segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Nasci com a Trovoada: Autobiografia Póstuma de um Cineasta (2017)

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Nasci com a Trovoada: Autobiografia Póstuma de um Cineasta de Leonor Areal é um documentário em formato de longa-metragem português presente na secção competitiva da vigésima-terceira edição do Caminhos do Cinema Português, a decorrer em Coimbra até ao próximo dia 3 de Dezembro e que, através de textos auto-biográficos e cartas pessoais é dado a conhecer ao espectador parte da vida e da obra do realizador Manuel Guimarães.
Por entre as suas preocupações sociais e uma intensa paixão pelo cinema que o acompanhou desde jovem idade, o espectador conhece a obra do realizador neo-realista da sua primeira à última obra enquanto, ao mesmo tempo, conhece compreende como a obra do mesmo foi alvo da atenta e apertada mão da censura e da PIDE durante a ditadura de Salazar.
Uma das primeiras frases proferidas em Nasci com a Trovoada: Autobiografia Póstuma de um Cineasta remete o espectador para um pensamento que acompanhou o realizador na maior parte da sua vida... "tenho 55 anos e sinto-me nervoso tal como quando era adolescente" fruto de uma sociedade que, dizia, tenta insistentemente enganá-lo (nos). As inseguranças e incertezas sobre o seu percurso, sobre a sua obra e o seu legado agudizadas pelo tempo social e político que se fazia sentir no Portugal de então, afectavam-no ao ponto de constantemente considerar a sua obra como algo menor... algo pouco explorado... pouco visto... pouco rentabilizado e suficientemente adulterado para, no final, pouco a considerar sua.
Da sua juventude no Porto enquanto estudante de Belas Artes às viagens a uma Lisboa que respirava (algum) cinema e onde tudo acontecia, Manuel Guimarães revela nos seus textos, cuidadosamente organizados de forma cronológica pela realizadora para a construção deste documentário, a tardia entrada para a Sétima Arte que tanto o fazia mover. Dos primeiros mestres cinematográficos que fizeram despertar a sua paixão de Eisenstein a Murnau, Guimarães recorda o filme O Garoto, de Charlie Chaplin como aquele que determinou todo o seu futuro enquanto cinéfilo e artista.
A sua paixão e vida com Clarice, que surgiu como sua musa ainda nos tempos de Belas Artes e que se tornou na companheira para a vida, os seus textos revelam ainda o trabalho que fez para Reinaldo Ferreira - o famoso Repórter X - para ilustrar a sua revista, no Palácio de Cristal no início da década de '30 por ocasião da Exposição Colonial aí realizada, o realizador assumia-se como um "populista e um revoluncionário" em toda a sua obra.
A sua primeira grande experiência no cinema dá-se com a elaboração de desenhos dos miúdos de Aniki-Bobó, de Manoel de Oliveira aplicando pela primeira vez os seus conhecimentos na obra Vidas sem Rumo (1956) - iniciada anos antes - sendo, pelo caminho, assistente de Arthur Duarte, Alberto Miranda ou Manoel de Oliveira. Foi a única que lhe deu algum lucro apesar de ter sido altamente escrutinada pela PIDE e, como tal, censurada para não apresentar tudo o que deveria.
Foi com Saltimbancos (1951) que deu os primeiros passos. A mesma obra que sofreu inúmeros problemas de produção e que parecia condená-lo a uma constante incerteza sobre o seu futuro. Afectada pelo mau tempo e pela falta de dinheiro, Saltimbancos foi, segundo o próprio uma obra "independente e amadora". É, no entanto, em 1952 que dirige Nazaré, obra sobre a comunidade piscatória da vila e no qual assume a sua vertente realista sendo, no entanto, uma obra "cara e difícil" que considera como o seu melhor filme e onde teve mais liberdade... independentemente dos tempos vividos. No entanto, Guimarães revela a sua solidão... a sua vontade de querer falar de coisas reais e que importassem... daquilo que afectava os portugueses sem, no entanto, poder fazê-lo limitando-se aos desejos de obras populares e de entretenimento... aquelas aceiteis e que lhe poderiam conferir dinheiro... aquelas em que não se sentia ele próprio e que, como tal, delas recusava fazer parte.
