sexta-feira, 21 de setembro de 2018

A Moça do Calendário (2017)

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A Moça do Calendário de Helena Ignez (Brasil) é uma das longa-metragens em competição na secção Queer Art da vigésima-segunda edição do Queer Lisboa - Festival Internacional de Cinema Queer que termina amanhã no Cinema São Jorge.
Esta longa-metragem conta a história de Inácio (André Guerreiro Lopes), um homem de quarenta anos, mecânico e bailarino em part-time, casado mas pouco dado a laços mais estreitos quer profissional quer sentimentalmente que sonha acordado com a Moça do Calendário (Djin Sganzerla) desconhecendo que ela é militante do Movimento Sem Terra.
A realizadora adapta ao cinema o argumento de Rogério Sganzerla num relato que pretende caracterizar o Brasil dos nossos dias expondo, dessa forma, que passado e presente não estão tão distantes como poderíamos pensar. Tendo como ponto de partida as desventuras pela cidade de São Paulo de um "Rogério" visivelmente pouco preocupado com o mundo que o rodeia, confiante pela sua condição masculina privilegiada - assim o saberemos mais tarde - e que, na prática, nunca abandonou uma juventude que o seu conforto económico lhe possibilitam, vemos o Brasil através dos seus olhos... indiferente, casual, masculino, potencialmente viril e onde a mulher se resume, em certa medida, a um elemento apêndice do homem... mas, nas sombras desta abordagem meramente ligeira, encontramos mulheres em pano de fundo que reclamam direitos e condições de igualdade que, não sendo anónimas, são abafadas por um ruído bem presente.
Vários são os momentos em que o espectador (re)conhece diálogos, discursos ou monólogos femininos que reclamam não só dos direitos tardios da mulher como daqueles que parecem ser dados como uma mera casualidade do seu género e não algo conferido como m (não tão) simples direito como seria de esperar. A mulher, nesta sociedade que se afirma multicultural e diversa, acaba por se revelar como um ser ainda não de plenos direitos e em igualdade de oportunidades mas sim alguém que surge como uma "consequência" de algo que... "sobrou".
É, para este "Rogério", homem branco, heterossexual e privilegiado, uma certeza que o mundo está de portas abertas para o receber... que as suas preocupações, desejos - económicos, sociais e sexuais -, são confirmados, reconhecidos e satisfeitos quando o mesmo deseja.. quando ele espera... quando ele quer... mas do outro lado da barricada encontra-se uma mulher (a sua), que o próprio considera como o tal móvel "lá de casa" que satisfaz as suas necessidades imediatas... tal como um electrodoméstico, um sofá ou mesmo uma cama... tudo tem uma função ao seu redor... também assim a (sua) mulher. Tal esta funcionalidade da mulher que "Rogério" sonha - e não só quando dorme - com a eterna "Moça do Calendário", que povoa o seu imaginário de desejo sexual e a qual reconhece como "a mulher" para a qual ele é capaz de reconhecer existência.
No misto desta sua desventura pela cidade, onde revisita velhos amigos e companheiros de trabalho, onde descobre um Brasil atormentado por uma crise económica e social no qual nem todos os direitos são direitos de todos, onde a educação é cada vez mais um privilégio de poucos, onde a mulher é uma parte da sociedade sem direitos igualitários, onde a cor define oportunidades e onde o dinheiro e a luta de classes ainda se impõem como uma pérfida realidade neste mundo que se diz moderno, o espectador conhece ainda esse tal Brasil em busca de uma identidade - individual e colectiva - interna e externamente que o possibilite de encontrar o seu devido lugar... não basta apregoar diversidade e encantos mil... há que saber reconhecê-los e integrá-los como uma parte inquestionável da sua própria realidade... se este "Rogério" está perdido pelas ruas e no seu propósito existencial... assim também o está este Brasil de 2017/18.
