terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Tabu (2012)

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Tabu de Miguel Gomes vencedor de dois prémios no Festival Internacional de Cinema de Berlim, adivinhava-se como um dos grandes sucessos cinematográficos nacionais do ano, tanto dentro como além fronteiras.
Pilar (Teresa Madruga) é uma mulher só, reformada e activista em inúmeras causas pelos Direitos Humanos que ocasionalmente ajuda Aurora (Laura Soveral) a sua excêntrica vizinha. Antes de morrer Aurora refere a Pilar e a Santa (Isabel Muñoz Cardoso) a sua empregada e companheira, o nome que havia marcado a sua vida... Ventura.
É a partir deste momento que Pilar e Santa resolvem saber quem é este homem e, ao encontrá-lo, Ventura (Henrique Espírito Santo) revela-lhes um passado de todos desconhecido e sobre quem foi Ventura (Carloto Cotta) e Aurora (Ana Moreira) em juventude no sopé do Monte Tabu em África, bem como a relação de amor que os uniu e separou.
Este filme cujo argumento o próprio Miguel Gomes escreveu em colaboração com Mariana Ricardo é rico e original. Em primeiro lugar pela sua genial divisão da narração da história em dois muito específicos e particulares momentos. O primeiro deles, intitulado Paraíso Perdido, que abre logo de imediato toda a acção, conta-nos a história de um caçador que, com um desgosto de amor, se lança aos crocodilos que de certa forma iria estabelecer uma relação directa com a segunda metade do filme que nos transportaria para o passado e para uma África Portuguesa do tempo colonial.
São passados poucos minutos quando percebemos que estamos a assistir a um filme dentro do filme. Um Paraíso Perdido que nos remete para a Lisboa dos nossos dias onde conhecemos as personagens principais, e logo de imediato uma "Pilar", brilhantemente interpretada por Teresa Madruga que demonstra uma vez mais conseguir dar a qualquer filme em que participe uma radiante alma e personalidade. Toda a acção desta primeira metade do filme coloca-a como o elemento central de todo o filme que explora a vida de uma mulher aparentemente só, sem planos de maior para o "dia de amanhã" e que, na prática, apenas tem como ocupação tratar dos devaneios de uma vizinha que tem nela o último conforto para as suas acções. "Pilar" chora da sua própria solidão, da falta de amor que tem... Dos momentos em que se encontra só, independentemente de servir como o único consolo a uma vizinha que aos poucos parece perder o pouco juízo que ainda lhe resta. Preocupada com o que a rodeia, mesmo com o agradar ao amigo que lhe dá, como prova da sua atenção, os quadros que cria que pendura e retira da parede conforme a sua visita, "Pilar" é o reflexo de uma tristeza inerente a um povo e a uma cidade que parecem ter-se perdido no tempo, e com ele todos os sonhos e ambições que outrora uma geração teve.
Se Teresa Madruga se revela como uma alma, não deixa de ser verdade que a magnífica Laura Soveral se assume como uma força da Natureza. Forte e determinada enquanto "Aurora", Soveral encarna na perfeição aquilo que poderemos assumir como o rosto de uma mulher que se perdeu. Perdeu-se a partir do momento em que aquilo que de mais sagrado teve, e que a fazia sentir viva enquanto indivíduo, lhe foi retirado... o amor. Não o amor convencional em que se encontrava, ao ter um casamento aparentemente feliz e "correcto" para os padrões sociais da época e do regime, mas aquele que a fazia realmente sentir viva, feliz e que a completava, e que por isso aos poucos o seu estado mental se tornou degenerativo, cheio de maquinações e ideias de vingança e conspirações que a sua empregada e a sua filha (geograficamente longinqua) congeminavam contra ela. É seguro dizer que Laura Soveral tem uma das mais seguras e sólidas interpretações cinematográficas do ano e que não só será reconhecida como uma das suas mais fortes como uma as mais significativas dos últimos anos.
Continuando com o argumento de Miguel Gomes e Mariana Ricardo, ele dá mais uma prova da sua constante harmoniosa movimentação quando faz uma ligação directa desta Lisboa de um "Paraíso Perdido" ao "Paraíso" colonial quando após encontrarem "Ventura" (Henrique Espírito Santo), "Pilar" e "Santa" ficam a conhecer a verdadeira história de "Aurora" e o que a levou a ser a mulher que conheceram.
Passamos assim de um primeiro momento (o segundo cronologicamente) mais austero e cinzento onde as esperanças da juventude já se dissiparam na sua totalidade, para aquele que na prática representa o crescimento, as esperanças e os sonhos que existiam entre duas pessoas que pela sociedade e pelo regime estavam impossibilitados de assumir o que sentiam um pelo outro, voltando assim à história de "Ventura" (Carloto Cotta) e "Aurora" (Ana Moreira).
Este segundo momento cinematográfico não é tão prometedor em história, que se baseia essencialmente neste encontro amoroso proibido entre as já referidas personagens, mas sim pela sua execução que é não só original como genial. Enquanto escutamos "Ventura" nos seus relatos sobre o que realmente aconteceu em África que marcasse de forma definitiva "Aurora", assistimos os acontecimentos na primeira pessoa quando, nós próprios, somos transportados através de imagens para a África colonial portuguesa e vemos aí os mesmos enquanto jovens num relato semi-silencioso. E porquê semi-silencioso? Enquanto "Ventura" já idoso nos relata os acontecimentos quase como que proferidos palavra por palavra pelos mesmos em juventude, apenas assistimos aos seus lábios a movimentarem-se sem que, no entanto, nenhuma palavra seja directamente proferida por eles. Escutamos todos os ruídos envolventes, os sons do local, dos animais, do vento e dos objectos que lá se encontram mas nenhum deles vem das vozes dos actores que os interpretam.
