O Fantasma de João Pedro Rodrigues é uma longa-metragem portuguesa de ficção e sem margem para dúvida a mais emblemática do realizador de Odete (2005), Morrer como um Homem (2009) e A Última Vez que Vi Macau (2012) e que fora seleccionada para o Leão de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Veneza.
Sérgio (Ricardo Meneses) trabalha na recolha de lixo. Distante e sem qualquer tipo de amizade ou relação, resiste a Fátima (Beatriz Torcato) que parece nutrir por ele uma atracção. O seu único vício são os ocasionais encontros sexuais com outros homens em locais públicos e o voyeurismo inerente a qualquer relação tida como proibida.
É apenas quando conhece João (André Barbosa), um nadador que olha para ele de forma indiferente, que Sérgio desenvolve uma estranha obsessão em vê-lo, estar perto dele e de alguma forma dominá-lo tornando-se assim no seu objecto de desejo.
João Pedro Rodrigues em colaboração com José Neves, Paulo Rebelo e Alexandre Melo escrevem este argumento que nos transporta para o lado "oculto" de uma cidade que dorme enquanto para alguns toda a acção se desenrola. Longe de imagens bonitas e iluminadas de uma Lisboa viva, O Fantasma leva-nos antes para aqueles locais que ninguém frequenta e para os espaços que ninguém vê, remetendo assim o protagonista para uma existência oculta onde ele de forma anónima ganha uma vida e uma consequente transformação que possam saciar os seus desejos carnais e assumidamente animalescos.
A solidão - auto-imposta- de "Sérgio" funciona não como o retrato de um jovem inadaptado num mundo que lhe é estranho mas sim como a forma pela qual opta para pôr em prática os seus desejos e ímpetos sexuais. Em nenhum momento presenciamos qualquer tipo de afectividade da sua parte para além daquela que tem com "Lorde" - o cão mascote do local de trabalho - e todas as demais interacções que desenvolve com os demais são, sem excepção, complementadas com algum tipo de índole selvagem; desde a pacata "Fátima" que morde para não beijar e principalmente nos encontros sexuais que desenvolve num wc público, com um polícia algemado dentro de um automóvel ou mesmo na sua obsessão com "João". Para ele tudo é animalesco, violento e suficientemente rápido para satisfazer o seu ímpeto sexual de momento. Aliás, é este lado selvagem que vemos ser o mais desenvolvido por "Sérgio" que aos poucos denota não só um comportamento maníaco como inclusive parece transformar-se ele próprio num animal que satisfaz desejos e necessidades básicas como comer ou defecar nos lugares mais impróprios ou até mesmo demarcar o seu território no quarto de "João".
A mesma solidão que transforma "Sérgio" neste aparente animal que se vai mentalmente deteriorando e que lentamente se começa a confundir com as sombras da cidade, fugitivo de qualquer contacto tal como um animal abandonado que apenas se aproxima quando precisa satisfazer uma necessidade - sendo o desejo o único motivo pelo qual interage com outro ser humano - e que de tudo o demais se afasta com desconfiança desprovendo-se de identidade, de nome e até do dom da palavra num processo anti-evolutivo notório, encarnado a sua nova pele através de um fato de látex preto que veste e que o descaracteriza.
Desta forma aquilo que predomina em O Fantasma é todo um imaginário homo-erótico onde o desejo e alguma violência são impostos a/por "Sérgio" que se relaciona com os demais apenas como objectos para a sua própria satisfação. Não há aqui qualquer tipo de identificação entre as personagens, nem tão pouco alguma vontade para que esta se concretize de alguma forma. Aqui o que existe é a satisfação sexual momentânea - e de alguma forma proibida por não querer ser assumida por ninguém - tida nas sombras de uma cidade que esconde os prazeres fetichistas de dominação e submissão bondage de um grupo de indivíduos mesclando sexo com poder - o seu uso e a sua mais ou menos voluntária abdicação.
Ricardo Meneses na sua única participação cinematográfica até à data e que fora nomeado ao Globo de Ouro SIC/Caras de Melhor Actor do ano, tem uma interpretação que não só é explícita na personificação do seu desejo como é enigmática ao reflectir um pouco daquilo que seriam as seguintes personagens das obras de Rodrigues. Personagens essas que assumem dois importantes aspectos sendo o primeiro deles uma evidente repulsa pelo corpo que têm desejando num crescendo algo que vêem e cobiçam como, em segundo lugar, denotam também uma clara transformação de personalidade como podemos verificar com a "Odete" de Ana Cristina Oliveira no já referido Odete (2005) ou até mesmo com a "Tonia" de Fernando Santos em Morrer como um Homem (2009) como consequência da não identificação e relação entre corpo e mente, assumindo lentamente a sua verdadeira personalidade em processos mais ou menos sofridos e igualmente solitários.
E ainda que as obras de João Pedro Rodrigues possam ser voyeuristas ou explícitas quanto baste atraindo assim um conjunto de curiosos, não é menos verdade que a verdadeira mensagem das suas obras se centra neste exacto aspecto, ou seja, como viver num mundo que já tem papéis e "espaços" definidos prontos a ser desempenhados por cada um de nós e que é por vezes desafiado por aqueles que sentem não se inserir nos mesmos entrando assim num processo de repulsa e auto-degradação que apenas poderá culminar com a insatisfação e consequente loucura dos não conformados.
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