La Leggenda di Kaspar Hauser de Davide Manuli presente na secção Altre Visioni dedicada a um cinema mais experimental e alternativo desta 6ª edição da Festa do Cinema Italiano de Lisboa foi a mais improvável e agradável surpresa do ano.
O trailer já fazia antever um filme bastante diferente onde a palavra "alternativo" se adequava na perfeição, e a apresentação feita por Stefano Savio, o director da festa, quando nos deseja uma "boa experiência", foi no mínimo uma preparação (tímida) para aquilo que estava prestes a assistir.
O argumento, ou se melhor lhe quisermos chamar de linha condutora (a haver uma) deste filme, foi também ele escrito por Davide Manuli, inspirado na figura de Kaspar Hauser, um jovem abandonado na Alemanha do século XIX que, segundo dizem as lendas, estava ligado à família real de Baden e que teria alegadamente passado boa parte da sua jovem vida aprisionado e afastado de qualquer contacto com outras pessoas o que, em última análise, o teria impossibilitado de desenvolver uma comunicação verbal clara e explícita, até à sua prematura morte e que o levou a ser considerado como o "filho da Europa".
Esta falta de comunicabilidade é o ponto de ligação entre este Kaspar Hauser do século XIX com o que Davide Manuli aqui pretende recriar. O filme inicia como uma breve referência introdutória a este filme e associa a chegada do "nosso" Kaspar como ao regresso de um Messias há muito esperado, e todo o relato que a seguir nos espera está, para os mais atentos, repleto de sinais que o indiciam como o Jesus que tantos esperam.
Estamos numa praia desabitada algures no Mediterrâneo, numa época imprecisa mas que adivinha ser um período no qual a Humanidade vive uma qualquer provação e escassez de valores que a faz esperar por uma estranha salvação.
Esta pequena e peculiar localidade tem um conjunto muito restrito de habitantes (pelo menos aqueles que nos são apresentados), dos quais fazem parte um xerife DJ (Vincent Gallo) que é o primeiro elo de ligação de Kaspar Hauser (Silvia Calderoni) com a comunidade, Pusher (também Vincent Gallo) um assassino contratado para os trabalhos sujos e amante da Duquesa (Claudia Gerini) que controla com pulso de ferro essa mesma comunidade e que vê em Hauser a única ameaça ao seu poderio. Um padre (Fabrizio Gifuni) que se rende à chegada do Salvador e ainda uma psíquica/prostitua (Elisa Sednaoui) que aos poucos se mescla com Hauser, numa evidente ligação à relação Jesus Cristo - Maria Madalena. A finalizar esta peculiar população temos ainda um emissário da Duquesa naquela que é uma das mais bizarras personagens de todo o filme e um silencioso homem que usa a sua mula para transporte dos mesmos quando necessário.
É então a chegada deste Messias que preocupa o poder dominante naquele pequena e perdida localidade onde aparentemente nada acontece e os poderes instituídos estão assumidamente garantidos por uma Duquesa que, não querendo perder este controlo dos demais, inicia uma investigação cerrada a este estranho forasteiro que (in)conscientemente a ameaça, e com a ajuda de Pusher decide como se libertar de tão perigoso inimigo.
É então que, Kaspar Hauser, numa comunidade sem qualquer referência ou aparente liberdade consegue, sem uma comunicação verbal dita convencional, estabelecer um diálogo que através do poder da música, das emoções e dos sentidos que esta exalta, comunicar com todos os demais libertando-os assim do poder estabelecido pelo vazio e ausência que outrora havia encontrado.
De facto, e como referia o director do festival, este filme é mesmo uma experiência e deve ser encarado como tal. Aparentemente uma história surreal num ambiente fora do normal possuímos de imediato uma premissa sobre a qual vale a pena reflectir que se prende com o facto de se centrar toda a acção num local isolado longe de tudo e todos que tem como uma consequência directa a desolação do próprio espaço. Tudo o que de pouco nos rodeia indica que aquele lugar, outrora habitado, está agora perdido no tempo e no espaço onde apenas um conjunto de "alegres" sobreviventes se decidiu refugiar. Não existe qualquer sinal de vida para além das já referidas personagens sendo que, no entanto, temos algumas leves referências a um maior conjunto populacional que, na prática, nunca chegamos a ver.
Manuli vai mais longe ao conseguir estabelecer a única forma de comunicação aparentemente viável junto de uma população que não consegue comunicar entre si. Do pouco que retemos desta comunidade, o único factor assumidamente correcto é que a dificuldade de comunicação entre a mesma é quase uma impossibilidade, e é através dessa mesma impossibilidade que alguns poucos prosperam através de um sistemático controle até então não questionado.
