Sangue do Meu Sangue de João Canijo é um dos filmes mais aguardados do ano deste realizador, que também assina o argumento, e que já nos deu grandes obras cinematográficas como Noite Escura, Mal Nascida ou Ganhar a Vida.
Neste brilhante filme acompanhamos a vida de uma família de um bairro dos arredores de Lisboa. Márcia (Rita Blanco) a matriarca da família, vive com a sua irmã Ivete (Anabela Moreira), e com os dois filhos, Joca (Rafael Morais) e Cláudia (Cleia Almeida).
Por entre as dificuldades da vida que esta família enfrenta, a sua união e o lugar que cada um desempenha no seio da família é além de fundamental, essencial. Todos têm o seu próprio lugar e uma coisa torna-se certa... o seu lugar à mesa onde todos se enteiram das suas próprias vidas é assegurado diariamente.
Mas esta aparente tranquilidade familiar está prestes a ser abalada quando Cláudia se envolve com um homem casado e quando Joca está em dívida de um negócio de droga com Telmo (Nuno Lopes), e os sacrifícios que todos irão cometer serão também aqueles que irão marcar a sua própria essência e, acima de tudo, demonstrar o amor que a todos une, independentemente da forma como, entre si, é expresso.
Sangue do Meu Sangue, à semelhança da grande maioria das obras de João Canijo, tem uma particularidade que a meu ver o caracteriza. O retrato que é feito sobre as pessoas que, de uma ou outra forma, são grandes demais para os pequenos espaços (ou pequenas vidas) onde se encontram. Podemos confirmá-lo em filmes como Sapatos Pretos, Ganhar a Vida, Noite Escura ou Mal Nascida, onde as personagens representadas, sempre maravilhosamente que se acrescente, revelam almas que não só estão desenquadradas no espaço em que se encontram como, acima de tudo, representam pessoas que têm dentro da sua simplicidade uma alma grande, tão grande, que noutras circunstâncias poderiam ter tido vidas mais felizes longe dos constantes sacrifícios.
Personagens estas que também à semelhança das outras obras de Canijo, são sempre interpretadas e executadas com uma alma imensa por parte dos actores que lhes dão vida. Não serão precisos prémios (se bem que podem aparecer pois são completamente merecedoras), para atestar a qualidade de interpretações como as que aqui temos. Rita Blanco, que aqui venceu recntemente o prémio de melhor actriz nos Caminhos do Cinema Português e que não me espantaria em nada que fosse a vencedora dos Sophia, e uma habitual presença no cinema de Canijo, tem aqui uma das suas mais fortes, intensas e sentidas interpretações como uma mãe disposta a sacrificar o seu próprio bem-estar pelo da filha que se encontra numa situação pesada demais para a poder suportar. Através de uma alma e coração que poderiam a qualquer momento vacilar, esta mãe tudo faz para garantir a segurança e o bem-estar de uma filha que se encontra numa situação frágil. É isso que Rita Blanco é... uma alma. O espírito que de uma e outra forma todos une. A matriarca disposta aos maiores sacrifícios pelo seu sangue... pelo seu próprio sangue num dos sentidos que poderemos atribuir ao título deste filme, e aguentar todas as dores para garantir que a união e a estabilidade emocional de todos esteja garantida.
A par de Blanco temos uma igualmente vibrante, mas aparentemente (apenas aparentemente) mais discreta Anabela Moreira. A sua "Ivete", a tia "sem" família própria que assume um papel mais maternal junto de "Joca" e que também por ele abdica da sua própria condição de mulher, de ser humano, para o livrar da maior provação para a sua própria segurança. Moreira, como a intérprete que passa pelo "silêncio" do filme, assume provavelmente aquele que é o papel mais sonoro... Aquele que implica um maior sacrifício da sua personagem. Aquele que abdica da sua dignidade em nome de um sobrinho que, na falta de família própria, ela assume como o seu próprio filho.
A secundar esta dupla de luxo, mas que acabam por assumir os motivos para o desenvolvimento de toda a trama, temos Rafael Morais e Cleia Almeida. O primeiro como "Joca", o filho problemático em risco físico e a segunda como a filha exemplo que se envolve com um homem casado e que mais tarde descobrimos poder comprometer toda a sua existência psicológica.
A compôr aqueles que são os elementos de risco destas quatro personagens temos o "Telmo" interpretado por Nuno Lopes, um perigoso traficante que tudo irá fazer para punir Joca pelo roubo e engano que lhe fez, e o "Professor Vieira" (Urgeghe), um rosto do passado de Márcia e que mantém uma relação sexual e sentimental com Cláudia que muito a poderá, e irá, prejudicar.
Um filme que é, como já referi, sobre pessoas grandes demais para o local onde estão, e que se completa com as igualmente perfeitas composições de Francisco Tavares, Fernando Luís, Teresa Madruga, Teresa Tavares e Beatriz Batarda. Todos, sem qualquer excepção, complementam-se e têm o seu próprio lugar no desenrolar deste filme que Canijo dirige brilhantemente.
Este que se pode chamar um verdadeiro filme de actores, não só pela sua composição como também pela participação que tiveram na escrita do argumento e das suas respectivas personagens em colaboração com o próprio realizador, é acima de tudo uma representação de vidas que de uma ou outra forma poderiam ser reais e encontrar-se em qualquer lugar. Uma representação de dramas pessoais e fantasmas do passado que a qualquer momento poderiam assombrar não só a estabilidade física como emocional daqueles que seriam afectados por assuntos não finalizados.
É esta história sobre pessoas, sobre vidas, sobre sentimentos e sobretudo sobre escolhas que aqui, mais do que nunca, caracterizam o cinema de Canijo. A vontade de sair do meio em que se encontra tão presente em Sapatos Pretos, ou de saldar dívidas com um passado de Mal Nascida, de enfrentar uma comunidade que prefere não falar nem lidar com a dor de Ganhar a Vida, encontra em Sangue do Meu Sangue uma "reunião" perfeita de todas as premissas passadas. São estas personagens com vidas que, não querendo dizer alternativas, mas "reais" encontrando-se num meio que ele sim, nos é alternativo, consegue criar momentos, situações e referências com as quais facilmente nos podeemos conseguir identificar.
João Canijo consegue uma vez mais criar uma obra marcante do cinema português que facilmente poderá encontrar pontos de semelhança em qualquer outra parte do mundo independentemente dos seus preciosismos culturais pois acima deles estarão sempre os sentimentos que cada um tem, como os encara perante os outros e principalmente perante o mundo e afirma-se também ele uma vez mais como um dos grandes realizadores e contadores de histórias que a cada filme que faz sabe não só conquistar o público como a crítica. Ninguém lhe fica indiferente e sempre pela positiva.
Se ao cinema de Canijo normalmente chamo de brilhante... aqui tenho de acrescentar um simplesmente... Simplesmente brilhante. Um filme que passo ante passo consegue garantir não só um extraordinário argumento como também brilhantes interpretações que irão marcar a carreira de qualquer um dos seus actores e também uma garantida empatia com a crítica e com o público que, arrisco pensar, não lhe ficará indiferente e o guardará como um dos melhores filmes dos últimos tempos e que poderá ser nos próximos tempos um dos mais fortes representantes de Portugal por tudo o que seja certame internacional de cinema, sendo um filme altamente recomendável para todos.
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