O Vendedor de Passados de Lula Buarque de Hollanda foi o filme de abertura da sexta edição do FESTin - Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa que decorre até ao próximo dia 15 de Abril no Cinema São Jorge, em Lisboa e que contou não só com a presença do realizador na sala como também com Lázaro Ramos, o actor principal, já vencedor do prémio de melhor actor em 2013 com O Grande Kilapy.
Vicente (Ramos) presta a todos aqueles que o procuram um inesperado serviço... o seu passado. Muitos são aqueles que infelizes do estilo de vida que levam o procuram e lhe pedem que reconstrua parte das suas vidas para poderem dar aquele passo que tanto esperam... ter o primeiro relacionamento ou até mesmo casar... esconder um crime ou inventar uma vida cheia de sucessos que possa impressionar todos os que com eles cruzem.
No entanto um dia chega a sua casa uma enigmática mulher a quem Vicente rapidamente dá o nome de Clara (Alinne Moraes), inventando-lhe todo um passado como vítima da ditadura militar argentina. Quando a sua história surge como a nova e descoberta mártir de um conflito que ainda hoje está por resolver, Vicente percebe que talvez tenha sido ele que fora enganado por uma mulher de quem nada sabe.
Baseado no romance de José Eduardo Agualusa, o argumento da autoria de Isabel Muniz dá corpo a um conjunto de personagens que nos fazem obrigatoriamente reflectir sobre um conjunto de elementos começando, logo de imediato, pela facilidade com que alguém com meios e alguma imaginação consegue inventar todo um passado através de um conjunto de objectos perdidos no tempo como por exemplo as cartas a quem ninguém liga, os álbuns de fotografias que ficam esquecidos no tempo e que deixando de fazer parte do imaginário colectivo de uma família passam, inesperadamente, a constituir a memória viva de uma outra - por momentos O Vendedor de Passados trouxe-me à memória o já aqui comentário e vencedor do prémio de melhor argumento Your Lost Memories, de Miguel Ángel Blanca e Alejandro Marzoa. Esta mesma facilidade pode "limpar", a qualquer momento e com os meios adequados, todo um passado mais ou menos problemático ou ilegal criando uma nova vida - ou pelo menos a sua possibilidade - para alguém que queira desaparecer. Em segundo lugar, e como directo antecedente, este filme de Lula Buarque de Hollanda levou-me a pensar sobre esses tais objectos que tantas vezes esquecemos e aos quais damos tão pouca importância mas que, na prática, contêm por vezes preciosas informações sobre a nossa identidade, os nossos hábitos, rituais e costumes que parecendo não serem de importância podem, inesperadamente, ser utilizados como referenciais de personalidade de qualquer pessoa que se dê ao trabalho de os reunir.
Finalmente, e agora como uma consequência também ela directa dos dois elementos anteriores, até que ponto podem ser os passados e histórias pessoais construídos dando a possibilidade a um qualquer impostor com interesses alternativos reconstruir uma vida - a "sua" - à custa das memórias de outrém. Até que ponto é cada um de nós vigilante sobre os seus pertences mais básicos sabendo que estes podem ser (re)utilizados sempre que estamos menos atentos? E pensando nisto... em que medida conhecemos realmente aqueles com quem nos cruzamos pois não questionámos as histórias que nos foram dadas - vendidas - como as suas certezas absolutas? Será viável utilizar a História como refúgio e esconderijo à vista de todos para dela se poder retirar lucro pessoal e, ao mesmo tempo, até que ponto está a sociedade, e a comunidade, sedenta de exemplos a seguir ao ponto de não questionar todos os "estranhos" que se dizem mártires?!
Lázaro Ramos mostra-se, uma vez mais, a força motora de um filme que se assume brando desde o primeiro instante. O seu "Vicente", também ele vítima de um passado desconhecido e que nunca quis ser revelado por nenhum daqueles que o conhece é, até certo ponto, misterioso o suficiente para o espectador esperar a chegada do próximo Messias mas, aquando da sua revelação, percebemos que mais não é do que o trágico fruto de uma sociedade que vive depressa demais e que não quer - a todo o custo - ser identificada ou deixar a sua marca de responsabilidade. Confirmando uma vez mais não só o seu talento como principalmente o seu carisma frente à câmara, Ramos coloca-se, dois anos depois, bem cedo como um dos potenciais vencedores do prémio de melhor actor do FESTin.
Igualmente refrescante - ainda que numa interpretação secundária - é a participação de Odilon Wagner neste filme enquanto o fiel amigo de "Vicente" - e um dos que conhece todo o seu passado - trazendo-o novamente aos ecrãs nacionais (ainda que apenas num festival de cinema e não junto do grande público) de onde há muito estava desaparecido.
O Vendedor de Passados é assim uma interessante história sobre o anonimato em tempos modernos... sobre a possibilidade de (des)aparecer numa sociedade ritmada demais para se aperceber daquilo que a rodeia e que, ao mesmo tempo, está longe de se preocupar com as suas pessoas, com as suas origens e principalmente com as suas memórias. E o mais trágico é que por vezes nos faz rir...
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