"Kaspar Hauser" chega assim a uma comunidade que espera desesperadamente por aquele que irá trazer uma qualquer libertação desse mesmo poder. Assim, num local onde comunicar é impossível qual a melhor forma de um DJ chegar àqueles que "O" esperam? Somente pela música, essa forma de comunicar que não precisando de qualquer palavra consegue transmitir um conjunto múltiplo de sensações, emoções e libertação jamais conseguido através de qualquer outra forma de comunicação, menos ainda quando essa é verbal. E é esta mesma libertação que ameaça um poder instituído da "Duquesa" que se sente assim enfraquecida, tendo então como único objectivo tornar "Hauser" num charlatão, sendo assim repudiado pelos demais, e nunca num idiota que originaria a simpatia e a piedade dos mesmos. Primeiro há que colocar na lama o nome de um indivíduo e só depois, quando já não reunir o apoio popular, o poderá eliminar definitivamente.
Continuamente, o argumento de Manuli vai mais longe ao criar claras referências históricas e bíblicas entre Kaspar Hauser e Jesus, que são evidentes ao longo do filme. Começando pela própria forma com que Hauser aparece no filme... através do mar sendo que, não andando sobre ele, torna-o no entanto o elo de ligação ao Messias de há dois mil anos. Temos ainda a nova ligação presente no momento em que "Hauser" balouça e tem o primeiro contacto com o "Padre".... Se estivermos atentos reparamos que além dos phones que sempre o acompanham, Hauser tem ainda uma espécie coroa na cabeça e é tratado pelo Padre com um devido respeito e admiração que o caracterizam como "O" salvador dos Homens.
Finalmente num dos longos segmentos de música temos um "Kaspar Hauser" e a "Psíquica/Prostituta" cujas sedutoras imagens quase se (con)fundem numa alusão que poderá ser comparada à união (nunca confirmada) de Jesus com Maria Madalena, e mesmo a morte de Hauser através de um tiro no peito poderá ser comparada à de Jesus Cristo na cruz com a lança no mesmo local.
Davide Manuli cria um claro espectáculo visual que tem tanto de surreal e avant-garde como de político e social. Se por um lado temos uma extravagante e desconcertante história com personagens bizarras e descontextualizadas de uma sociedade tal como a conhecemos, não é menos verdade que as mesmas são retratos de vários poderes instalados que, bem analisados, tão bem conhecemos e revemos ao longo dos tempos e que em certa medida explicam (não justificando) o porquê deste filme estar ainda por estrear numa sociedade vaticanizada como é a italiana na qual este filme tem a sua origem. Além de não ser um conto tradicional e convencional, temos ainda aquele que poderá ser o mais polémico de todos os aspectos que se prende com o facto do nosso Kaspar Hauser (ou Jesus) ser aqui interpretado por Silvia Calderoni... uma mulher. Da água nasce vida... da muher nasce vida. Mas, no entanto, todos nós sabemos pelas regras e normais instituídas que Jesus foi um homem. Assim até que ponto poderá ter este filme uma vida, por muito curta que seja, num país que vive repleto de dogmas e certezas religiosas como Itália?
As interpretações têm tanto de bizarro como de importante na composição deste filme, sendo que são de destacar as de Vincent Gallo que aqui tanto se assume como o "xerife DJ" como "Pusher", estando assim nos dois lados da história contribuindo de forma inegável para ambas, não deixando de referir que tem um dos momentos mais bem conseguidos do filme quando, logo no seu início, nos entrega um duelo de dança numa praça central completamente desertificada.
De destacar ainda a "Duquesa" ultra-sensual dominatrix que a composição de uma assumida leading lady do cinema italiano Claudia Gerini compõe, e que um pouco mais desenvolvida seria certamente considerada uma das vilãs do ano. E finalmente Silvia Calderoni que entrega um(a) "Kaspar Hauser" tão alucinado como os demais mas, pensando bem, num mundo onde a ordem e o sentido parecem não existir, um Messias só poderia ser de igual calibre.
E se a nível de composição este filme vence pela excentricidade e pelo surrealismo apresentado, é também verdade que a nível técnico é um claro e evidente vencedor. Não só pela brilhante e enigmática fotografia de Tarek Ben Abdallah que transforma toda a paisagem da Sardegna, onde decorreram as filmagens, num ambiente desertificado, rude e bruto típico de cenários apocalipticos, onde apenas personagens de idêntico calibre conseguem (sobre)viver, como também a banda-sonora da Vitalic o transformam numa experiência quase sensorial que não só nos hipnotiza como seduz fazendo-nos por breves momentos deixar levar o nosso corpo e mente para um qualquer patamar que tem tanto de estranho como ao mesmo tempo de apelativo.
No final, depois de tudo decorrido, sabemos realmente que atravessámos uma experiência diferente, bastante alternativa, mas há qual não ficamos em nada indiferentes e mesmo que alguns teimem em dizer que não, o que é certo é que este filme consegue estanhamente seduzir-nos e cativar-nos pela sua excêntrica originalidade tornando-se assim numa clara referência que, infelizmente, poucos irão ver. Felizes daqueles que conseguirem ter a oportunidade.
8 / 10
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