sexta-feira, 19 de maio de 2023

Yizhachok (2023)

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Yizhachok de D. Mitry (EUA) é uma das curtas-metragens presentes na competição Internacional da décima-terceira edição do Festival Internacional de Cine de Piélagos a decorrer na Cantábria, em Espanha.
Começa a guerra na Ucrânia fruto da invasão russa e Nina (Emma Pearson) é enviada para casa dos avós numa aldeia remota afastada dos bombardeamentos na grande cidade. Um dia, e depois de suspeitar das visitas da avó a uma barraca na propriedade, decide investigar descobrindo por lá um soldado russo que se encontra ferido.
Mais como um filme dramático do que propriamente o típico filme de guerra, este Yizhachok impressiona o espectador desde logo graças à infeliz actualidade da sua temática que todos mantêm presente na memória. A imagem da guerra está presente desde os primeiros instantes graças aos ruídos de bombardeamos que escutamos à distância compreendendo que rapidamente podem estar ali junto àquela família afastada pela força do próprio conflito. Com comunicações cortadas entre os membros da família que se vêem forçados a um distanciamento físico, a mesma procurou a sobrevivência e segurança dos mais novos aqui representados pela filha "Nina" que, mesmo com uma jovem idade, compreende que os momentos são de uma separação que pode ser maior do que aquela que poderiam imaginar. A mesma comunicação "cortada" com a realidade bélica mais ou menos distante e que apenas garante escassas notícias via rádio que se escuta num silêncio cortante como que um sinal de esperança de que aquilo que sabem estar a acontecer se consiga manter a uma distância ainda maior do que aquela que separa famílias.
A avó tenta esconder alguma dessa trágica realidade da neta garantindo-lhe que os ruídos que escuta são trovões à distância e que ela não precisa recear nada do que está para lá do seu horizonte. Mas, no entanto, se ela nada deve recear desse "além", é a curiosidade inerente a uma jovem criança que desperta ao observar os gestos e hábitos repetitivos da avó que oculta o que faz dentro de um barracão na sua propriedade. O que poderá ela fazer todos os dias ao entrar naquele espaço que, aparentemente, nada tem ou guarda?! São pequenos os sinais, talvez até triviais, mas suficientemente presentes para que ela sinta a necessidade de descobrir o que está ali dentro daquele espaço proibido e no qual, noutras circunstâncias em que poderia ter mais com que se ocupar ou distrair, jamais ousaria desafiar ou tentaria revelar.
Um segundo momento desta curta-metragem surge imediatamente após a curiosidade de "Nina" a ter levado ao misterioso barracão onde descobre que "o outro lado" do conflito encontrou um lugar seguro e que, tal como ela, fugiu de um conflito que pouco o representa. Ao conhecer "Yuri", o soldado russo que ali se encontra a recuperar de um ferimento provocado por uma guerra indesejada (não o serão todas?!), a empatia entre ambos é imediata. Nada, a não ser o absurdo da guerra, justificaria o afastamento que existe entre eles mas é a inocência da jovem criança que os aproxima pela compreensão de que não são tão diferentes como um qualquer político sedento de poder os poderia ter feito crer. Os gestos de amizade entre ambos surgem naturalmente... uma bola... um peluche que se partilha e, também eles, com o devido simbolismo que se lhes confere... a primeira numa eventual representação de um espaço sem pontas ou cantos, algo uno como só uma esfera espelha na perfeição (afinal não habitamos nós uma?!) e que para lá de representar qualquer diferença entre eles, reflecte sim esse espaço comum que ignoramos ser de todos e não apenas de alguns... Finalmente o peluche... um ouriço... o mesmo que está na génese da ideia desta curta-metragem pelo seu próprio título (os ouriços  metálicos que protegem as estradas e as cidades da invasão), e agora este peluche que aproxima a jovem "Nina" da ideia de juventude e de inocência que lhe foram privadas com o despoletar deste conflito. Ao mesmo tempo a simbologia não termina por aqui pois representam também as imagens que ela recorda dua sua vida "anterior" e que tão bem retrata nos seus desenhos daquilo que recorda da cidade em que vivera. As memórias ganham assim uma inesperada importância na medida em que ainda que tudo seja tão próximo e recente não deixa, ao mesmo tempo, de ser a imagem de um passado que poderá não voltar a ser vivido. "Nina" deixou tudo para trás... a sua casa, os seus brinquedos, a sua escola e os seus amigos... o pai e a mãe que não sabe quando e se voltará a ver. Tudo isto são imagens e pensamentos que a ela eventualmente não a perturbarão mas a nós, espectadores desta curta-metragem que nos deixamos levar por uma realidade que se tem mantido presente apenas e só naquilo que observámos pelos inúmeros retratos do início dessa guerra, estão vivas e são reais... ainda que em medida diferente por nos mantermos geograficamente distante da mesma.
A guerra é então uma realidade presente. Algo físico. Algo emocional. O conflito ganhou com esta relação entre "Nina" e "Yuri" um rosto. Como se define o inimigo quando ele é, no fundo, alguém igual a nós. Alguém que agora está ali refugiado... escondido... perdido e também ele afastado da sua realidade? O que é afinal a realidade? O rosto do conflito ou a vida como até então se conhecera? Será aquela pessoa um inimigo considerando que também alis e esconde do que está para lá das árvores daquela floresta?! Ou, por outro lado, é apenas inimigo porque também ele pode representar a "minha" perda e o afastamento daquilo que era "meu"? Existirá a possibilidade de alguma lucidez e bom senso quando tudo parece desmoronar e onde a perda, manifeste-se ela de que forma fôr, é a verdadeira realidade com que todos podem contar? Esta resposta surge nos instantes finais desta curta-metragem quando ao espectador são fornecidos importantes detalhes, e inadvertidamente esperados, dos efeitos desta guerra... a perda... a perda de alguém. Alguém que não voltaremos a ver. Será este o momento em que "Nina" irá finalmente descobrir o verdadeiro "rosto" da guerra ou manifestar-se-à como uma sua forte opositora não permitindo que a referida perda se materialize em ódio?
Subtilmente intensa e dramática sem nunca ceder ao sentimentalismo melancólico, Yizhachok (o ouriço agreste mas doce protector que surge tanto como símbolo de defesa mas também como um de amizade) é o cru registo de um - mais um - conflito sem lei ou ordem onde todos perdem ainda quando pensam vencer e no qual só irão permanecer não só as tradicionais esquizofrenias de um conflito armado como os ressentimentos entre aqueles que outrora foram amigos e familiares e agora mais não são do que o rosto de um inimigo que poucos ousam encarar. Ou talvez não... Talvez quando a inocência de alguém puro que compreende - mesmo que em silêncio - que perdeu algo maior (tanto "Nina" como "Yuri" o compreendem, uma ao exibir os desenhos das suas memórias e o outro ao guardar um peluche que claramente representa um filho que deixou para trás...), o mundo possa olhar para lá de diferenças e encará-las como uma parte original de um todo diverso.
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9 / 10
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