Aqui, em Lisboa: Episódios da Vida da Cidade de Dominga Sotomayor, Denis Côté, Gabriel Abrantes e Marie Losier é uma longa-metragem portuguesa composta por quatro distintos segmentos dirigidos pelos quatro realizadores já premiados no IndieLisboa - Festival Internacional de Cinema Independente, e que foi exibido ontem no Cinema São Jorge tendo esgotado a Sala Manoel de Oliveira.
O primeiro dos quatro segmentos é Los Barcos, da autoria de Sotomayor, e conta-nos a breve passagem de uma actriz chilena por Lisboa onde desempenha o papel secundário de um filme que mais ninguém parece ter querido protagonizar e que se perde pelos caminhos da margem sul, solitária e algo desamparada no seu percurso.
Excursões, o segundo dos segmentos, transporta-nos para uma Lisboa vista por Côté onde dois atarefados guias turísticos parecem não conseguir encontrar quem os complemente numa clara alusão ao facto de estarem sózinhos no meio de tanta gente.
Gabriel Abrantes dirige Freud und Friends, o terceiro segmento, onde Herner Werzog - sim, não é engano - viaja às profundezas da mente do realizador para poder registar os seus sonhos e levando o espectador a uma invulgar viagem pela Fundação Champalimaud.
Por fim, o quarto e último segmento L'Oiseau de la Nuit, da autoria de Maria Losier, leva o espectador a conhecer Fernando, nos seus preparativos para encarnar Deborah Krystal, a estrela da discoteca Finalmente em Lisboa, num registo - também ele - muito próximo do sonho e das viagens oníricas de um indivíduo.
Produzido por Miguel Valverde - director do IndieLisboa - Aqui, em Lisboa poderia ser desde o primeiro instante um daqueles projectos falhados que colocaria de certa forma em risco a credibilidade da aventura de um festival em considerar a produção de futuras obras. Não poderia ser mais errado este pensamento. Ainda que Aqui, em Lisboa não seja uma daquelas obras referência do cinema português - não será? - não deixa de ser verdade se torna numa obra assumidamente vencedora pelo facto da sua produção - o festival - conseguir convencer quatro dos seus habituais a entregar ao público um olhar - o seu - sobre a cidade de Lisboa, de certa forma sobre a sua população e sobre aquilo que, no fundo, mais conseguem reter sobre a sua estadia pela cidade e os seus costumes. E tudo isto com a agravante de estarmos perante um não confesso mas assumido público difícil como é o português e o de Lisboa que pouco - por vezes pouco demais - se manifesta perante a obra que lhe é apresentada.
Aqui, felizmente, a aposta foi ganha. Se por um lado temos uma evidente apatia da personagem principal de Los Barcos, chilena mas que poderia facilmente ser portuguesa, não é menos verdade que as igualmente invulgares personagens com quem ela se cruza são o dito "tipicamente português", ou seja, prestáveis, algo amáveis e excessivamente atenciosos mesmo que o assunto não seja consigo, por outro temos ainda com Excursões, um certo sentimento oposto ao mostrar uma Lisboa bairrista mas ao mesmo tempo cosmopolita onde existe pouco tempo ou espaço para dar ouvidos aos sons do coração vivendo então os nossos dois guias uma vida solitária mesmo tendo a seu lado algo que os possa complementar.
Se a dita saudade e melancolia habitam os dois primeiros segmentos de Aqui, em Lisboa, não é menos verdade que os dois últimos revelam alguma excentricidade e loucura não tanto consideradas como parte do povo Lisboeta. No entanto Gabriel Abrantes e Marie Losier captam o espírito boémio que tão bem caracterizou a capital do início do século XX mas... nos dias de hoje. Em Freud und Friends, de Abrantes temos uma viagem ao imaginário - ou sonhos - do realizador, onde um conjunto de personagens bizarras e quanto baste excêntricas povoam a "sua" cidade. Robalos que cantam, peidos - sim, peidos - que têm muita personalidade e figuras que mudam de figura revelam algo de transcendente, peculiar e arriscaria dizer até surreal que fazem renascer e recordar o Spectacular, Spectacular do Moulin Rouge, de Baz Luhrmann. Ainda que o mais aplaudido pós-exibição, não foi o segmento de Abrantes que mais me impressionou - mas claro, dou-lhe os meus parabéns pelo imaginário recriado - mas sim L'Oiseau de la Nuit, de Marie Losier. Se tinhamos dúvidas que já havíamos entrado num domínio do surreal, Losier rapidamente nos revela que lá entrámos e tão facilmente não iremos sair sendo que, no entanto, consegue por pequenos elementos captar com mais fidelidade o certo espírito e imaginário Lisboeta. Se inicialmente conhecemos o já referido Fernando aka Deborah Krystal que se prepara entre tecidos brilhantes e cores estridentes para encarnar a sua mítica personagem da noite gay Lisboeta, não é menos verdade que uma vez encarnada a personagem, o espectador é levado a uma inesperada viagem onde as sereias/ninfas do Tejo ganham vida e (se) revelam no dia (e na noite) por entre um conjunto de figuras mais ou menos selvagens que povoam os espaços da capital e Deborah Krystal - qual deus Afrodite - é tentada pela sedutora maçã que uma cobra (Cindy Scrash - outra performer da noite gay Lisboeta) lhe entrega por baixo da árvore onde todas as criaturas da noite se encontram. Longe de qualquer imediata ligação a Os Lusíadas - independentemente das ninfas e de Afrodite - Losier consegue com esta história onírica e mitológica captar um estranho mas presente espírito da capital onde as sombras da noite confundem as personagens que nela habitam, onde a História e as histórias se confundem com a realidade transformando Lisboa numa cidade aberta, receptiva e presente onde todos encontram o seu próprio espaço.
Vários foram os momentos em durante a apresentação do projecto tanto produtor como os realizadores referiram que Aqui, em Lisboa havia sido uma experiência com diversos problemas - por momentos até passou a noção de que afinal todo o projecto tinha sido de construção quase hedionda - baixando claramente as expectativas daquilo a que o público iria assistir mas, no entanto, ainda que o sentimentalismo presente nos dois segmentos iniciais capte a tal melancolia Lisboeta, os dois últimos conseguem, por sua vez, captar a irreverência tantas vezes forçosamente escondida que as luzes, o brilho e a essência da cidade possuem - e não timidamente. Aqui, em Lisboa foi bem sucedido... foi conseguido... e há que assumi-lo... sem pudores e humildades.
Ainda que o espectador não consiga criar grandes afinidades com nenhuma das personagens ou interpretações - bom, talvez a excepção seja mesmo Gabriel Abrantes - estas complementam-se de forma irreverente. Todas tem o seu espaço, os seus propósitos e conseguimos de certa forma perceber a sua essência e os seus espaços próprios fazendo desta forma com que ignoremos um pouco todos os seus tiques e manias.
Espero que aquando da sua estreia comercial Aqui, em Lisboa não seja apresentado como um projecto que "deu problemas" - será que algum não dá? - mas sim como uma aventura que (quem sabe!) poderá ser repetida num futuro mais ou menos próximo, com outros intervenientes, com outros intérpretes e talvez com outros fundos, essa Hidra medonha que tanto impede e coloca limites à concretização da criatividade... e também que a própria produção divulgue material promocional do filme como, por exemplo, um cartaz que funcione como o seu espelho e não apenas algumas tímidas - mas opulentas - fotografias de produção. Por aqui... o público e a imprensa agradecem.
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