a moeda) pela recolha das garrafas como também se faz transportar entre margens através do seu barco. Fradelic, ou o "Caronte" destes tempos, transporta ou aborda aqueles que se acercam à margem do rio conferindo-lhes a possibilidade de uma existência do "outro" lado ou, por sua vez, confirmando que ainda não chegou o tempo deles serem transportados para essa nova realidade que julgam ter então alcançado. A tranquilidade ou seu adiamento, surge então personificado pela caminhada sem destino que estas margens precisam "consumir" antes de ser consumada a eterna e última passagem para o outro lado ou outra existência.
Ao mesmo tempo, André Gil Mata força o espectador a acompanhar o "homem" de Fradelic, primeiro através de uma calma e psicologicamente tranquila existência - pelo menos aparentemente -, que o faz percorrer as ruas de uma cidade abandonada e visivelmente deserta apenas na companhia de um fiel cão. Nesta caminhada percebemos a existência de um sofrimento inerente às suas acções, algo que o acompanha como um fardo atribuído a alguém que cumpre uma pena... O sofrimento como pena de uma existência condenada aos meus ritos e rituais, aos mesmos gestos e passos que se repetem sistematicamente dia após dia e dos quais este homem não consegue escapar. Numa prisão a céu aberto, o espectador sente uma imediata empatia pelo homem, pela sua condição e pela forma como silenciosamente - pela ausência de outro alguém ou até mesmo pela voluntariedade que assume ou assumiu com o passar dos tempos -, aceita o seu isolamento e aquilo que o destino lhe proporcionou... naquele momento e em toda a sua vida. O desespero surge assim não pela condição mas pela repetição de um ritual que se perpetua. Um desespero silencioso que apenas quebra para salvar da incerteza o seu "eu" mais jovem e que, de certa forma, resulta como um auto-conforto na medida em que as suas palavras poder-se-ão perpetuar na mente de um jovem que cresce e se desenvolve com a certeza de que esta incerteza de paz e segurança serão a sua realidade no início da sua vida e potencialmente nesse tal "final" nunca confirmado.
Contemplativo desde os instantes iniciais onde o espectador é levado a conhecer o interior de uma modesta habitação perdida num qualquer vale dos Balcãs, Drvo - A Árvore assume-se como a fonte de uma vida (a árvore) independentemente da forma como esta poderá ser desenvolvida no futuro. Ela será no entanto, o elemento que testemunha toda essa passagem de tempo, de pensamento, de regimes, de conflitos e sobretudo daqueles que a cruzaram ignorando que se manteve ali durante tempos inconfessáveis. Com uma direcção de fotografia de João Ribeiro, um mestre na captação do espírito, do momento e da energia do espaço, Gil Mata constrói uma obra maior do cinema português distanciando-se, no entanto, de qualquer nacionalidade que poderia inicialmente ser atribuída a esta história. Ao reter a mensagem de Drvo - A Árvore, o espectador desconhece primeiro o espaço - apenas revelado por pequenos elementos da obra -, depois o tempo - que apenas assume pela narrativa e pelo cenário de fundo na qual se desenrola - e finalmente a sua origem que pode firmar a obra apenas pela origem do seu realizador mas transformá-la num conto sem nacionalidade pela universalidade da sua mensagem.
De longe uma das obras maiores do novo cinema português, Drvo - A Árvore consegue nos seus pouco mais de noventa minutos firmar a importância da memória (física, psicológica, histórica, temporal...), transformar-se num conto assombroso na medida em que deixa o espectador incerto sobre os limites da ficção, do drama, do real e do fantástico sem que, no entanto, este se consiga esquecer de que se encontra perante uma história contemplativa sobre o silêncio, a dor, a perda e sobretudo o sofrimento de uma alma que - desconhecemos - se limita a percorrer os mesmos espaços, cantos e lugares de forma monótona (des)esperando por um breve momento no qual possa partilhar a sua sabedoria e o seu relato sobre a passagem desse tempo nem sempre benemérito.