Dos insucessos da sua obra ao repúdio de colegas que não queriam trabalhar com o realizador por considerá-lo "maldito" ou "amaldiçoado" ao momento em que chega a direcção de A Costureirinha da Sé (1959), o seu maior desastre artístico e financeiro que o obrigaram a retomar a direcção de vídeos turísticos e comerciais... também eles fracassos comerciais que o impediam de entrar na televisão nacional.
D'O Crime da Aldeia Velha (1964) - hoje um clássico reconhecido - e suas respectivas dúvidas em envolver-se no projecto, Manuel Guimarães revela o seu esgotamento no início da produção do mesmo apesar das melhores condições técnicas e de trabalho que o introduziram no maior complexo fílmico de exteriores do país naquela que seria a sua interpretação sobre a tragédia do amor em busca da razão. Daqui a'O Trigo e o Joio (1965) obra quase imposta e que considerou um erro no seu percurso cinematográfico e que antes de concluir abandonou rumo a Itália onde fora usufruir de uma bolsa de estudo atribuída pela Fundação Calouste Gulbenkian... Aí pensa na vida e como considera não a ter aproveitado. Pensa no filho que pensa ter muitas ilusões e em vias de se preparar para a desilusão - a sua... a dele? - apesar do talento que lhe reconhece. Em Itália pensa no seu próximo projecto, uma história sobre a liberdade de uma mulher que imagina numa varanda que observa todos os dias. Liberdade essa que fica ensombrada com as notícias da morte de Humberto Delgado e com os impedimentos do Estado Português em ter o seu filme presente em Veneza.
A correspondência trocada com Fernando Namora é também analisada e uma sua futura colaboração questionada enquanto desabafa sobre si próprio, sobre a sua revolta interior fazendo denotar um certo desdém pela sua própria pessoa assumindo-se como triste e cansado. Revela a perda, a doença, a depressão e a proximidade do seu fim sempre com muita revolta. Fala na eventualidade de ver um neto, ou neta, e pinta para descontrair a mente como que um antídoto para os seus pensamentos. Pensa ainda num futuro que diz já não ir ter.
Com Lotação Esgotada (1972), sua obra "menor" e mais sarcástica, Guimarães assume-a como o resultado de todo o seu fracasso artístico até ao 25 de Abril, a liberdade finalmente conquistada com as gravações dos primeiros instantes no Largo do Carmo e com Virgílio Ferreira e o seu Cântico Final (1976) sente ter finalmente toda a liberdade de trabalho que sempre ambicionara ter e, apesar de não a considerar como a obra da sua vida... "muito faltava para tal", foi a obra protagonizada por Ruy de Carvalho, Curado Ribeiro, Ana Zanatti e Simone de Oliveira a última que viria a dirigir e a única feita em liberdade.
Com o recurso a imagens das suas obras, fotografias do seu arquivo e algumas escassas entrevistas que viria a dar já nos últimos anos da sua vida, Nasci com a Trovoada: Autobiografia Póstuma de um Cineasta é um registo da sua obra, do seu pensamento e principalmente de uma certa alma atormentada pela falta da liberdade que a sua criatividade fazia sentir. Com um constante sentimento anti-regime e uma superior linha condutora que liga liberdade ao processo criativo, o documentário de Leonor Areal retrata o homem e a obra, a forma como ambos se fundem e vivem em co-dependência e sobretudo o sinal dos tempos vividos e a sua directa influência sobre o realizador eternamente atormentado com a ideia de que a sua obra não são um importante legado para a arte e sobre os tempos que vivera.
Calmo e quase sempre a um passo tranquilo e muito próprio, o documentário de Leonor Areal conserva, no entanto, toda a agitação de uma mente oprimida e colhida pela ditadura mas sempre a funcionar com o propósito maior de filmar a verdade, a realidade e sobretudo o seu tempo.
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7 / 10
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