Os Equilibristas de Ivano De Matteo presente na secção competitiva da 6ª edição da Festa do Cinema Italiano de Lisboa, foi anunciado por Stefano Savio, director da Festa, como "um dos grandes filmes italianos do último ano ao qual poucas pessoas prestaram atenção". Se em Itália poucos deram conta que este filme estrou não posso saber... mas que este é decididamente um dos grandes filmes do ano... não tenho a menor das dúvidas.
O riquíssimo e muito actual argumento escrito por De Matteo e Valentina Ferlan apresenta-nos logo de início um momento mais intimo e de claro desejo que só mais tarde iremos perceber como se explica. Aos poucos conhecemos Giulio (Valerio Mastandrea) e Elena (Barbara Bobulova), um casal pais de Camilla (Rosabell Laurenti Sellers) e Luca (Lupo De Matteo), que vivem uma aparentemente normal existência típica de uma família moderna. No entanto, aos poucos sentimos que existe um presente mal-estar que atormenta Elena, e que ela está prestes a ceder à pressão que sente.
É então que os instantes iniciais deste filme nos mostram o porquê dessa pressão e como ela está a afectar a vida de um casal que tem no seu seio a traição momentânea, mas determinante, de Giulio e como esta pode terminar definitivamente o conceito de família como até então o conheceram.
Para bem da família e como a última esperança de que esta venha um dia a recompôr-se, Giulio sai de casa e inicia um processo de estabilização. Primeiro em casa de um amigo, depois pelo processo de alugar a sua nova casa passando pelas dormidas em pensões sempre duvidosas pois são as únicas para as quais ainda consegue ter dinheiro. O segundo trabalho, o dinheiro para os filhos quer para a escola quer para as suas saídas e divertimentos, as dormidas no carro e finalmente a única fuga que vê como possível para pôr um final ao seu desespero.
Tendo como ponto de partida a traição matrimonial cometida por "Giulio", este filme vai muito para além deste assumidamente problemático encontro sexual. Aqui o que realmente está em causa é toda uma sobrevivência pós-traição que lança este homem para o início de uma segunda vida onde já tem, obviamente, todo o peso das responsabilidades que ao longo dos anos foi construindo, nomeadamente a existência de dois filhos que tem de sustentar. É neste exacto momento que transporta-nos para o nosso subconsciente a noção e o sentido do próprio título deste filme, Os Equilibristas que, face a um mundo em constante mutação e que não pára ou espera por ninguém, está duro e impiedoso para com aqueles que não o conseguem acompanhar. Um mundo repleto de pessoas normais que vivem numa luta diária para conseguir todos os dias, cada dia, chegar ao final do mês ultrapassando todas as dificuldades económicas que sentem ao longo deste processo e onde as despesas se acumulam e o dinheiro parece não chegar para sobreviver mais um dia, numa procura do equilíbrio que parece nunca chegar.
E é exactamente neste momento em que tudo parece desmoronar num instante, perdendo pouco a pouco não só os seus bens como também o seu conforto, bem-estar e especialmente a sua dignidade que percebemos que a vida de um indivíduo pode, a qualquer momento, transformar-se radicalmente ao ponto de estar ameaçada a sua própria existência tida, até então, como certa. Lançado num mundo real, que já desconhecia, para começar uma vida nova, "Giulio" é um homem perdido no tempo onde a crua realidade sobrepõe-se à sua existência através de novas barreiras com o próprio valor do dinheiro que tem em comparação com os preços daquilo que precisa pagar, dos acessos e dos apoios que existem (muitos dos quais o próprio administrava através do seu trabalho na câmara) que parecem não chegar ou em nada facilitar, ele é no fundo um homem perdido que apenas tem um único caminho a seguir na esperança de que algo (seja o que fôr) mude lá ao fundo, sendo que para lá chegar vai ter obrigatoriamente de conhecer todas as profundezas que uma sociedade que espreita para devorar mais uma vítima desprevenida.
Esta é a verdadeira crise... Aquela que primeiro retira um bem, depois outro... de seguida os apoios e finalmente a dignidade que, uma vez perdida, faz esquecer qualquer réstia de esperança no dia de amanhã que se torna absolutamente irrelevante se irá chegar ou não. É neste exacto momento que o próprio sentido da vida, para aqueles que ainda conservam algo que se assemelhe a uma, deixa de existir e a única escapatória possível será mesmo pôr um fim a uma luta que não dá frutos e a uma vida que parece ser apenas destinada para descer cad vez mais para um fundo que não chega.
