sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Pára-me de Repente o Pensamento (2014)

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Pára-me de Repente o Pensamento de Jorge Pelicano é um documentário português em formato de longa-metragem que foi exibido nesta última edição do DOCLisboa.
Neste filme o espectador é levado a uma experiência diferente quando entra no Centro Hospitalar Conde Ferreira, no Porto onde inicialmente acompanha as vivências e conversas de um grupo dos seus pacientes para depois - quase como um complemento à narrativa que inicialmente conhecemos - voltar a entrar no mesmo espaço mas, desta vez, na companhia do actor Miguel Borges que aqui se desloca para preparar uma personagem para um espectáculo no âmbito das comemorações do 131º aniversário do hospital.
Até aqui, pensaria o espectador, "tudo bem". Mais um documentário que se centraria nos preparativos das referidas celebrações e, como tal, longe do lado humano que todas aquelas paredes encerravam esquecendo dessa forma todas as vidas que por lá se encontram e as histórias por detrás da História. Não poderia ser maior o erro! Pára-me de Repente o Pensamento tem, graças à ousadia e coragem de Jorge Pelicano, a capacidade de se descolar do tradicional documentário entregando ao espectador a irrequieta e galopante perspectiva das vidas de um grupo de pessoas que se encontra naquele espaço comum e que apesar do seu habitual ritmo frenético e alegre escondem tormentos pessoais e percepções tristes sobre a sua própria existência.
Se inicialmente acompanhamos - de forma introdutória - alguns destes doentes, com a chegada de Miguel Borges acompanhamos o processo de familiarização do actor com os residentes e, ao mesmo tempo, o início do processo de construção de uma personagem que este espera poder representar e, desta forma, criar um espectáculo que honre os mais de cem anos do hospital. Desta forma deparamo-nos com o primeiro grande elemento deste filme, ou seja, enquanto os residentes lutam para se libertar (ou controlar!) a sua doença - esquizofrenia - que os faz ter uma mente hiper-activa e, de certa forma, descontrolada temos, por outro lado, um actor prestes a embarcar nesse barco abandonando o seu conforto e dando lugar a uma faceta mais descontrolada e ritmada que aglutine todo o frenesim que notamos estar dentro das mentes daqueles homens e mulheres. Se para uns esta hiper-actividade é o malefício maior das suas vidas - uma mente inquieta e que raramente consegue encontrar um repouso e descanso - outro quer experienciar esse lado dando-lhe cor e vida. Se para uns o objectivo é abandonar o sofrimento... para outros o objectivo é encontrá-lo e conseguir assim construir uma personagem cuja mente atormentada pode ali encontrar o seu repouso. 
É a criação desta personagem que capta elementos de todos aqueles residentes como um trabalho cru para a criação do "eu" de palco - a personagem - que leva Miguel Borges a permanecer naquele hospital como um interno. Um dos residentes. Alguém que convivendo de perto com a doença percebe os seus efeitos e a sua realidade. Perguntamo-nos então que realidade? Aquela que ele detinha antes de entrar naquelas portas ou a que passa a ter por conviver e experienciar um conjunto de conversas que de outra forma jamais teria?! Que realidade - ou sua variante - está perante o homem/actor?!
Assim - e não tão lentamente como seria de esperar - Miguel Borges inicia um processo de libertação do seu "eu" para encarnar a personagem que espera alcançar para o seu espectáculo. A personagem - ou talvez não - mentalmente irrequieta, desassossegada cujo pensamento galopa como um cavalo selvagem, veloz, inquieto e instável que aos poucos se consome sem descanso e se atormenta pela (auto-)percepção de que não está bem. De olhos nos olhos encontra-se dor, desespero e agonia mas também amizade, amor e principalmente esperança. Uma esperança que o "sofrimento no mundo das trevas" não seja eterno.
Aquele mundo e aquelas paredes são para aqueles doentes a sua segurança. Fora delas existe apenas uma incerteza e uma insegurança que para eles poderia significar o saltar de um abismo. Ali estão habituados a um espaço que lhes dá o seu mínimo se estabilidade - ainda que meramente fugaz - e sabem que fora daquelas portas muito provavelmente não resistiriam à pressão do "outro mundo" (o nosso). Sentem que fora ali iriam ceder à pressão de se sentirem presos dentro da própria mente, uma prisão sem grades mas que os confinaria ao sufoco de não encontrarem barreiras colocando-os sobre a incerteza de uma vida que poderia ser melhor se não existisse. É nesta percepção e reconhecimento da sua condição e do seu sofrimento, pelo meio de conversas tão banais como o dinheiro, a sorte e a doença que estes homens revelam o quão lúcidos são sobre o mundo e principalmente sobre si próprios. Desta forma, o espectador encontra um registo e uma percepção evidentes da tristeza e da agonia conferidas por uma mente presa sobre si mesma que se condiciona bem como debilita fisicamente.
O mundo acaba para quem morre - dizem - mas também pode acabar para aqueles que se vêem psicologicamente condicionados, presos nos seus pensamentos e na agonia que a velocidade destes pode apresentar. No entanto, é a constatação - e percepção - que cada um deles tem da sua condição que reside o lado humano destes homens que ainda que estando controlados e medicados conseguem de forma lúcida, e alguns até mordaz, tecer brilhantes comentários sobre a vida, a morte e a existência entre ambas e que é captado de forma brilhantemente humana - há que realçá-lo - pelo olhar não clínico de Jorge Pelicano que dá um rosto livre de preconceitos à doença vivida quase sempre num silêncio embaraçoso e constrangedor por aqueles que com ela convivem ou dela padecem.
Pára-me de Repente o Pensamento é um filme que para além de necessitar ser visto tem, antes de tudo, ser sentido e o qual espero que ninguém se esqueça de estrear comercialmente pelas salas deste Portugal.
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"Voz-off: Pára-me de repente o pensamento (...) anda em busca de paz, do esquecimento."
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9 / 10
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