Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa de Gustavo Galvão é uma das longas-metragens brasileiras em competição nesta edição do FESTin - Festival Itinerante de Cinema da Língua Portuguesa e, até ao momento, a mais forte em competição para além de um dos melhores exemplos da cinematografia brasileira do último ano.
Pedro (Vinícius Ferreira) encontra-se numa viagem sem destino. Sem grandes recursos e com um telemóvel que não atende, atravessa o país sem conhecer ninguém num percurso que tende a ser anónimo. É nesta viagem sem rumo que Pedro conhece Lucas (Marat Descartes) num café de beira de estrada onde uma estranha e imediata química nasce entre os dois.
Ambos sem destino e como uma crescente vontade de abraçar o desconhecido, Pedro e Lucas lançam-se numa viagem pelas estradas do interior brasileiro onde procuram algo que os faça realmente viver a vida como sentem merecer.
Para lá de um qualquer road-movie em que os protagonistas encetam um viagem como forma de expiarem as suas vidas mundanas, o argumento de Gustavo Galvão, Bernardo Scartezini e Cristiane Oliveira confere a este Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa algo mais profundo do que uma simples viagem. "Pedro" é um tipo comum, jovem e sem grandes problemas da sua vida para lá daqueles que eventualmente afectam qualquer pessoas nos seus trinta's... um trabalho com no qual possível e aparentemente não se revê e para o qual estudou uma vida inteira ignorando tantas outras actividades com as quais poderia ter aproveitado muito mais da sua jovem vida. Sem grandes laços afectivos para com a sua família ou até mesmo a nível afectivo sentimental, a única coisa que sabemos deste homem é que toda a sua vida já programada nada tem de pessoal ou que o caracterize... no fundo, percebemos que "Pedro" mais não é do que alguém que eventualmente deixará este mundo sem que o mesmo dê pela sua presença.
Num trajecto que em tudo parece improvável "Pedro" conhece "Lucas", um homem disposto a experimentar a vida tal como ela é - ou aquilo que lhe pode proporcionar - e, como tal, silenciosamente desejoso de ter a seu lado alguém que com ele possa realmente "viver a vida". Num misto de depravação e boémia, os dois homens - ainda que com alguma relutância inicial de "Pedro" - passam a percorrer as estradas brasileiras aproveitando um pouco os incautos que com eles se cruzam e gozando de toda uma nova vida que até então fora eventualmente auto-negada aos dois.
A empatia entre os dois é sentida desde o primeiro instante. Desde que os olhares se cruzam no primeiro café à beira estrada que percebemos que existe uma estranha e desconhecida química entre os dois. Se a um "Pedro" falta aquele lado selvagem que escuta das palavras de "Lucas", a este falta um pouco aquele modo de estar mais tranquilo que descontroladamente busca. Um complementa imediatamente o outro e independentemente dos comportamentos do "outro" poderem constituir uma ameaça ao projecto individual de cada um, não é menos verdade que a sua cumplicidade é crescente e nenhum sabe justificar os seus porquês.
Pela sua improvável viagem cruzam-se ainda com "Jesus" (Leonardo Medeiros), um traficante que também vivendo de expedientes lhes dá a ganhar algum dinheiro que lhes possibilita a sua viagem e, numa ainda mais estranha analogia bíblica, o espectador encontra-se perante três "entidades" que se tentam auto-evangelizar a uma nova vida até então desconhecida e não partilhada. Lucas - o apóstolo - tido como o curandeiro tem aqui a sua reencarnação perfeita na personagem homónima interpretada por Marat Descartes, como aquele que encontrou alguém que precisava de ser salvo de uma viagem que não adivinhava nada de transformar para além da sua própria execução e o "Pedro" de Vinícius Ferreira actua, tal como o apóstolo, como aquele que revela a verdadeira identidade - neste caso a sua -, ou seja, como sendo um homem perdido que encontrou a sua alma gémea, a única com quem até então conseguiu criar uma ligação - ou até mesmo relação - contrariamente ao sucedido até então... nem com a sua mãe, irmã ou namorada... nem com amigos que parecem ser inexistentes ou até mesmo numa relação laboral. "Jesus", ainda que aqui mais não seja como um mero traficante, fornece-lhes o garante da continuidade da sua viagem e mesmo que momentâneamente separados ambos sabem que só a podem prosseguir se estiverem em companhia.
Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa é assim um filme com um estilo muito próprio de road movie, ou seja, existe toda aquela incessante procura de algo maior do que aquilo que se tem ou viveu, algo maior que consiga finalmente completar a própria identidade e responda finalmente à eterna pergunta que todos fazem... "Quem sou eu?". Mais não serei do que alguém "programado" para um trabalho que não me representa, para uma vida que não quero ou para laços forçosamente criados para responder às expectativas da sociedade ou existirá por sua vez algo para além disso? O que estará ao fundo daquela imensa estrada que tão poucos ousam percorrer? Será conveniente nem olhar para as suas margens ou será nelas que se encontram todos aqueles seres, detalhes e momentos que no seu final constituirão aquilo que "me" define?
Será essa dose violenta uma droga? Não uma droga convencional mas sim algo que "me" faça despertar para uma vida que até então passava ao lado sem deixar marcas de que alguma vez existira? Todas estas perguntas e eventualmente tantas outras que surgirão neste percurso apenas podem ser respondidas se o mesmo fôr efectuado... sem planos e com muitos desvios mesmo que estes levem a lado algum. Mas precisam ser percorridos.
No final a única pergunta que permanece é saber se mantendo o rumo nos garantirá - lá bem no final - a felicidade absoluta ou se, por sua vez, serão todos aqueles desvios que se efectuam que permitem nesses mesmo final manter um único pensamento... Vivi!
Vinícius Ferreira consegue ao longo de todo este filme e com os seus escassos diálogos comunicar de forma avassaladora com o espectador. Percebemos desde o primeiro instante que este é um jovem homem desesperado com uma vida que cedo percebe não ser a sua. Ao deixar tudo - família e trabalho incluídos - ele sente que aquele não era o seu rumo... a casa perfeita na cidade perfeita e com os objectos perfeitos que, no entanto, nada lhe garantiam enquanto felicidade. Sendo esta a busca suprema do Homem, então só lhe resta seguir o outro caminho... seja ela qual fôr. Por sua vez, Marat Descartes é o "espírito" de toda esta acção... aquele que vive e vibra com toda a intensidade e que nos faz perceber que para lá de tudo aquilo que não conhecemos dele, o próprio entende que tem de viver conforme lhe apetece não respeitando regras, nem locais nem momentos... até surgir "Pedro". A ligação entre estes dois homens ainda que inconclusiva, sente-se como a única verdadeira que ambos alguma vez constituíram. Mesmo separados existe uma tendência natural que os atrai um ao outro e sabem que só na companhia mútua conseguirão percorrer todos os desafios que certamente lhes serão impostos.
Ainda que tecnicamente Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa tenha alguns problemas principalmente no que diz respeito ao som e sua respectiva captação, a mensagem que esta longa-metragem transmite ao espectador consegue ser por si só cativante e de certa forma inspiradora. Mensagem essa que nos faz perceber que existe algo de "maior" em espíritos que arriscam desafiar o que está socialmente imposto, as regras, as convenções e principalmente aquilo que os outros esperam de cada um. Audazes aqueles que o arriscam pois só esses sabem o que é - foi - sentir e principalmente o que é realmente viver... sem lamentos.
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"Lucas: A família é uma droga pesada."
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8 / 10
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