Lições de Harmonia de Emir Baigazin marcou o dia de ontem do Lisbon & Estoril Film Festival naquela que é sem margem para dúvidas a grande longa-metragem do certame e que se posiciona como um dos preferidos para o troféu de Melhor Filme.
Aslan (Timur Aidarbekov) é um jovem e pacato adolescente que vive com a avó numa pequena aldeia do Cazaquistão. Sem pais ou irmãos por perto, a sua existência é praticamente toda ela feita em silêncio e, ainda que pacífica, não deixa de ser atormentada por Bolat (Aslan Anarbayev), um seu colega de escola que a todos rouba em nome de gangsters mais velhos para patrocinar aqueles que se encontram na prisão.
Bolat despreza Aslan por motivos que nunca nos são revelados mas tudo faz para que ele seja marginalizado pelos demais colegas ameaçando todos aqueles que lhe falem ou se tornem seus amigos.
No entanto, é quando Mirsain (Mukhtar Andassov) chega à cidade e estabelece uma imediata empatia com Aslan que a vida de todos se prepara para enfrentar transformações radicais e que irão definitivamente marcar todos os envolvidos.
Emir Baigazin tem em Uroki Garmonii, a sua estreia como realizador de longas-metragens, e posso dizer que não poderia ter começado com maior empenho e convicção ao entregar ao espectador esta história que se anuncia desde o primeiro instante como um relato calmo e violento sobre o crescimento de um jovem que não só se vê isolado tendo como única referência um familiar mais idoso, a sua avó, como ao mesmo tempo os únicos pares que encontra são, eles próprios, o motor de toda uma violência sem limites.
Quer seja graças a bullying ou mesmo pela pressão dos ditos pares, "Aslan" tem toda uma convivência com a violência que o faz ser um rapaz pronto para o mais abominável dos actos e percebemo-lo desde o primeiro instante quando se prepara para esventrar uma ovelha da qual a família retira o seu sustento, num segmento que tem tanto de poético como de mórbido pelas imagens que divulga.
Se desde o primeiro instante "Aslan" é apresentado como um rapaz sujeito a uma vida difícil não só pela aparente ausência da sua família como também pelo próprio meio em que se encontra e claro, as constantes humilhações dos seus colegas, não é menos verdade que estas preparam-nos (e a nós), para o seu último acto de rebeldia que lhe permitirá ter o seu devido descanso sem que, no entanto, este lhe permita viver a vida normal de alguém da sua idade. Darwinista, assim poderíamos apelidar este filme, na medida em que somos apresentados por uma história ue celebra a sobrevivência dos mais fortes, daqueles que se adaptam às circunstâncias que lhe são colocadas pelo seu meio natural e aqui também social e que delas retiram os elementos fundamentais para garantir a sua existência. No entanto este darwinismo é manifestado não através daqueles que são fisicamente mais fortes ou destemidos mas sim naqueles que se adaptam às adversidades e as "abraçam" como potenciais defesas para a manutenção da sua própria sobrevivência. Assim, se as constantes humilhações e ostracização, bullying e violência são inicialmente motores para uma vida de sofrimento e de angústia, não é menos verdade que os mesmos são os elementos fundamentais para, a seu tempo, garantirem àquele jovem as suas próprias defesas e forças. No fundo, é uma história sobre como a violência é a única forma de defesa encontrada por alguém vítima de maus tratos, alguém esse capaz de ser tão ou mais requintado nos seus actos como aqueles que contra ele actuaram, utilizando todos os mais elementares recursos que nos são "inocentemente" apresentados ao longo de toda a narração dos acontecimentos.
Timur Aidarbekov, o jovem "Aslan", é a encarnação de uma paz sofrida. Por um lado percebemos que aquele jovem é uma vítima de uma sociedade e de um meio que podem não ser os seus. Afastado de qualquer referência paternal, de um conjunto de amigos ou de modelos de referência, ele mantém a sua inocência até onde esta pode ser possível, sabendo que rapidamente precisa de transformar os seus comportamentos e hábitos em algo que o possa manter vivo ou então irá desaparecer engolido nas investidas daqueles que contra ele actuam. Calmo, silêncioso e com um comportamento de quem parece não resistir durante muito mais tempo, o seu hábito de uma higiene incompreensível aos olhares dos demais é sinal de que se prepara para a sua guerra santa, onde a purificação do seu corpo permitirá a boa execuação dos seus actos e assim sabemos, com uma confirmação que chegará mais tarde, de que ele comprometeu-se a tomar as rédeas de uma existência que aos poucos parecia fugir-lhe.