E ao ritmo do argumento acompanham-se extraordinárias interpretações. Para quem me conhece começar a falar de Valerio Mastandrea é iniciar um conjunto de elogios que não irão tardar. "Parcial" poderiam muitos dizer mas o que é certo é que Mastandrea consegue simplesmente com um silêncio e um olhar transmitir um conjunto de emoções e arrepios que quase nos cortam o ar que respiramos, pois percebemos que aqueles momentos pelos que o seu "Giulio" passa são, independentemente dos momentos que levam a lá chegar, realidades para qualquer um de nós. Percebemos que o desespero e a imagem de um fim que não chega e que massacra a todos os instantes são efectivamente possíveis de acontecer a um qualquer indivíduo.
A sua interpretação é não só avassaladora como estabelece uma relação próxima com o espectador que o acompanha na sua intensa descida a um inferno desconhecido que percebemos apenas ir ter um único final para o qual queremos uma rápida intervenção... venha de onde vier. Ele sente e reconhece o erro momentâneo (mas fatal) que cometeu com a sua traição. Ele sabe que vai ser difícil para a sua mulher de o esquecer, e tenta com todo o seu esforço e cumprimento das obrigações familiares que nunca param de aparecer, colmatar esse mesmo erro e encontrar uma qualquer redenção que tarda em aparecer, e sabemos que todo aquele suplício (pelo qual tantos e tantos passam como podemos constatar na dura realidade do almoço de Natal) é mais do que castigo para uma pessoa conseguir suportar, e é assim que aos poucos se vai separando dos poucos conhecidos que tem e principalmente da sua família que não quer preocupar com a sua cada vez mais debilitada condição. Mastandrea tem assim um profundamente emotivo desempenho que não deixa ninguém indiferente ao seu sofrimento (e que deixou a sala do São Jorge num absoluto silêncio), ao mesmo tendo que nos obriga a reflectir sobre todas aquelas pessoas que passam anónimas ao nosso lado com os seus problemas que, apesar de escondidos pelos mesmos, são revelados por uma sociedade que não perdoa a mínima falha, e que mostra todas as fraquezas ou incoerências políticas e sociais de apoio a todos aqueles que vão sendo "colhidos".
Impossível não destacar ainda a interpretação de Barbara Bobulova como a mulher ferida e com um próprio caminho individual em que, até então, não havia pensado bem como uma agradável revelação pela parte de uma inspirada Rosabell Laurenti Sellers que interpreta a jovem rebelde mas atenta e preocupada filha de "Giulio" e "Elena" e que, à semelhança de Mastandrea, muito me agradaria ver nomeada ao David da Academia Italiana de Cinema este ano.
Finalmente refiro três factores técnicos mas que são determinantes para a contribuição dramática deste filme. O primeiro sendo a fotografia de Vittorio Omodei Zorini que transforma toda uma quente e vibrante Roma, numa cidade fria e desprovida de sensibilidade, no mais cru e bruto retrato de uma cidade e sociedade que assistem indiferentes às vidas daqueles que por elas vagueiam como se não tivessem (e na prática muitos não têm) um rumo e um caminho para seguir. Onde a dor de um se percebe ser a dor de tantos que a sofrem em silêncio e no escuro, sózinhos no seu próprio problema e na companhia de vários que, como o próprio, foram levados a um lado (in)voluntariamente desconhecido da sociedade da qual lentamente também se vão alienando.
De seguida é de referir a magnífica, assombrosa e emotiva banda-sonora de Francesco Cerasi que tão depressa nos dá um retrato dos tempos áureos vividos em felicidade por aquela família como, instantes depois, nos transporta para um mundo vazio de esperança que consegue muito rapidamente emocionar-nos lançando-nos também numa melancolia pela realidade vivida por aquele homem, e finalmente a própria caracterização que transforma de momento a momento, o "Giulio" de Mastandrea num homem que atinge rapidamente não só os seus próprios limites como também os limites de uma degradação humana que desconhecia.
Os Equilibristas é não só o melhor filme desta 6ª edição da Festa do Cinema Italiano (e o qual assumo esperar ver premiado) como também, seguramente, um dos melhores filmes estreados este ano numa sala de cinema... seja através de um festival seja comercialmente. Este é um daqueles filmes que tem obrigatoriamente de ser visto e que transforma definitivamente Mastandrea como um dos actores do momento.
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10 / 10
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