Rökkur de Erlingur Thoroddsen é uma longa-metragem islandesa presente na competição de Melhor Longa-Metragem Europeia de Terror no decorrer desta décima-primeira edição do MOTELx - Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa que termina no próximo domingo dia 10 de Setembro no Cinema São Jorge, em Lisboa.
Meses depois da sua relação com Einar (Sigurdur Óskarsson) ter terminado, Gunnar (Björn Stefánsson) recebe um telefonema dele que o deixa desconfortável e premonitório de algo que se anuncia sem se identificar. Ao chegar à casa isolada onde Einar se refugiou do mundo, recebem a visita de um estranho que não chegam a ver enquanto revisitam a sua relação e o seu passado. Ensombrados por uma memória que persiste em ressurgir, estarão ambos a viver um sonho ou uma perturbadora realidade?
Vários são os elementos que transformam esta longa-metragem numa das mais fortes em competição. Começando pelo argumento também da autoria de Thoroddsen, Rökkur mantém-se durante as suas quase duas horas como uma história que encurrala o espectador no campo das incertezas e das suposições enquanto que, ao mesmo tempo, transforma toda a atmosfera envolvente num espaço claustrofóbico a céu aberto onde o isolamento auto-imposto dos seus protagonistas se adensa e (n)os consome. Existe algo para lá daquilo que inicialmente compreendemos mas, sem nunca se adiantar aumentando as expectativas do que nos espera, Rökkur apresenta-se apenas como uma história de dois ex-amantes e cúmplices que o destino separou pela inversa proporcionalidade da maturidade de um em relação ao outro sob, no entanto, a perspectiva daquele que se crê mais "adulto".
Aos poucos percebemos que a cumplicidade não se perdeu na sua totalidade. Percebemos ainda que tanto existe por dizer mas que, no entanto, a incapacidade em esperar ou mesmo a vontade de compreender o outro, limitou as escolhas e as percepções sobre o "outro" ao mesmo tempo que esta falta de vontade faz revelar o passado de um "Gunnar" aparentemente mais frio e distante do que "Einar"... a esperada criança perdida. A cumplicidade entre os dois jovens adultos que inicialmente se anunciava como algo inexistente ou perdido com o passar dos meses, revela-se afinal como um "ser" que esperava no canto por ser reanimado enquanto que a forçada idade adulta de "Gunnar" que o transformara num homem mais impaciente e menos predisposto a tolerar a observada infantilidade e caprichos de um "Einar", rapidamente se molda num misto de compreensão e desejo que, afinal, não havia desaparecido dos seus sentimentos. No entanto, existe algo que insiste em pairar no ar e deixar a convivência entre os dois ameaçada.
O espectador sente não uma desconfiança nas intenções dos dois ex-apaixonados mas sim um misto de suspeita sobre o que realmente os ensombra. É este "ser" oculto - que se mantém uma constante desde os instantes iniciais - que apenas poderá ser expiado se os seus passados forem revelados, e é na revisitação dos mesmos em comum que o espectador irá começar a compreender que ambos vivem presos numa infância perdida e numa idade adulta forçada que os irá condenar - se é que esta condenação já não havia chegado! -, confinando-os a uma relação "impossível" em comum mas cobiçada pelos potenciais predadores que os esperam nas sombras de uma Islândia gélida e proporcionalmente assustadora na sua imensidão desértica.
Do coming of age forçada a um clima tenebrosa que se esconde para lá do imaginado - afinal, boa parte de Rökkur ocorre em cenários de vegetação escassa e de espaços abandonados pela mão do Homem -, aquilo que o espectador mantém como certo é que o terror pode surgir através de fantasmas de um passado não resolvido que ganham forma como seres que se escondem "entre nós" e os quais carregamos toda uma vida, e não necessariamente sob a forma de outro "alguém" que espreita, que observa e que congemina enquanto não estamos a olhar. No entanto... e se este outro "alguém" também existir enquanto forma real?!
Se o passado de "Gunnar" e de "Einar" esconde os seus próprios demónios que ganham forma enquanto eles os evitam, não deixa de ser uma questão real que os monstros existem e que se escondem sob a forma humana prestes a atacar a mais inocente e perturbada das vítimas no seu momento mais frágil. O terror afinal pode existir e viver entre nós, entre os mitos urbanos que lhe associamos relativizando a sua acção e, ao mesmo tempo, ele consome a "nossa" força, ganhando coragem e tornando-se mais destemido para poder uma vez mais atacar quando menos se espera. A vítima, quase sempre indefesa pelos seus próprios traumas e temores, fragiliza-se, vivendo numa angústia e num medo de que o dia de amanhã possa ser cada vez mais solitário e amargurado cedendo - sem saber - às caprichos desse mal real que invade e se instala.
Rökkur recria o terror real - aquele que reside no rosto do aparentemente mais pacato - levando-o a entrar dentro da nossa zona de conforto, do nosso espaço mais íntimo quebrando a barreira entre o estranho e o familiar, mantendo o espectador num estado de suspensão que se agudiza lentamente e que apenas se revela quando a premonição (de "Gunnar") se confirma não só para o materializar como principalmente para o salvar - ou talvez não - do mesmo. As gélidas mas intensas paisagens naturais de uma Islândia polida e limpa ganham forma como instrumentos de materialização desse "mal" que espreita e que esconde não só as suas vítimas como principalmente os seus intensos predadores, deixando a criação de um ambiente natural para o mesmo (mal) a cargo de uma música original de Einar Sv. Tryggvason e da direcção de fotografia de John Wakayama Carey que enriquecem essa sensação de solidão, de perda e de transformação.
Com duas sólidas e intensas interpretações de Stefánsson e Óskarsson, Rökkur é aquela longa-metragem surpresa e quase improvável que confirma um novo tipo de terror livre de seres sobrenaturais revelando que os monstros podem não só encontrar-se nas nossas memórias como também na porta da casa do lado.
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8 / 10
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