O País das Maravilhas de Alice Rohrwacher foi a longa-metragem da sessão de abertura da Festa do Cinema Italiano a decorrer no Cinema São Jorge, em Lisboa, e a mais recente obra da realizadora de Corpo Celeste.
Gelsomina (Maria Alexandra Lungu), é uma jovem de doze anos que praticamente gere os destinos da família produtora de mel. Num ambiente rural e com o seu próprio conjunto de regras, a família vive perante uma ditadura auto-imposta onde se afastam dos destinos da sociedade dita normal e sobrevivem num mundo onde os espaços e o futuro de todos já se aparenta predestinado.
É quando chega à aldeia o programa de televisão Le Meraviglie - sobre as melhores produções agrícolas do interior rural - que Gelsomina ambiciona poder concorrer e quem sabe vencer o prémio que poderá modificar a vida de toda a família... ou pelo menos mostrar-lhes outras oportunidades.
A também argumentista Alice Rohrwacher dá alma a um conjunto de personagens que são assumidamente espíritos livres. Todos eles, desde "Gelsomina" aos seus pais "Wolfgang" (Sam Louwyck) e "Angelica" (Alba Rohrwacher) sem esquecer as irmãos mais novas são o fruto de um conjunto de ideais hippies que de certa forma desenquadrados do mundo e dos tempos em que vivemos, se isolaram num espaço rural e produzem aquilo que lhes dá o seu sustento. Livres de regras ou de grandes concepções socialmente aceites, o único respeito que têm é para a sua família que tendem a ter sob rédea curta e com um conjunto de referências pouco típicas da liberdade que defendem (os mais velhos).
A vontade de se manterem fora desse mundo para lá das barreiras invisíveis do espaço em que co-habitam, é apenas quebrada quando chega o jovem "Martin" (Luis Huilca) um jovem problemático/delinquente que recebem em sua casa como contrapartida do dinheiro que o estado alemão lhes paga para a eventual reinserção do mesmo. Ainda que silencioso e quase uma presença fantasmagórica, é "Martin" que também desperta o interessa de "Gelsomina". Ainda que também ela de forma silenciosa e conflituosa questione se o mundo - o seu e o de todos - se resume àquele espaço que vê, que sente e ao qual foi obrigada a habituar-se.
A chegada da televisão, do mundo das estrelas aqui encarnado por "Milly Catena" (Monica Bellucci) a belíssima apresentadora de Le Meraviglie, criam o perfeito alinhamento de elementos que uma jovem pré-adolescente assume como conflituosos e aqueles que a fazem questionar o seu espaço - se é que este existe num ambiente claramente assumido como comunitário. Se por um lado "Gelsomina" vai lentamente percebendo que existe muito para além daquilo que conhece do seu dia-a-dia, não é menos verdade que todos esses novos elementos que invadem a aparentemente pacata ideia revelam que aquilo que existe não é necessariamente melhor pois se "Martin" se mostra como o fruto de uma sociedade decadente e problemática, Le Meraviglie e "Milly Catena" evidenciam na intimidade longe das câmaras um mundo de aparência e de inuendos que não se revelam melhores do que aquilo que conhece e, mesmo que estes cheguem com simpatia transmitindo uma nova
sensibilidade e afecto não tão típicos ou naturais e aos quais não está
habituada, é quando "Gelsomina" mostra a sua magia e encanto que desarma todos aqueles que dela estão próximos mostrando uma pureza desconhecida dos demais, como se de uma lenda de tratasse.
Ainda que sem a magia de uma Toscana turística à qual o espectador está tão habituado, Le Meraviglie prima por uma tonalidade e ambiente quente e de certa forma familiar... Algo que se sente estar próximo. Percebemos que no seio daquela família de origem germânica que encontrou o refúgio - o seu - existe uma alma indissociável do próprio ambiente geográfico, aliás é este que também contribui para a sua formação, e que esta não se apaga mesmo quando escasseiam outros aspectos mais materiais que tantos procuram incansavelmente. E no final, ainda que o mundo pareça ser grande demais existindo tanto por conhecer, é naquele pequeno espaço que estão as suas raízes, o seu "povo" e a sua terra que tanto caracteriza a jovem "Gelsomina".
Ainda que aparentemente não seja um filme fácil ou que cative pelas suas primeiras imagens, Le Meraviglie, à semelhança do que já acontecera com Corpo Celeste, impele o espectador a questionar-se sobre as origens, sobre o seu meio e especialmente sobre a importância que este teve na sua formação independentemente dos diferentes rumos que cada um tenha seguido.
Bruto mas ao mesmo tempo terno, Le Meraviglie equaciona que é bem no final que a força das raízes e do "sangue" determinam onde pertence cada um de nós, confirmando ao mesmo tempo que Alice Rohrwacher é um nome que conquistou o seu espaço na realização de grandes obras.
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8 / 10
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