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Um Homem (Petar Fradelic), uma Criança (Filip Zivanovic). Duas guerras. Dois estados temporais. Um Rio. Uma Árvore. O Homem e a Criança conhecem-se sob uma árvore junto a um rio. Partilham uma memória.
Com argumento do próprio Gil Mata e uma direcção de fotografia de João Ribeiro - que "pinta" belíssimo quadros de imagem em movimento -, Drvo - A Árvore é assumidamente uma obra de arte que exige, sem se impôr, ser contemplada.
Os dois momentos que acompanham esta longa-metragem aproximam o espectador de duas cruas realidades temporais de uma Sarajevo que, então, viveu sob um manto negro e violento. Numa primeira realidade temos uma criança (Zivanovic) que enquanto brinca "força" o espectador a escutar os bombardeamentos que, distantes, cercam o espaço natural à sua volta. Percebemos, mais tarde, que um homem (Fradelic) vive sob a mesma realidade no mesmo espaço. Distantes pelo tempo, o espectador compreende estas semelhantes realidades como os anos '40 - para a criança - e '90 - para o homem - onde a capital bósnia viveu sob intensos períodos de guerra - Segunda Guerra Mundial e os conflitos resultantes da declaração de independência da então Jugoslávia - nos quais, aqueles que nela subsistiam viviam sob um intenso e violento purgatório. Se a criança encontra espaço para brincar alheando-se (ou talvez não) da realidade "lá de fora", é no homem mais velho que encontramos o rosto marcado por esta (sobre)vivência e uma certa apatia para com aquilo que o rodeia.
"Ele" (Fradelic) recolhe garrafas de vidro que transporta às suas costas, e os únicos ruídos que são perceptíveis são os do vidro que chocalha e o dos seus passos na neve. Distantes, mas igualmente presentes, são os dos bombardeamentos que, no entanto, acabam por ser por ele ignorados tal a sua normalidade nesta que é a sua realidade. Dali parte num barco e desce o rio rumo a uma realidade que o espectador desconhece até que, de repente, um vulto surge numa das suas margens. O vulto de uma criança que ele então persegue até uma árvore. É naquela árvore com as marcas do frio de um rigoroso Inverno, que os dois se encontram e conversam revelando incoerentes momentos de uma memória partilhada, e eventualmente colectiva, da sua realidade e daquela do espaço em que ambos se encontram.
A conversa entre ambos ganha uma dimensão de reflexão na medida em que explora pequenas particularidades que parecem comuns a ambos. Pequenos momentos dessa referida memória que apenas o mesmo ser poderia saber e conhecer. É então que o espectador se questiona se estas duas pessoas não serão uma única em momentos distintos de uma realidade comum e, nesta medida, em que espaço temporal se encontram de facto... naquele que foi vivido pelo jovem ou pelo adulto? Estarão eles distanciados por anos ou simplesmente por realidades distintas mas comuns que se cruzam nesta cidade deserta, quase fantasma, que poderá mais não ser do que a imagem reflectida que ambos encontram e conhecem como o seu espaço de segurança?
Por momentos, e tendo esta linha de pensamento, o espectador questiona-se sobre a possibilidade deste mais não ser do que um espaço transitório para onde ambos foram transportados no seu "depois". Um espaço no qual a mesma pessoa em diferentes etapas da sua vida encontrou para poder tranquilizar o seu outro "eu"... Um jovem que encontra uma qualquer forma de paz compreendendo que o próprio irá existir até tardia idade, e o mais velho assegurando este que as agruras da vida não terminarão com o rugir das bombas que escuta ao longe. Nem tudo serão maus tempos e os anos de uma paz física e psicológica surgirão com os anos mas, ao mesmo tempo, ambos são, no seu tempo, assombrados com a realidade da guerra, do fim, da perda, da inexistência, do nada e até mesmo de uma morte vizinha que espreita pelo melhor momento de surgir e se dar a conhecer.
