segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Boy (2014)

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Boy de Bruno Gascon é uma curta-metragem portuguesa de ficção e uma das mais agradáveis surpresas do género fantástico dos últimos tempos.
O que acontece quando alguém se encontra completamente só e (auto)-privado da sua liberdade? O que acontece quando esse alguém se encontra num espaço que mais não é do que a imagem de uma total degradação psicológica sentindo-se preso a esse mesmo local? A resposta está em Boy (Duarte Grilo), que se considera uma pessoa bem comportada.
Bruno Gascon, Joana Domingues, Joana Palminha e João Rui Silva assinam o argumento desta curta-metragem que surpreende não só pela destreza da sua mensagem como principalmente pela forma como aborda questões tão complexas como a solidão e a liberdade não só físicas como principalmente psicológicas, sem esquecer a natural interligação entre ambas. Boy questiona o espectador sobre estas temáticas induzindo-o, até certo ponto, a pensar que as palavras proferidas pelo seu intérprete principal se baseiam essencialmente num relato sobre uma terceira pessoa. Aquele alguém que sofreu por prazer dos outros que lhe induziram práticas de uma qualquer tortura física e psicológica que o limitaram no seu trato e no seu comportamento. "Era perfeito", escutamos a certa altura, e percebemos que esta tortura psicológica granjeava mais ou menos lentamente, uma condição de prisão auto-imposta a alguém que se limitava a obedecer e "respeitar" um sofrimento consentido.
Num casebre imundo e aparentemente abandonado encontramos "Boy" (Grilo), um homem que percebemos ter perdido a noção da realidade, do que o rodeia, das suas limitações e principalmente da sua dignidade graças a um conjunto de abusos aos quais deve ter sido sujeito durante tempo indeterminado. Tempo esse que é, aliás, desconhecido no seu todo. Não sabemos o que se passa para além daquelas quatro paredes. Não sabemos se se encontra só no mundo ou mesmo se este existe tal como o conhecemos. O mundo é, na prática, apenas o interior daquelas quatro paredes que se encontram a "salvaguardá-lo" de tudo o demais (será?).
Talvez o mundo seja algo mais mas, para ele, tudo se resume àquele espaço degradado - talvez uma imagem da sua própria mente e consciência - perdidos no espaço, nas memórias de um abuso não explicado mas que aos poucos ele revela com os seus comentários para o espectador que assiste a alguém perdido e sem retorno. Comentários estes que demonstram o poder (ou falta dele) de um indivíduo atormentado pela dor, pela tortura, pela solidão. Duarte Grilo está perfeito ao encarnar este homem cuja prisão poderá ou não ser voluntária. Sabemos que está isolado e que escuta vozes perdidas na sua memória mas, ao mesmo tempo, será esta prisão aplicada por alguém ou mais não será do que um afastamento de uma sociedade que poderá - ou não - ainda existir? Terá sido forçado a isso ou o afastamento será voluntário? Afinal percebemos que se pode libertar das correntes que o prendem à parede...
São pequenos momentos - de um argumento perspicaz, e ao mesmo tempo abrangente - que nos abre portas para várias hipóteses. Se por um lado pensamos que "Boy" pode ter sido aprisionado naquele casebre, também nos questionamos se existirá algo mais para além do mesmo, ou seja, no mundo. Questionamo-nos ainda se ele se encontra só naquele espaço ou até mesmo no mundo e ainda nos questionamos se este indivíduo não será antes uma vítima de maus tratos, ou de esquizofrenia ou mesmo de alguma patologia mental que forçou alguém a esquecê-lo num espaço perdido - afinal o isolamento pode ter sido provocado e este nunca ter desenvolvido comportamentos sociais adquiridos através da convivência com os outros - e são estas pequenas dúvidas e incertezas que alimentam uma estranha vivacidade num ambiente soturno, degradado e assumidamente decadente que fazem daquela personagem uma alma perdida que esqueceu, ou até mesmo desconhece, elementos básicos de qualquer ser humano.
No final temos apenas uma grande certeza... a de que a solidão mata, quer seja ela voluntária ou decretada por terceiros. Mata mas primeiro condena a mente, degrada-a, fustiga-a e provoca-a com pequenas recordações de algo que se julga ter sido um passado... mas do qual já não se tem a certeza se existiu ou se mais não é do que uma alucinação provocatória que o permite sonhar com algo que não lhe é permitido experienciar. E quando pensamos que tudo está prestes a ser confirmado, eis que se abre uma nova porta... para o desconhecido.
Para além de um thriller bizarro, enigmático e possuidor de diversas leituras, Boy é um verdadeiro ensaio sobre a condição da mente humana e dos limites (ou falta deles) que esta possui. Sobre a sua resistência e sobre a sua capacidade de se manter lúcida quando tudo o demais parece já ter ou estar perdido e que encontra em Duarte Grilo um mestre na sua encarnação - tanto da lucidez como do tormento. De rosto perdido no seu sofrimento à encarnação de um sadismo masoquista impiedoso, Grilo torna-se na expressão de alguém psicologicamente descontrolado ao qual o espectador assiste enigmaticamente sobre os seus potenciais desfechos. Com uma interpretação sólida e francamente dramática, Duarte Grilo assume-se como a alma perdida que a sua personagem (não) encarna.
Tecnicamente há ainda que destacar a qualidade da direcção de fotografia de Carlos Melim que nos transporta para um local tão sombrio como a mente de "Boy" deixando apenas escapar raros apontamentos de luz que fornecem a tal "esperança" onde ela parece já não existir, para a direcção artística da autoria de Pedro Paiva que complementa o próprio ambiente e claro, para o genial rosto que combina todos os elementos através da caracterização de Rita Pereira que dá corpo a um sombrio sentido.
No final resta-nos apenas um tom cantado de forma assustadoramente sombria... "he's got the whole world in his hands..."... ou talvez já (se) tenha definitivamente perdido (d)esse mundo...
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9 / 10
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