Mas se o dilema de busca de identidade está tão real para a personagem principal como para o país em si, não deixa de ser verdade que A Moça do Calendário enquanto longa-metragem se debate com a eterna questão do conseguir encontrar respostas - ou pelo menos facultar vias para se chegar a elas - para a perfeita harmonização entre ficção e documentário (aqui poderemos encontrar referências para ambos) sem, no entanto, estabelecer lugares comuns para o papel social do homem e da mulher... se no caso masculino a realizadora e argumentista encontram estes lugares comuns um pouco por todo o lado desde a indiferença que "Rogério" perpetua para com a sua mulher até ao momento em que ele, enquanto criança adulta está automaticamente a ser julgado pelo simples facto de ser homem - ainda que compreensível em certa medida a utilização desta abordagem depois da mulher ter sido (e ainda ser) alvo do mesmo julgamento unicamente por ser mulher -, não deixa de ser visível que a mulher aqui é retratada como activista, social e politicamente preocupada com a sua condição e do país mas, ao mesmo tempo, também retratada como uma perigosa predadora quando se mascara de rosto do crime perpetuado de um país visivelmente à beira da ruptura.
Se a realizadora pretende oscilar os dois géneros - ficção e documentário - numa única longa-metragem, o espectador compreende-lhe não só a vontade como a intenção na medida em que consegue identificar os momentos em que ambos são utilizados primeiro pela inserção da perspectiva masculina do mundo quase como um documentário sobre a realidade do país e, finalmente, a do sonho (o potencial documentário) onde são expostos os desejos de uma mulher viril, forte, emancipada, consciente e determinada capaz de tomar o destino pelo seu próprio pulso mas que, tal como nos revela "Rogério", esta parece não mais do que um seu constante sonho... ou será que esta figura não mítica está apenas a passos de distância do seu universo?!
Compreensivelmente com uma necessidade feminista - infelizmente ainda nos encontramos numa era em que existe a pertinência de reclamar por direitos igualitários para as mulheres, um século depois destes terem sido... "conferidos" -, A Moça do Calendário tem, no entanto, certos tiques e lugares comuns que fazem do homem um bicho inconsciente para a realidade feminina. O homem como o tal animal de interesses primários que utiliza a mulher para uma satisfação imediata... comer... tarefas domésticas... sexo... comer... tarefas domésticas... sexo... num ciclo perpétuo não conseguindo (ou querendo) reconhecê-la como outro ser social de idêntica capacidade cognitiva - o segmento em que a mulher de "Rogério" fala de direitos tardios e cujo monólogo é ligeiramente abafado pelo som da televisão... é disso exemplo -, transformando-se por momentos num filme manifesto mas, ao mesmo tempo, criando uma certa abordagem de machismo de saias elucidando(-se) o espectador de que tanto feminismo como machismo podem existir em ambos os géneros não sendo este exclusivos de cada um deles especificamente. Existe quem lute e reconheça a igualdade entre ambos e, de igual forma, quem manifeste a sua misoginia ou misandria... nem tudo é cem por cento limpo... ou cem por cento insípido...
Facilmente perceptível a componente que tenta caracterizar o Brasil de 2018... e um pouco do mundo moderno tal como o vamos conhecendo, A Moça do Calendário não é necessariamente o retrato fiel do bicho homem que martiriza a mulher mas sim a de um homem que ignora aquela que tem a seu lado... Da mesma forma que muitas mulheres foram, felizmente, percursoras do movimento feminista que lhes granjeou com todo o direito os seus Direitos... não poderemos esquecer que alguns homens também lutaram a seu lado... mesmo nos dias que hoje correm. Reduzir todo um género a uma condição de "castrador"... é o lugar comum mais fácil e mais propício para não conseguir criar empatia num público que não é só feminino. Nem tudo é teatro... nem tudo é cinema... e este foi buscar muitos dos seus fundamentos ao primeiro vivendo hoje uma harmoniosa relação e reconhecimento de inspiração...
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