Deus Não Quis de António Ferreira é uma brilhante curta-metragem portuguesa de ficção vencedora de vários prémios nacionais e internacionais, baseada na canção popular "Laurindinha", e que a minha curiosidade há muito apelava por ver.
Esta curta-metragem conta-nos a história do amor interrompido entre Laurinda (Catarina Lacerda) e Ramiro (Fernando Delfim Duarte), um jovem rapaz que em 1970 se preparava para partir para a guerra colonial, tendo por isso de deixar a sua amada em Portugal.
Miguel Triantafillo escreve o argumento desta genial curta-metragem cruzando assim em primeiro lugar uma tradicional canção popular portuguesa com factos da História recente do país ao mesmo tempo que nos conta uma comovente história de amor não concluído.
"Laurindinha", a canção popular que nos acompanha ao longo de todo o filme, torna-se de certa forma o seu fio condutor e, ao mesmo tempo, o "argumento" que justifica o clima de terror pelo qual milhares de jovens portugueses (neste caso concreto mas que poderia ser aplicado para qualquer outra sociedade ou época) sentiam naqueles idos anos 60 e 70 do século XX ao equacionarem todo o seu futuro numa guerra da qual poderiam ou não regressar. Esta canção é assim uma forma popular, dita tradicional, de justificar o injustificável como se de uma forma tranquilizadora se tratasse, e para isso basta atentarmos na letra da canção "Deixai-o ir... Ó Laurindinha vem à janela... Vem ver o amor que ele vai p'rá guerra... Ele torna a vir...", racionalizando e justificando assim aquilo que jamais, em qualquer que seja a época ou sociedade, ter uma justificação... uma guerra e o consequente exercício de terror e medo que dela advêm. Até que ponto pode um pai, uma mãe ou uma sociedade no seu todo racionalizar um conflito que pode causar a morte, a perda física ou psicológica e a violência como o destino dos seus filhos?
Esta canção popular funciona assim como a forma de retratar a permissão da cultura e da sociedade da época ao conflito, à guerra e ao terror ao mesmo tempo que suavizavam as consequências daqueles que por ela passaram bem como aquelas que se fizeram reflectir nessa mesma sociedade encaradas como meras fatalidades ou um destino de um povo esquecendo ou ignorando assim o trauma, a dor, o sofrimento e a morte que dela (guerra) advêm e como estes afectam não só essa dita sociedade como principalmente o Indivíduo que é aqui um mero "instrumento" não só de uma época como de um regime.
É esta a grande conquista do magnífico argumento que nos obriga assim a pensar não só nos desígnios de um regime e da sua época histórica como principalmente nas possíveis consequências que as escolhas imputadas a um povo podem reflectir. Quando se pensa num qualquer conflito equacionam-se as perdas que este vai provocar mas muito raramente se pensou (ou ainda pensa) nas consequências e traumas físicos ou psicológicos daqueles que por ela passaram e que neste caso concreto, regressam a Portugal com incapacidades físicas e psicológicas que se mantiveram para sempre esquecidos ou silenciadas no tempo.
A dupla Catarina Lacerda e Fernando Delfim Duarte compõem um sentido e emocionante par romântico que sem qualquer palavra e apenas com os seus gestos e momentos em conjunto demonstram(nos) o seu amor, entrega e dedicação ao mesmo tempo que igualmente se sente a iminência da separação. Os dois actores conseguem ainda evidenciar dois distintos momentos da sua relação estando inicialmente destacado o crescente amor e, após o regresso de "Ramiro" da guerra, a sua separação de "Laurinda" por já não se sentir o homem que ela em tempos amara. Uma dupla que emerge ao ponto de se considerar brilhante e emocionante.
Destaque ainda para a composição musical de Luís Pedro Madeira que adapta a canção popular para uma melodia que agarra a simpatia de um público actual, bem como a fotografia de Paulo Ares que nos consegue inserir no tempo e no espaço em questão através da captação de um ambiente de uma localidade do interior rural de onde tantos e tantos jovens saíram para a guerra colonial, nesta magnífica curta-metragem de António Ferreira que não só se assume como uma forte e importante obra do cinema português como o próprio realizador se confirma como um dos mais seguros e promissores cineastas nacionais.
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" (...) Ele torna a vir...
Se Deus quiser (...)"
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10 / 10
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