terça-feira, 28 de maio de 2013

Trilho (2013)

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Trilho de Gonçalo Silva é uma longa-metragem independente que esteve em exibição durante quatro dias na Biblioteca Museu República e Resistência em Lisboa, e que constitui uma das agradáveis surpresas do ano, e possivelmente dos últimos tempos, no que a cinema português diz respeito.
Este filme estabelece uma harmoniosa e bem estruturada relação entre o a ficção e o documentário ao entrelaçar os dois estilos e assim por um lado apresentando-nos pequenos segmentos ficcionados da vida de vários artistas portugueses e por outro entregando um sentido relato na primeira pessoa, daquilo que é realmente o seu percurso pessoal, as suas experiências e a vida quotidiana onde deparam com as inúmeras dificuldades daqueles que trabalham por amor à arte seja ela a dança, a representação em teatro ou cinema ou a fotografia, sendo esta última uma presença bem significativa de todo este filme pois é através do olhar de uma fotógrafa que são captados alguns momentos mais relevantes dos percursos de todos os intervenientes bem como da sua devida apresentação para o espectador.
O argumento escrito por Gonçalo Silva e por Catarina Margarido não poderia ter mais presente a actualidade que o país vive. Aqui retratado o abandono e o desprezo a que a cultura e o saber são entregues mas, na prática, uma ideia de que o sonho e os desejos que completam a felicidade de cada um são, também eles, dados como secundários e vãs ilusões que na realidade "não se podem ter". A cultura, tal como tantos aspectos na actualidade portuguesa, é considerada acessória, secundária, irrelevante e um capricho de quem por e para ela trabalha. Mais do que um simples retrato das experiências pessoas de um conjunto de pessoas, este filme retrata assim o abandono de um todo por parte de um Governo que considera e vê numa austeridade sem limites a salvação desse conjunto que, aos poucos, perde muito da sua própria identidade. Ao mesmo tempo, o argumento insiste em mostrar-nos que existem caminhos (os trilhos) entre o fazer ou não, entre o percorrer ou ficar estagnado e que são representados não só pelas próprias palavras dos intervenientes como também através dos diversos percursos e decisões que os mesmos têm de tomar para as suas vidas... avançar e continuar para o próximo desafio ou parar num determinado instante, são, qualquer uma delas, as opções que têm diariamente de equacionar.
Outro aspecto bastante interessante deste filme é o facto de conseguir intercalar harmoniosamente e sem perder o sentido de nenhum dos segmentos, as duas vertentes documentário e ficção. Se por um lado temos uma introdução às histórias pessoais e que nos dão a conhecer os reais dramas por detrás daqueles que lutam por um sonho e que são auxiliadas através das interpretações de alguns actores do momento onde se destacam Nuno Melo e o seu divertido taxista que mais uma vez o confirma como um extraordinário actor, Sofia Nicholson, Diogo Amaral, João Catarré, Marcantónio Del Carlo, Vera Kolodzig ou Nuno Pardal como um director de casting com escrúpulos num mundo que parece já estar decidido antes de se iniciar, não é menos verdade que o lado documental deste filme é envolvente e nos consegue inserir nas histórias daquelas pessoas independentemente da semelhança ou não com a realidade de quem a elas assiste.
Para esta identificação muito auxilia o facto deste lado documental e de entrevista ser feito num estilo quase de confessionário onde, sob um fundo panorâmico de Lisboa temos os relatos na primeira pessoa dos diversos artistas que o compõem, nomeadamente Adriano Carvalho de quem aliás escolhi um segmento para terminar este meu comentário, Diogo Lopes que teve um dos mais interessantes ditados populares... "humilde como as pombas e prudente como as serpentes", Márcia Pola, Helena Colaço Salazar e Ana Freitas, dando a conhecer assim as suas vivências, experiências e dificuldades que atravessam como o resultado de uma luta quase diária para dar vida a algo que os completa.
Lisboa essa que é ela também uma "personagem" do filme e que sentimos presente em diversos momentos, segmentos, instantes e locais. Um espaço do futuro onde o sonho se cumpre (ou pretende vir cumprir), mas que ao mesmo tempo é símbolo de um país estagnado, ou até mesmo em retrocesso, onde é impossível sonhar, esperar, desejar... Onde quase é impossível "ter".
Tecnicamente falando Trilho tem também uma qualidade bastante elevada, começando logo de imediato pela sua montagem a cargo de Vasco Vieira que consegue transformar as diversas fases deste documentário, ou ficção, numa história coesa e única onde apesar de sabermos distinguir os diversos momentos, percebemos também que eles se complementam e completam sem pensarmos que "agora estamos na ficção" ou "agora vamos mudar para o documentário".
Também a fotografia de Gonçalo Silva consegue inserir-nos numa cidade de Lisboa que se interliga com as histórias que vamos conhecendo tornando-as como uma parte de nós e nas quais nos podemos rever numa ou outra perspectiva, assim como a música original de Frankie Chavez que é seguramente um dos pontos fortes de todo o filme. As suas sonoridades tipicamente portuguesas, até arriscaria dizer tipicamente Lisboetas, entregam a este filme aquele elemento fundamental que nos faz pensar que isto somos nós... isto é Portugal. É daqui que somos e é aqui que pertencemos. Não só sendo um dos elementos fortes e marcantes desta longa-metragem, a sua música será certamente um elemento icónico da mesma que nos fará lembrar onde ela própria pertence e de que forma caracteriza através dos sons e acordes emotivos e emocionantes, melancólicos mas com uma réstia de esperança por dias melhores, as palavras que todos quiseram transmitir ao longo do filme.
Trilho é, mais do que um longa-metragem independente sobre a actual situação das artes em Portugal, um retrato sentido e na primeira pessoa sobre o país que os seus cidadãos esperam poder ser, pelo qual lutam e no qual depositam expectativas, esperanças e sonhos. Um país repleto de vontades mas que, aos poucos, as impossibilita. País esse que deveria ver este filme nas suas salas, nas suas escolas e que poderia (deveria) sim, ser e estar ao alcance de todos pois Trilho é um dos filmes do ano.
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"Ela: Nem Lisboa é a cidade dos sonhos nem Portugal o país das oportunidades.
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Adriano: Esta cidade inspira-me e aqui quero trabalhar e é aqui que quero criar."
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9 / 10
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1 comentário:

  1. Concordo! Simplesmente espetacular. Espero que seja divulgado, pois comparando com algumas produções nacionais este "trilho" é simplesmente genial. Faz uma simbiose perfeita entre a ficção e a realidade. É forte! É interventivo. É atual. É conjuntural. É uma obra que merecia e deveria ser divulgado para além fronteiras, pois o país é deveras pequeno para esta obra-prima. Quero ver mais obras destas, quero transportar-me para a realidade da vida. Quero que alguém me eleve nos meus sentimentos. Isto é sonho transformado em realidade. Gonçalo continua. O país precisa deste tipo de intervenção, deste tipo de alerta social, desta genialidade em embrião. Força estou expectante por obras como esta......

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