Também surge ao espectador uma noção de tragédia grega... dos deuses do Olimpo e dos seus servos na medida em que o homem (Fradelic) não só procura a sua subsistência (a moeda) pela recolha das garrafas como também se faz transportar entre margens através do seu barco. Fradelic, ou o "Caronte" destes tempos, transporta ou aborda aqueles que se acercam à margem do rio conferindo-lhes a possibilidade de uma existência do "outro" lado ou, por sua vez, confirmando que ainda não chegou o tempo deles serem transportados para essa nova realidade que julgam ter então alcançado. A tranquilidade ou seu adiamento, surge então personificado pela caminhada sem destino que estas margens precisam "consumir" antes de ser consumada a eterna e última passagem para o outro lado ou outra existência.
Ao mesmo tempo, André Gil Mata força o espectador a acompanhar o "homem" de Fradelic, primeiro através de uma calma e psicologicamente tranquila existência - pelo menos aparentemente -, que o faz percorrer as ruas de uma cidade abandonada e visivelmente deserta apenas na companhia de um fiel cão. Nesta caminhada percebemos a existência de um sofrimento inerente às suas acções, algo que o acompanha como um fardo atribuído a alguém que cumpre uma pena... O sofrimento como pena de uma existência condenada aos meus ritos e rituais, aos mesmos gestos e passos que se repetem sistematicamente dia após dia e dos quais este homem não consegue escapar. Numa prisão a céu aberto, o espectador sente uma imediata empatia pelo homem, pela sua condição e pela forma como silenciosamente - pela ausência de outro alguém ou até mesmo pela voluntariedade que assume ou assumiu com o passar dos tempos -, aceita o seu isolamento e aquilo que o destino lhe proporcionou... naquele momento e em toda a sua vida. O desespero surge assim não pela condição mas pela repetição de um ritual que se perpetua. Um desespero silencioso que apenas quebra para salvar da incerteza o seu "eu" mais jovem e que, de certa forma, resulta como um auto-conforto na medida em que as suas palavras poder-se-ão perpetuar na mente de um jovem que cresce e se desenvolve com a certeza de que esta incerteza de paz e segurança serão a sua realidade no início da sua vida e potencialmente nesse tal "final" nunca confirmado.
Contemplativo desde os instantes iniciais onde o espectador é levado a conhecer o interior de uma modesta habitação perdida num qualquer vale dos Balcãs, Drvo - A Árvore assume-se como a fonte de uma vida (a árvore) independentemente da forma como esta poderá ser desenvolvida no futuro. Ela será no entanto, o elemento que testemunha toda essa passagem de tempo, de pensamento, de regimes, de conflitos e sobretudo daqueles que a cruzaram ignorando que se manteve ali durante tempos inconfessáveis. Com uma direcção de fotografia de João Ribeiro, um mestre na captação do espírito, do momento e da energia do espaço, Gil Mata constrói uma obra maior do cinema português distanciando-se, no entanto, de qualquer nacionalidade que poderia inicialmente ser atribuída a esta história. Ao reter a mensagem de Drvo - A Árvore, o espectador desconhece primeiro o espaço - apenas revelado por pequenos elementos da obra -, depois o tempo - que apenas assume pela narrativa e pelo cenário de fundo na qual se desenrola - e finalmente a sua origem que pode firmar a obra apenas pela origem do seu realizador mas transformá-la num conto sem nacionalidade pela universalidade da sua mensagem.
De longe uma das obras maiores do novo cinema português, Drvo - A Árvore consegue nos seus pouco mais de noventa minutos firmar a importância da memória (física, psicológica, histórica, temporal...), transformar-se num conto assombroso na medida em que deixa o espectador incerto sobre os limites da ficção, do drama, do real e do fantástico sem que, no entanto, este se consiga esquecer de que se encontra perante uma história contemplativa sobre o silêncio, a dor, a perda e sobretudo o sofrimento de uma alma que - desconhecemos - se limita a percorrer os mesmos espaços, cantos e lugares de forma monótona (des)esperando por um breve momento no qual possa partilhar a sua sabedoria e o seu relato sobre a passagem desse tempo nem sempre benemérito.
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