Centro Histórico de Pedro Costa, Victor Erice, Aki Kaurismäki e Manoel de Oliveira é uma longa-metragem realizada no âmbito de Guimarães 2012 - Capital Europeia da Cultura e que reune quatro obras destes realizadores naquela que é uma homenagem não só à cidade do norte de Portugal como também um verdadeiro legado à memória e à identidade.
Centro Histórico inicia a sua viagem com o segmento de Aki Kaurismäki que através de O Tasqueiro nos remete para um dia na vida de uma tasca típica da cidade. Se inicialmente a oferta alimentícia para aqueles que a visitam se resume à mais básica "sopa do dia", não é menos verdade que a vontade de sobreviver e de atrair os muitos turistas que por lá se cruzam se torna numa fatalidade que levam o seu caricato dono a procurar evoluir e oferecer um cada vez melhor menu que, na realidade, nunca chega a satisfazer na totalidade.
Sweet Exorcism, é o segundo segmento de Centro Histórico e desta vez aquele que é da autoria de Pedro Costa que nos leva numa verdadeira viagem às profundezas da memória e de um pesado trauma de guerra que esta suporta. Ventura (um "não actor" que Pedro Costa recupera do seu magistral Juventude em Marcha) ouve o seu nome dito pelos fantasmas do seu passado em África. As suas pesadas vozes atormentam-no e impedem-no de uma existência pacífica que é vivido num ruidoso silêncio. No hospital entra no elevador e sentimos claramente que aquele espaço minúsculo mais não é do que uma vivida representação de um purgatório onde o aguarda um soldado. Esta clara alusão a um barqueiro que o transporta para o "outro lado" atormenta a sua existência com as memórias pouco claras desse passado em guerra colonial, de uma viagem para Portugal e de uma vida que o próprio já não sabe se viveu ou se mais não foi do que o fruto de uma imaginação outrora fértil.
O terceiro segmento chega-nos pelas mãos de Victor Erice que em Vidros Partidos recupera a memória de uma antiga fábrica têxtil no norte de Portugal, agora desactivada, bem como daqueles que ao longo dos anos passaram boa parte da sua vida nela. Desda as memórias cómicas às mais dramáticas não esquecendo aqueles que figuram numa curiosa fotografia do refeitório que mostra os olhares de tantos e que ainda se encontra na parede, Erice leva o espectador de Centro Histórico numa verdadeira e emotiva viagem no tempo que conseguiu recolher uma espontânea salva de palmas dos espectadores que se encontravam no São Jorge mesmo antes do filme terminar.
Finalmente o último segmento de seu título O Conquistador Conquistado chega-nos pelas mãos do mestre Manoel de Oliveira que num tom de comédia mordaz nos mostra como o outrora conquistador e fundador de Portugal é agora ele próprio conquistado pelos inúmeros turistas que vagueiam pelas ruas de Guimarães, transformando-se assim numa outrora figura imponente que é agora dominada pelas centenas de máquinas fotográficas sedentes de registar a sua estátua.
Ainda que não exista aparentemente um elo de ligação entre os quatro segmentos há algo que, apesar de "invisível" une todas estas histórias... a memória. É esta que se encontra presente em todas os grandes segmentos que compõem Centro Histórico, e é graças à genialidade dos quatro realizadores, também argumentistas dos seus próprios segmentos, que esta vive e perdura. Seja através da memória do espaço reflectida em O Tasqueiro, da História colectiva presente em Sweet Exorcism e em O Conquistador Conquistado, ou mesmo a memória pessoal tão bem descrita pelos relatos daqueles que trabalham na fábrica têxtil que o segmento Vidros Partidos, possivelmente o mais emotivo, transmite ao espectador.
Assim sendo, é este registo da memória, quer pessoal quer colectiva, de um mesmo espaço geográfico que dão vida não só à História como às histórias que compõem toda uma vivência comum de um povo que se formou e que ainda hoje subsiste como um dos mais antigos da Europa. Afinal não será este mesmo registo e a memória o único testemunho da passagem de cada um de nós pela vida independentemente de não registar individualmente o nome de cada um de nós?!
Não sei até que ponto a afirmação de João Lopes, coordenador do projecto e aquele que o apresentou no Cinema São Jorge, em Lisboa aquando da sua exibição ontem, sobre este ser o "maior filme do século XXI" estará correcta pois pessoalmente chegam à minha própria memória alguns outros títulos (portugueses e não) que poderiam facilmente ocupar este mesmo lugar mas, no entanto, não lhe tiro razão no sentido que quis dar à sua observação. Numa época em que o revisionismo histórico parece ser o mote do dia e em que um conjunto de conhecimentos que sempre tivemos como certos e apurados são colocados em causa, especialmente nestes dias em que Portugal celebra os seus quarenta anos de liberdade e fim da ditadura cujos efeitos são tão bem representados neste próprio filme através do segmento de Pedro Costa, "Sweet Exorcism", a questão que se deve colocar não é tanto se este não será o melhor filme do século mas sim aquele que nos coloca numa posição de perceber que a memória, e o seu devido registo e legado, são dos patrimónios mais importantes que a Humanidade alguma vez obterá. Caso contrário quem explicará não só a nossa passagem como aqueles feitos que um dia testemunhámos?!
