Ida de Pawel Pawlikowski é uma longa-metragem de ficção polaca e um dos filmes sensação deste ano e que agora tem a sua estreia comercial em Portugal.
Anna (Agata Trzebuchowska) é uma jovem noviça na Polónia dos anos 60 do século passado. Prestes a cumprir os seus votos, Anna conhece Wanda (Agata Kulesza), uma tia que lhe dá a conhecer um terrível segredo do seu passado que remonta aos anos da ocupação nazi.
O argumento de Pawlikowski e Rebecca Lenkiewicz leva o espectador a uma viagem não só pela Polónia comunista como também à sobrevivência do catolicismo na mesma mas principalmente a uma viagem que é feita às memórias, ao passado e àqueles que dele nunca conseguiram recuperar.
"Anna" é uma jovem para quem o mundo sempre se encontrou fechado e desconhecido graças à sua permanência num convento católico desde praticamente a sua nascença. Sem qualquer registo de um passado ou de uma proveniência, a sua educação foi desde o primeiro instante ligada aos ensinamentos católicos que as freiras lhe transmitiram e que, de certa forma, tendo sido a sua única influência lhe parecem a sua mais natural continuidade.
No entanto, é quando "Anna" descobre que as suas origens são judias e que o seu nome verdadeiro é "Ida Lebenstein" que todas as suas convicções são colocadas em causa. Se por um lado "Anna" tem em toda a sua formação moral e educacional os princípios católicos que lhe foram transmitidos, não é menos seguro afirmar que ao descobrir que os seus pais foram primeiro resgatados e depois assassinados por católicos, as suas convicções ficam automaticamente questionadas. Como poderá ela abraçar uma fé que não conseguiu garantir-lhe segurança - e aos seus - e ao mesmo tempo ser professada por aqueles que impiedosamente lhe retiraram os pais de quem não tem qualquer memória?
A seu lado temos "Wanda", a tia distante e aparentemente gélida mas que aos poucos inicia o seu próprio processo de descoberta e empatia revelando, ao mesmo tempo, os seus propósitos até então desconhecidos. "Wanda" sobreviveu à guerra na qual combateu enquanto resistente e é nestes anos 60 uma juíza na Polónia comunista. Uma mulher de relevância na sociedade mas que na sua vida particular não denota qualquer tipo de ligação evidentes pela sua casa desprovida de vida familiar e visível também nos encontros esporádicos que celebra apenas com um propósito de momentânea satisfação sexual.
Se para "Anna" este processo revela-se como de auto-descoberta e conhecimento das suas origens podendo o mesmo colocar em questão todas as suas convicções, para "Wanda" não passa de um conjunto de momentos onde se acentua não só o seu desespero como principalmente a sua espiral descendente de agonia e penitência por um passado que nunca conseguiu ser presente. Se para a primeira este processo é de conhecimento, para a segunda é de confrontação com as suas memórias, com as suas perdas e principalmente com o facto de saber que aquilo que em tempos tivera jamais poderá ser novamente obtido. No fundo, "Wanda" não sabe como sobreviver ao "amanhã" tendo conhecido o "ontem", e aos poucos desaparece - ou tenta - da sociedade que conhece e que parece ter esquecido no seu próprio silêncio.
Ambas vivem com uma identidade difusa. "Anna" parece questionar toda uma existência cristã e católica agora que conhece o mundo - ou pelo menos aquilo que ele aparenta poder ter - para lá das paredes do convento bem como as suas novas origens e raízes e por outro lado "Wanda" vive com o estigma de uma mulher socialmente bem sucedida graças ao seu combate na resistência mas, ao mesmo tempo, atormentada com a memória da família que perdeu. Família essa que é apenas mencionada em dois breves momentos aos quais o espectador precisa de estar com atenção redobrada. Num misto de novos momentos e elementos que silenciosamente parecem querer impôr-se, ambas vivem com a questão de quem serão elas realmente?
É quando a história sobre os seus passados que chega finalmente a verdadeira confrontação... "E agora o quê?!"... Quando todas as perguntas parecem finalmente ter alcançado a sua resposta e que os mortos têm finalmente o seu descanso, o que acontece ao dia seguinte destas duas mulheres? conseguirá uma resistir à confirmação dos seus votos? Conseguirá a outra encontrar paz nas suas memórias?
A magnífica interpretação das duas actrizes cativa o espectador desde o primeiro instante mostrando-lhe duas distintas perspectivas que silenciosamente captam o seu próprio espaço. Duas mulheres de força - e de convicções - que, no entanto, se deixam levar pelos seus extremos na medida em que nenhuma está disposta a conhecer o outro lado com que entretanto se deparam. Para "Anna", a descoberta de uma vida para lá do convento é garantida através de pequenos momentos que se permite viver sem que, no entanto, se comprometa com nenhum deles enquanto que para "Wanda", a ideia de aceitar que a vida continuou apesar da sua perda é também ela impossível de equacionar. Como se sobrevive à perda, ao desgosto e à auto-culpabilização que um passado lhe deixaram como herança?
Os planos semi-reveladores que a direcção de fotografia de Lukasz Zal e Ryszard Lenczewski fornecem ao espectador a ideia de que apenas lhe é mostrado o essencial, os elementos que lhe permitem saber onde se encontra, o que se passa naquele imediato e a perspectiva de que existe todo um novo mundo que nunca é visto mas sim entendido como existindo, fazendo assim perceber que, tal como para as duas protagonistas, existe algo mais que poderá ou não ser visto.
Não sendo o típico filme sobre o Holocausto que nos transporta a uma intensa viagem-relato das experiências de fuga ou de permanência num campo de concentração, Ida é por sua vez o filme registo sobre a importância da memória na formação do indivíduo e sobre a forma como esta afecta de forma inquestionável a sua resistência a um mundo que impiedosamente continuou a avançar não fazendo esquecer aqueles que connosco viveram. No fundo Ida é o filme não sobre o "agora" mas sobre o "e depois" relatando a vida daqueles que sobreviveram de uma ou outra forma.
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9 / 10
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