É esta a genialidade atribuída a este momento que nos faz de facto pensar naquilo que realmente recordamos do passado... Quando pensamos em momentos que ocorreram já há alguns anos, será que nos lembramos deles por aquilo que nos foi dito numa dada altura ou, por sua vez, recordamos sim as pessoas e os momentos em que elas participaram mas sem as exactas palavras que nos disseram nessas mesmas situações? Estes mesmos dizeres são assim substituídos pela narração do velho "Ventura" que recorda também ele a sua participação nos acontecimentos e, de certa forma, a própria intervenção que ele teve nos mesmos, percebendo que foi nessa mesma época que tanto ele como "Aurora" perderam a sua juventude.
São assim todos aqueles pequenos grandes sons que acabam por trabalhar de forma intensa para captar toda a essência da época, da vida, da sociedade e principalmente daquelas personagens e do avassalador romance que viveram em silêncio e que, tal como a época política e administrativa que viviam, se preparava ela própria por implodir e tornar inevitável a sua mudança. Escutamos o vento e a sua mudança, os pássaros, o som das pessoas a saltarem para a piscina, os tiros, os objectos que tocam uns nos outros... tudo menos aquilo que quereríamos escutar... as suas vozes, num aparente exercício do que poderá ser a memória de um indivíduo e que percebemos assim reter mais depressa os instantes que vive do que propriamente as vozes daqueles que fizeram parte dessas mesmas memórias. Se inicialmente achamos que este segmento poderá não funcionar da forma mais harmoniosa e elucidatória possível, rapidamente percebemos que não poderíamos estar mais enganados e que tudo parece funcionar e estar interligado de forma a que toda a história, e suas futuras consequências, funcione e nos sejam assim explicitados os comportamentos de uma "Aurora" excêntrica e desamparada.
E se a interpretação de Laura Soveral é de força, não é mesmo verdade que a de Ana Moreira, que assume a mesma personagem em jovem, se assume como a sua alma pura, livre e intocada. Livre para amar, para ser aquilo que sente e, sobretudo, livre para pode ter as expectativas naturais da sua idade mas que por conformismo e aceitação do "papel" que a idade lhe impôs, acata o óbvio e o naturalmente estabelecido perdendo assim aquilo que mais ansiava... poder viver. Algo que lhe faltaria toda a vida, por auto-imposição, e que mais tarda numa Lisboa sem os seus sonhos se limitaria a recordar o que poderia ter sido e não foi.
Tabu, que tanto pode ser o monte onde parte da acção decorreu como os sentimentos que ficaram por se fazer sentir ou dizer, é assim um filme que rompe fronteiras. Diferente sem ser de qualquer forma estranho ou de difícil compreensão é, em última análise uma história de amor correspondido mas que não se poderia concretizar devido às convenções de uma época e de uma sociedade que era ainda muito fechada em si. Fala de uma geração que tinha os seus próprios sonhos e aspirações mas que, com o tempo, os deixou comprometer ao ponto de os esquecer. Fala de um povo que se esqueceu de olhar o seu passado por mais comprometedor que ele possa ter sido e sobretudo de como esse passado acaba por comprometer um futuro (o hoje) por não o libertar das suas algemas, mesmo que estas sejam imaginárias, e tudo sempre ao som de uma rica e bem quente banda-sonora (aliás um dos elementos bm fortes e emblemáticos deste filme) e que ilustra na perfeição todas estas ânsias e momentos quer do passado quer do presente.
De referir ainda a genial fotografia a preto-e-branco deste filme, da autoria de Rui Poças, que serve como um retrato de tudo o que já foi referido... Da memória do passado já pouco nítida dos pequenos grandes detalhes mas clara quanto aos acontecimentos e, ao mesmo tempo, espelha na actualidade essa mesma desilusão... na cidade, nos momentos, nos espaços e principalmente nas suas personagens.
Tabu é, independentemente do público que consiga reunir em sala, um dos filmes mais emblemáticos da nossa filmografia recente bem como uma elaborada e muito bem interpretada história romântica onde os encontros e os desencontros se tornam quase como uma "personagem" do mesmo. História de amor essa que, por não terminar da forma como podemos inicialmente esperar, se torna invulgar e sedutora, fazendo-nos até esquecer todo o ambiente colonialista prestes a eclodir (a qualquer momento) e que serve de pano de fundo ao próprio filme, remetendo-nos assim para um imaginário de "Paraíso" onde os sonhos, as vivências e as vidas daquelas pessoas poderiam ser alcançados na sua plenitude mas que, quando confrontados com a realidade, mostraram aquilo em que se iriam tornar... "Perdidos".
Intenso, poético e dramático, o realizador Miguel Gomes consegue assim o seu mais forte filme até à data e, com toda a certeza, um daqueles que irá definitivamente marcar a sua esperada longa carreira.
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"Ventura: Sob o manto polido da amabilidade esconde um desespero selvagem."
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9 / 10
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