Com argumentos mordazes que oscilam entre a comédia e o drama intenso, Centro Histórico conta ainda com uma das interpretações que aí sim, eu próprio coloco entre as mais fortes do século XXI (correndo o risco de também aqui poder eu ser apontado como exagerado). Ventura, no segmento Sweet Exorcism, encarna solidamente na sua interpretação os traumas sofridos durante a guerra, as alucinações com as vozes do seu passado que nunca pararam de o atormentar, e a solidão vivida por uma vida que nunca foi completa... sem ser pai, marido ou amigo, o seu Ventura aborda um tema que até à data ainda não foi devidamente explorado pelo cinema português, ou seja, como regressaram psicologicamente aqueles que atravessaram a guerra colonial? Se por um lado temos os mais variados registos norte-americanos sobre aqueles que passaram a guerra do Vietname ou, mais recentemente, a do Iraque, não é menos verdade que sobre o passado colonial português e o conflito armado de mais de uma década não temos qualquer registo assumidamente propositado.
Aqui Pedro Costa não poupa nos tormentos e exibe um homem perseguido por um passado que só ele conheceu, memórias perdidas no tempo mas que a sua psique registou sem esquecer obrigando-o a por entre elas navegar e perdendo-se na imagem de um homem que já não é. Por ele os anos passaram, pela sua memória não. Ventura é um homem desgastado, amedrontado e cuja pequena grande viagem de elevador lhe serve como expiação desse passado que vive no silêncio dos seus pensamentos e apenas provocados pela imagem daquele soldado (o barqueiro) que o conduz ao outro lado do "rio". Muito forte ao ponto de provocar calafrios no espectador, Costa e Ventura conseguem fazer o único e muito fiel marco que aborda os traumas de guerra num sentido, dramático e profundamente intenso segmento que toca de muito perto o terror psicológico.
Centro Histórico é um filme ainda sem estreia comercial no nosso país, o que por si só é um registo trágico, e assumidamente uma enorme pérola por descobrir que uma organização perspicaz e atenta do IndieLisboa soube finalmente trazer até à capital naquele que é possivelmente um dos mais fortes filmes de todo o festival e seguramente um dos melhores registos cinematográficos portugueses dos últimos largos anos.
.Sweet Exorcism, é o segundo segmento de Centro Histórico e desta vez aquele que é da autoria de Pedro Costa que nos leva numa verdadeira viagem às profundezas da memória e de um pesado trauma de guerra que esta suporta. Ventura (um "não actor" que Pedro Costa recupera do seu magistral Juventude em Marcha) ouve o seu nome dito pelos fantasmas do seu passado em África. As suas pesadas vozes atormentam-no e impedem-no de uma existência pacífica que é vivido num ruidoso silêncio. No hospital entra no elevador e sentimos claramente que aquele espaço minúsculo mais não é do que uma vivida representação de um purgatório onde o aguarda um soldado. Esta clara alusão a um barqueiro que o transporta para o "outro lado" atormenta a sua existência com as memórias pouco claras desse passado em guerra colonial, de uma viagem para Portugal e de uma vida que o próprio já não sabe se viveu ou se mais não foi do que o fruto de uma imaginação outrora fértil.
O terceiro segmento chega-nos pelas mãos de Victor Erice que em Vidros Partidos recupera a memória de uma antiga fábrica têxtil no norte de Portugal, agora desactivada, bem como daqueles que ao longo dos anos passaram boa parte da sua vida nela. Desda as memórias cómicas às mais dramáticas não esquecendo aqueles que figuram numa curiosa fotografia do refeitório que mostra os olhares de tantos e que ainda se encontra na parede, Erice leva o espectador de Centro Histórico numa verdadeira e emotiva viagem no tempo que conseguiu recolher uma espontânea salva de palmas dos espectadores que se encontravam no São Jorge mesmo antes do filme terminar.
Finalmente o último segmento de seu título O Conquistador Conquistado chega-nos pelas mãos do mestre Manoel de Oliveira que num tom de comédia mordaz nos mostra como o outrora conquistador e fundador de Portugal é agora ele próprio conquistado pelos inúmeros turistas que vagueiam pelas ruas de Guimarães, transformando-se assim numa outrora figura imponente que é agora dominada pelas centenas de máquinas fotográficas sedentes de registar a sua estátua.
