segunda-feira, 20 de abril de 2015

Em Branco (2015)

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Em Branco de Luciano Sazo é uma curta-metragem portuguesa de ficção que estreou hoje em Lisboa e que nos conta uma história bem actual.
Paula (Cleia Almeida), é uma mulher de trinta anos. Sem filhos ou qualquer relação próximo à excepção da de uma amiga (Oceana Basílio) que ocasionalmente escuta os seus desabafos.
Há oito anos que convive de perto com a doença de Armando (José Neto), o seu pai que vive com Alzheimer. Talvez esta seja a sua mais fiel companheira pois acompanha-a bem de perto fazendo-a esquecer da jovem mulher que é.
Para quem segue a ainda "jovem" - e promissora - carreira de Luciano Sazo, uma marca é já característica e reconhecível nos seus filmes, ou seja, existe em todas as suas curtas-metragens uma personagem central que capta de imediato a nossa atenção e a qual está normalmente "inadaptada" de um meio social dito "normal". Se em Eu, Martim (2012) e Clarisse (2013) a encontramos sob a forma de dois jovens desenquadrados do seu meio e desesperados por um pouco de protagonismo - cada um à sua própria e especial maneira - e se em Talvez (2013) temos dois protagonistas inadaptados pelo seu inconfessado e por confirmar amor, em Em Branco temos uma jovem "Paula" inadaptada por ter abdicado de toda a sua jovem vida em nome da família que sente ter de cuidar antes de tudo o mais, inclusive de si própria.
Ao acompanhar "Paula" - num brilhante registo de Cleia Almeida para quem adivinho e desejo uma carreira muito longa - seguimos todo um seu trajecto de silêncios. Aqueles silêncios que inicialmente se adquirem por cansaço de proferir uma palavra e estabelecer uma conversa mas que, pela sua habituação, se tornam uma parte de nós constituindo todas aquelas conversas que abdicamos e esquecemos de ter e que aos poucos se transformam num traço característico que nós não reconhecemos mas com os quais os "outros" rapidamente nos identificam. No fundo, de que interessam certas banalidades e trivialidades do dia-a-dia quando no nosso íntimo nos apetece gritar sobre um qualquer desespero que aos poucos se acumula no nosso pensamento? De que valem essas pequenas e desinteressantes conversas tão típicas de uma certa idade, quando na realidade já amadurecemos o suficiente para sermos mais velhos do que a maioria das pessoas mais velhas que conhecemos? De que vale pensar no "eu" quando lá fora existem tantos problemas difíceis de resolver e que já nos ocupam tempo suficiente sendo, na sua maioria, questões que não desaparecem facilmente e com as quais temos de conviver diariamente?
Esta é uma breve e não tão simples caracterização de "Paula". Uma jovem mulher que não se tendo esquecido de si colocou-se, no entanto, como o último problema a resolver. Ela apenas precisa do essencial... dormir umas horas... alimentar-se um pouco e trabalhar fora de casa como forma de garantir que as contas correntes são pagas. Para lá destas necessidades tidas como básicas tudo o demais é excedentário. "Paula" vive num silêncio contido. Sabe que tem de cuidar do seu pai como se fosse ela agora a mãe, sem esquecer um irmão mais novo que tem obrigatoriamente de encaminhar para uma vida onde os estudos - e o seu futuro - está em primeiro lugar. Alheada de tudo o demais, é já bem perto do final que "Paula" faz a tão importante questão "E agora?". O que será da vida dela quando já não tiver um pai de quem tratar ou um irmão que já não precise de tanta atenção. O que acontecerá quando os tais silêncios começarem a dar lugar a vazios que precisam ser novamente preenchidos por algo mais do que a sua tão eloquente presença? O que acontecerá quando "Paula" finalmente perceber que ainda se encontra viva? E finalmente, o que acontecerá quando ela perceber que tem de dar o próximo passo tendo como objectivo o seu "eu" e não dependendo das necessidades alheias?
Ainda que uma doença vivida essencialmente no silêncio de quem a sofre e nos tabus daqueles que a presenciam, o Alzheimer é aqui tido quase como um tema secundário que dá sim mote à relação estabelecida entre os elementos de uma família que vivem na sombra da cumplicidade que em tempos ditos lúcidos tiveram. "Paula" vive dedicada a um pai que sem a sua ajuda estaria perdido não só nos seus próprios pensamentos mas também numa sociedade que ainda não compreende aquela doença que nem o próprio sabe dela padecer. Existe, aliás, um único momento em que o "Armando" de José Neto dá um breve mas revelador sinal e olhar de perceber a sua condição debilitada. O mesmo momento em que de forma desarmada parece estar prestes a ceder num pranto de desgosto face à condição que percebe - agora - sofrer. Talvez o mesmo momento que (in)voluntariamente o fez desistir e finalmente ter o descanso que lhe é devido. Se prova era necessária de que o cinema nos transmite uma mensagem sem ser necessariamente precisa uma palavra foi aquele em que um simples olhar comunicou todas as emoções de uma vida.
Se existe filme que lance um realizador para "outro patamar", Em Branco acaba de fazer essa missão para Luciano Sazo colocando-o como um interessante e genuíno contador de histórias sobre gente comum, real e com as quais nos cruzamos todos os dias sem dar conta, valor ou tão pouco considerar todos aqueles pequenos grandes dramas pelos quais poderão estar a atravessar.
Destaque positivo também para a expressiva direcção de fotografia de Alexandre Valentim que com a sua constante ausência de luz coloca o espectador num espaço fechado, quase ténebre, onde todos os sonhos ficaram esquecidos e onde está constantemente presente o peso das responsabilidades, apenas entregando algum plano aberto e claro quando se desviam os olhares do interior daquela casa que se sente pesada e frequentemente claustrofóbica fazendo-me lembrar por momentos alguns planos captados sob a mão de Leonardo Simões para Cavalo Dinheiro ou A Vida Invisível. E finalmente uma nota igualmente positiva para a sentida direcção musical de Miguel Pereira, Diogo Jourdan, Filipe Goulart - música que "Paula" escuta pelos seus phones enquanto caminha e que funciona como uma quebra entre a tensão existente ao longo da narrativa - e Jorge Prado - com o carismático fado final - que acompanha a constante melancolia sentida pelas personagens de Em Branco e que se faz sentir como uma personagem não visível mas presente deste filme.
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9 / 10
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