sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O Ninho (2016)

.
O Ninho de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon é uma mini-série brasileira exibida enquanto longa-metragem de ficção na secção Panorama da vigésima edição do QueerLisboa - Festival Internacional de Cinema Queer a decorrer no Cinema São Jorge.
Bruno (Nicolas Vargas) foge do cumprimento do serviço militar para, rumo a Porto Alegre, tentar encontrar o paradeiro do irmão desaparecido há anos. Chegado ao local que o irmão costumava frequentar, Bruno encontra as memórias que ele deixou... os amigos que formou e um espaço onde ele próprio pode expressar o seu ser de forma livre de preconceitos. Bruno encontra em Porto Alegre o lar que sentiu faltar-lhe.
Depois de Beira-Mar (2015), a dupla Matzembacher e Reolon regressa ao QueerLisboa com mais uma intensa história sobre uma descoberta do passado que influencia de forma dramática a percepção de um presente sentido. A dupla de realizadores em parceria com Eleonora Loner escrevem  o argumento desta mini-série - brilhantemente apresentada neste festival enquanto uma longa-metragem - cuja narrativa se subdivide em quatro importantes segmentos (os quatro episódios da mini-série) apelando, cada um deles, a uma distinta fase evolutiva no comportamento e no pensamento de "Bruno", um jovem perdido numa encruzilhada sobre o seu passado (desconhecido) enquanto família e o seu presente a nível emocional e afectivo.
Num primeiro momento intitulado Para Além do Muro do Meu Quintal, o espectador acompanha um jovem "Bruno", perdido numa encruzilhada sentimental onde o seu pensamento oscila entre a memória de um irmão desaparecido que tenta encontrar e o despertar da percepção de um conjunto de sentimentos que nutre - e que vive - no silêncio do seu anonimato.
Oriundo de uma família conservadora e recentemente chegado a uma grande cidade "fugido" do cumprimento do serviço militar, "Bruno" tem apenas um único pensamento... passar o seu fim-de-semana a tentar descobrir um irmão de quem nada sabe há anos. Perdido numa grande cidade onde não tem amigos, não tem sinais físicos do seu irmão e num ritmo de contra-relógio, "Bruno" começa a frequentar os locais que sabe terem sido os espaços do seu irmão. Os poucos detalhes que o espectador recebe sobre a vida desse irmão desaparecido prendem-se exclusivamente com a vida sentimental do mesmo... Sabemos que o irmão de "Bruno" era homossexual, fugido do conservadorismo de uma família que não o queria compreender e que o renegavam à indiferença fazendo dele um dos muitos jovens adolescentes que se vêem perdidos não só na exclusão de seu núcleo primário como depois ameaçados por um mundo que nem sempre está disposto a aceitar a dita "diferença".
Depois de um primeiro segmento em que "Bruno" chega a Porto Alegre, O Ninho entrega um segundo momento intitulado Suave Coisa Nenhuma, no qual o espectador percebe que o jovem militar tem, também ele, os seus próprios segredos sentimentais e que tenta compreender enquanto descobre todo um novo grupo de amigos que - saberemos mais tarde - tal como o seu irmão, compõem a sua nova família longe do lar que, até então, não encontrou. É também neste segmento que "Bruno" conhece "Leon" (Luiz Paulo Vasconcellos), um homem mais velho que viveu uma sexualidade algo reprimida e que tenta lançar auxiliar as novas almas perdidas pela cidade na aceitação de um "eu" que se abre lentamente. Num interessante paralelismo entre o passado e o presente, onde se reflecte sobre o que fora escondido noutros tempos e que é agora conscientemente aceite como parte desse "eu" reprimido, este segundo segmento de O Ninho é aquele onde se estabelecem as amizades que se formam para toda uma vida; os conhecimentos nos quais se encontram - se assim se poderá dizer - os seus "pares"... aqueles que os (se) compreendem e os mesmos que irão formar uma boa parte de uma memória colectiva de um passado vivido com uma maior abertura e liberdade.