Ainda que não exista aparentemente um elo de ligação entre os quatro segmentos há algo que, apesar de "invisível" une todas estas histórias... a memória. É esta que se encontra presente em todas os grandes segmentos que compõem Centro Histórico, e é graças à genialidade dos quatro realizadores, também argumentistas dos seus próprios segmentos, que esta vive e perdura. Seja através da memória do espaço reflectida em O Tasqueiro, da História colectiva presente em Sweet Exorcism e em O Conquistador Conquistado, ou mesmo a memória pessoal tão bem descrita pelos relatos daqueles que trabalham na fábrica têxtil que o segmento Vidros Partidos, possivelmente o mais emotivo, transmite ao espectador.
Assim sendo, é este registo da memória, quer pessoal quer colectiva, de um mesmo espaço geográfico que dão vida não só à História como às histórias que compõem toda uma vivência comum de um povo que se formou e que ainda hoje subsiste como um dos mais antigos da Europa. Afinal não será este mesmo registo e a memória o único testemunho da passagem de cada um de nós pela vida independentemente de não registar individualmente o nome de cada um de nós?!
Não sei até que ponto a afirmação de João Lopes, coordenador do projecto e aquele que o apresentou no Cinema São Jorge, em Lisboa aquando da sua exibição ontem, sobre este ser o "maior filme do século XXI" estará correcta pois pessoalmente chegam à minha própria memória alguns outros títulos (portugueses e não) que poderiam facilmente ocupar este mesmo lugar mas, no entanto, não lhe tiro razão no sentido que quis dar à sua observação. Numa época em que o revisionismo histórico parece ser o mote do dia e em que um conjunto de conhecimentos que sempre tivemos como certos e apurados são colocados em causa, especialmente nestes dias em que Portugal celebra os seus quarenta anos de liberdade e fim da ditadura cujos efeitos são tão bem representados neste próprio filme através do segmento de Pedro Costa, "Sweet Exorcism", a questão que se deve colocar não é tanto se este não será o melhor filme do século mas sim aquele que nos coloca numa posição de perceber que a memória, e o seu devido registo e legado, são dos patrimónios mais importantes que a Humanidade alguma vez obterá. Caso contrário quem explicará não só a nossa passagem como aqueles feitos que um dia testemunhámos?!
Com argumentos mordazes que oscilam entre a comédia e o drama intenso, Centro Histórico conta ainda com uma das interpretações que aí sim, eu próprio coloco entre as mais fortes do século XXI (correndo o risco de também aqui poder eu ser apontado como exagerado). Ventura, no segmento Sweet Exorcism, encarna solidamente na sua interpretação os traumas sofridos durante a guerra, as alucinações com as vozes do seu passado que nunca pararam de o atormentar, e a solidão vivida por uma vida que nunca foi completa... sem ser pai, marido ou amigo, o seu Ventura aborda um tema que até à data ainda não foi devidamente explorado pelo cinema português, ou seja, como regressaram psicologicamente aqueles que atravessaram a guerra colonial? Se por um lado temos os mais variados registos norte-americanos sobre aqueles que passaram a guerra do Vietname ou, mais recentemente, a do Iraque, não é menos verdade que sobre o passado colonial português e o conflito armado de mais de uma década não temos qualquer registo assumidamente propositado.
Aqui Pedro Costa não poupa nos tormentos e exibe um homem perseguido por um passado que só ele conheceu, memórias perdidas no tempo mas que a sua psique registou sem esquecer obrigando-o a por entre elas navegar e perdendo-se na imagem de um homem que já não é. Por ele os anos passaram, pela sua memória não. Ventura é um homem desgastado, amedrontado e cuja pequena grande viagem de elevador lhe serve como expiação desse passado que vive no silêncio dos seus pensamentos e apenas provocados pela imagem daquele soldado (o barqueiro) que o conduz ao outro lado do "rio". Muito forte ao ponto de provocar calafrios no espectador, Costa e Ventura conseguem fazer o único e muito fiel marco que aborda os traumas de guerra num sentido, dramático e profundamente intenso segmento que toca de muito perto o terror psicológico.
Centro Histórico é um filme ainda sem estreia comercial no nosso país, o que por si só é um registo trágico, e assumidamente uma enorme pérola por descobrir que uma organização perspicaz e atenta do IndieLisboa soube finalmente trazer até à capital naquele que é possivelmente um dos mais fortes filmes de todo o festival e seguramente um dos melhores registos cinematográficos portugueses dos últimos largos anos.
"Inês Ferreira Gomes: Ansiamos por poder dizer "acabei"!"
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