quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Fugiu. Deitou-se. Caí. (2017)

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Fugiu. Deitou-se. Caí. de Bruno Carnide é uma curta-metragem portuguesa de ficção recentemente estreada no Chelsea Film Festival, em Nova York.
Uma jovem mulher (pela voz de Cátia Biscaia), reflecte sobre a sua existência e relações no seio de uma família disfuncional na qual cresceu e se desenvolveu enquanto mulher que hoje é.
À semelhança de Calou-se. Saiu. Saltei., Fugiu. Deitou-se. Caí. reflecte sobre uma violência, Uma violência auto-infligida na medida em que a protagonista revela (ao espectador) os seus pensamentos mas íntimos sobre a perda e a separação psicológica para com aquele com quem partilhou mais de perto o seu espaço; o pai. Perda essa que lentamente também se assumia como física distanciando os dois apesar de partilharem um mesmo espaço.
Tal como em Calou-se. Saiu. Saltei. também esta curta-metragem está dividida em três segmentos distintos sendo que, no entanto, estes não dispersam por outras personagens que não pai e filha remetendo-se exclusivamente para a perspectiva desta sob a relação com o pai e com a solidão que se sente como uma terceira e isolada personagem que condiciona, de certa forma, a sua própria existência.
Em Fugiu., o primeiro desses segmentos dominado pela relação entre pai e filha, o espectador escuta como foi erguida uma parede de silêncios entre os dois. A filha fala sobre a relação indiferente e frígida que dominava a relação entre os seus pais e como a sua (dele) voz a incomoda ao ponto de não o suportar. Num segundo momento - Deitou-se. - existe uma directa relação entre a postura do pai indiferente à vida e a sua (dela) vontade em estabelecer uma nova ligação agora com um namorado com quem, no entanto, não consegue ter um relacionamento próximo. Finalmente em Caí. - o terceiro segmento -, o espectador compreende que é o momento de uma total solidão, aquela que em tempo desejara mas que, nesta sua actualidade, abomina. Com a partida de uma mãe. depois do seu namorado e finalmente do pai, "Ela" procura a ausência desse silêncio que é, agora, a sua condição natural. Ela reconhece aquilo que sempre procurou mas, no entanto, sente desconforto com a presença desta "entidade" que ocupa todo o seu tempo e espaço, toda a sua condição enquanto mulher agora atormentada com a materialização desse "ser" que não a larga.
Da fuga - de uma mãe - ao deitar - de um pai - e à queda - sua -, Fugiu. Deitou-se. Caí. é assim um relato na primeira pessoa de momentos transformadores e potencialmente traumáticos na vida desta jovem mulher. Momentos que a condenaram a uma existência fantasmagórica por uma vida em que, na realidade, nunca sentiu ou chegou a viver mantendo-se apenas áspera e ressentida contra as pessoas e o espaço em que habitava remetendo a sua existência para uma dependência indesejada para com um pai que, de certa forma, a fazia validar a sua própria existência mas, ao mesmo tempo, condenando-o a uma responsabilidade por essa (existência) ser apenas confirmada pela necessidade da sua presença impedindo-a de progredir, fazer ou experimentar aquilo que nos vários momentos da sua vida sentiu vontade.
Ao mesmo tempo, e ainda que podendo qualquer um destes segmentos referir-se ao desaparecimento mental e psicológico dos seus progenitores é, no entanto, o terceiro segmento que permite ao espectador depreender - sem qualquer confirmação - que essa "partida" dos mesmos se deva a uma eventual morte física - afinal, a "fuga" da mãe apesar de não referenciada como tal é de certa forma confirmada pela sua ausência no relato dos seguintes segmentos e o "deitar" do pai que se remete a uma posição post-mortem também fazem crer nesta teoria - deixando o Caí. final antever que, face a uma total solidão no mundo em que então vive, foi factor decisivo para a materialização do seu próprio fim como que validando toda a indiferença para com a sua própria vida.
À semelhança do que acontecera com o argumento de Paulo Kellerman em Calou-se. Saiu. Saltei., também em Fugiu. Deitou-se. Caí. sem mantém presente uma certa ideia de violência sendo que nesta última esta se manifesta não na dinâmica das relações entre diversas personagens mas sim naquela que uma única personagem - a jovem mulher - se inflige como manifestação do seu desagrado para com o pai e para com o espaço a que sente estar condicionada.
Muito à semelhança do que acontece com Persona (1966), de Ingmar Bergman na qual o espectador parece viver na primeira pessoa as sensações e emoções relatadas pelas duas personagens principais interpretadas por Bibi Andersson e Liv Ullmann, também nestas duas curtas-metragens de Bruno Carnide, que se complementam de uma estranha forma e que funcionam como um diário de confissões das suas personagens é em Fugiu. Deitou-se. Caí., que o espectador retém (e vive) um desconcertante estado de espírito vivido por esta jovem mulher que, aparentemente, passou pela vida de forma anónima junto daqueles que deveriam ser o seu grupo primário onde estabeleceria a sua auto-confiança deixando-se, no entanto, levar por uma inicial empatia para com a relação desgastada e terminada de um casal - seus pais - em completa rumo de separação e abandono sentimental. Assim, Fugiu. Deitou-se. Caí. transforma-se no cúmulo de uma relação solitária de uma perdida para os demais e principalmente compreendida como tal e que, em última análise, vê apenas na "queda" a solução final para o conjunto dos seus problemas e, como tal, da sua própria existência.
A direcção de fotografia, também a cargo de Bruno Carnide, volta a funcionar como o registo de uma memória experimentada mas distante. O seu granulado que distancia - do espectador - a percepção de momentos vividos confirma que aquilo que é visto é apenas o distante registo de uma memória, de um tempo e de um espaço passados e o argumento - numa parceria de Carnide, com Cátia Biscaia e António Cova - permitem ao espectador inserir-se mentalmente nesta história/relato e sentir, tal como a sua personagem, o desconcertante desdém sentido por alguém prestes a libertar-se do seu espaço e de tudo aquilo que ele comporta.
Assim, se em Calou-se. Saiu. Saltei. (2014) existia uma violência mútua entre personagens que co-habitavam uma mesma experiência, em Fugiu. Deitou-se. Caí. essa violência regista-se na amargura de uma única personagem e na violência psicológica que se auto infligiu. Sobre Bruno Carnide enquanto contador de histórias fica aqui - uma vez mais - o registo de uma forte e madura visão de alguém capaz de contar a violência (gráfica) de forma tranquilamente assustadora e genialmente construída com o recurso a imagens que se assemelham a breves sopros de uma memória uma vez tida.
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8 / 10
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