No entanto são os dois segmentos finais - episódios 3 e 4 - aqueles que maior definem o clímax dramático de O Ninho na medida em que num primeiro momento são definidas as relações entre "Bruno" e "Stella" - aquela que fora a maior cúmplice de "Leo" - o irmão do jovem militar - quando este chega à grande cidade fugido da família, e no qual são revisitados lugares e momentos da sua juventude e adolescência como que num paralelismo com a vida de "Bruno" que agora procura o seu próprio lugar no mundo. É exactamente neste mesmo segmento que existem todas as dúvidas... será "Stella" algo mais do que uma amiga de "Leo"? Quão cúmplices foram realmente? Desconhecerá de facto o paradeiro do irmão de "Bruno"? Por momentos - e sem revelar muito - o espectador questiona-se, graças a breves indícios, sobre até que ponto não será "Stella" uma extensão de "Leo"... e, por muito absurda que possa parecer a suposição que paira no ar, a realidade é que a relação criada entre ela e "Bruno" parece transcender a de meros conhecidos in loco estabelecendo laços afectivos que parecer caminhar lado a lado como se de dois familiares próximos se tratassem.
Da visita à casa da praia - novamente a paisagem estival fora de época presente na obra de Matzembacher e Reolon tal como no já referido Beira-Mar - este terceiro segmento de O Ninho dá lugar a uma mescla de sentimentos que oscilam entre uma proximidade cada vez mais presente e uma distância muito semelhante àquela da perda... da desilusão e até mesmo a um vazio, as questões levantadas neste momento parecem ser mais e maiores do que aquelas que foram - até então - respondidas contribuindo apenas para a percepção de um perdido "Bruno" de que a sua vida aparenta estar agora apenas a começar. É com isto em mente que entramos nos últimos instante de O Ninho onde "Bruno" tem finalmente de encontrar a sua realidade... aquela que abandonou momentaneamente para encontrar um irmão desaparecido... Alguém de quem nada sabe e que, na realidade, não conhece mas de quem sente a falta como se se tratasse de um membro socialmente "amputado" da sua realidade e da sua vida. É o momento em que "Bruno" tem finalmente de encarar quem são realmente os membros de uma nova família que construiu - e irá construir - com o passar dos tempos... aqueles de quem irá agora despedir-se mas que sabe serem os únicos que alguma vez o irão receber de braços abertos independentemente dos seus actos, do seu passado, das suas posses ou até mesmo das suas escolhas.
Com um elenco que prima pela excelência O Ninho faz destacar a superior interpretação de Nicolas Vargas que capta a essência de um jovem perdido no mundo. Perdido sob uma perspectiva familiar - o tal núcleo base onde se deveria sentir em segurança - mas também perdido a nível afectivo e até mesmo sexual. Vargas capta essa essência sempre através de um olhar - também ele - perdido, mas que faz transparecer a clara convicção de que segue por um caminho que o irá levar ao seu devido destino. No fundo, Vargas faz do seu "Bruno" um jovem que para lá de procurar o destino do seu irmão desaparecido, um que procura as suas próprias raízes - não de origem mas construídas - estabelecendo-as como o local e o momento aos quais pode recorrer em caso de uma necessidade... Ali - numa Porto Alegre aparentemente desiludida - onde sabe que o irão receber sem questionar o porquê da sua chegada.
A acompanhar Nicolas Vargas encontramos ainda uma Sophia Starosta dona de uma contenção emotiva sem limites. Uma actriz que faz da sua "Stella" alguém que espera encontrar num jovem "Bruno" a amizade que perdera com um desaparecido "Leo" sabendo que apenas irá encontrar num uma ínfima parte de outro. A emotividade que faz transparecer da sua personagem são um íman imediato da atenção do espectador que espera que "Stella" rompa uma qualquer máscara que a impede de exalar todos os seus pensamentos. Finalmente, e não menos digno de um devido apontamento pela sua intensidade - também ela relativamente contida -, o espectador encontra Guilherme Bassan que através de "Ariel" - a personagem a quem dá vida e uma alma silenciosa - destila uma emotividade capaz de romper o silêncio da sua expressão desarmando um espectador que já se havia encantado com as duas personagens protagonistas e encontra aqui um actor cuja personagem "rouba" o seu quinhão de protagonismo transformando-o numa das mais importantes desta história.
Emotivo pela sua capacidade emotiva que surge num constante crescendo e que dá vida a uma empatia por parte do espectador que se "cola" ao ecrã com toda esta história de busca e redenção, O Ninho é o franco e honesto resultado de uma belíssima equipa de profissionais - técnicos e actores - preocupados com a sua capacidade de contar uma história - entre histórias - de sentimentos, de perdas, de aceitação e principalmente uma história que conta aquilo que todos procuram na sua essência... aquele lugar... aquele pequeno lugar ao qual se sinta pertencer, livre de julgamentos e sentenças, e a que se possa chamar de lar.
.
.
10 / 10
.
.

Sem comentários:

Enviar um comentário