A seu lado temos Aslan Anarbayev, que com o seu "Bolat" inicialmente mais um inocente num meio rude e que a todos coloca à prova, encarna no entanto a mente de um jovem criminoso capaz dos actos mais hediondos para provar que é ele que manda no local principalmente graças ao uso da extorção e da força física, a mesma que o impede de ver que ao seu lado pode existir alguém que pacientemente prepara o seu fim.
Em todos a desumanização está presente. Se em "Bolat" ela é evidente nos seus comportamentos fisicamente agressivos, não é menos verdade que o próprio "Aslan" também os manifesta. Logo de início podemos vê-lo na forma fria e distante com que mata uma ovelha, facto que podemos equacionar dever-se à sua sobrevivência e da sua avó, no entanto o facto mais explícito desta mesma desumanização prende-se com o comportamento que tem para com "Mirsain". Este, o único que estabeleceu uma relação de empatia e amizade consigo sem questionar as "ordens" que os demais lhe davam, é o mesmo que sofre às mãos de "Aslan" e da sua própria adaptação ao meio, usando os sentimentos de proximidade que os uniam em seu próprio proveito, não de uma forma inconsciente mas sim sentimentalmente distante. Se por um lado sabe que "Mirsain" é a única pessoa que dele se aproximou sem segunda intenções, não deixa de registar que é graças a este coração aberto que "Aslan" conseguirá a sua própria liberdade da ostracização e violência de que é alvo.
Violência esta que está presente desde o primeiro instante e Baigazin, que assinou o argumento, não nos permite esquecê-la. Temos a aparente violência de um meio rude onde os recursos são escassos e aproveitados ao limite, a social que coloca os mais fracos numa constante opressão por aqueles que são detentores de força física e actuam em grupo, os gangsters e mafias locais que vivem à custa das "doações" forçadas que cobram em nome de uma religião que não professam, na própria escola onde a desumanização se vive pelo desrespeito das crenças individuais de cada um ou até mesmo nos comportamentos dos agentes da lei que seguem os modelos de interrogatório para um menor tal como se este fosse um perigoso marginal, sem sequer questionar os motivos que o levaram a pisar os limites da lei. Violência esta que é desde o primeiro instante captada pela rudeza das imagens desprovidas de luz que a direcção de fotografia de Aziz Zhambakiyev insiste em filmar, tratando todos os intervenientes como meros elementos de uma sociedade que é, também ela, dura demais para suportar aqueles que não a aguentam.
Baigazin dá-nos assim a hipótese de assistir a uma história onde todos os intervenientes são peças fundamentais de um ciclo de violência a que nenhum tenta pôr um fim imediato. Por sobrevivência, conveniência ou pior, por mero hábito, todos são o fruto de um ambiente que apenas permite a existência daqueles que dão provas, independentemente de moralmente aceites ou não, de poder resistir. Os demais, que ousem mostrar uma qualquer indecisão ou que equacionem a moral de uma dada situação são, ou devem ser, automaticamente eliminados... mesmo que num dado momento tenham comprovado ser o topo da pirâmide do poder, permitindo um espaço muito reduzido a momentos em que cada um destes intervenientes possa pensar estar no local onde todos os seus problemas sejam esquecidos, aqui interpretados como um parque de diversões ou uma simples e pacífica margem de um rio.
Uroki Garmonii é de facto uma lição de harmonia, mas uma que apenas existe quando se jogam os dados dentro de um sistema que não permite regras para além daquelas que já estão colocadas e formatadas de forma inata... ou se joga tendo-as como base ou então somos elementos superfulos que devem ser violentamente afastados. Com todos os riscos e responsabilidades que uma primeira grande obra acarreta para o seu realizador, aqui Baigazin levantou e muito a fasquia para a sua próxima obra que espero seja tão breve e tão intensa como esta que é, sem reserva, uma das melhores e mais coerentes de todo o certame e uma forte candidata ao seu prémio máximo.
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