sexta-feira, 14 de junho de 2013

Fúria (2013)

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Fúria de Sérgio Grilo é uma curta-metragem portuguesa de ficção que passou no recentemente iniciado PFShortsFest, e que constitui possivelmente um dos mais fortes filmes do ano, não só pela sua temática como também pelo facto de ser um dos trabalhos com uma história que marca alguns elementos da nossa História contemporânea e outros tantos dos dramas sociais a que habitualmente assistimos ou deles temos conhecimento.
António (Manuel Jorge) é um homem assombrado pelos pesadelos de um passado na Guerra Colonial. As imagens que persistem na sua memória acompanham o trauma do qual nunca recuperou e que vive num silêncio bem ruidoso. Com um trabalho agrícola na quinta de um ex-camarada de armas, António vive ainda um outro drama diário ao cuidar da sua filha vítima de um acidente que a deixou acamada e sem grande reacção para a vida.
Num dia igual a tantos outros, três homens mais jovens (dois dos quais filhos do seu patrão) dirigem-se para a casa de António para a vandalizar e assaltar, encontrando pelo caminho a sua indefesa filha que sodomizam. No entanto, testemunhando a barbárie, António sente despertar em si algo que pensava apenas real nos pesadelos que o atormentam diariamente.
Sérgio Grilo além de dirigir esta curta-metragem, escreve também o seu bem elaborado argumento que nos faz reflectir sobre diversos aspectos, nomeadamente o drama e trauma daqueles que tendo servido um país e um regime específico na Guerra Colonial, nunca tiveram dela a sua real expiação e redenção tendo vivido, até hoje, as suas sequelas no silêncio e escondidos de qualquer tratamento ou acompanhamento psicológico que os pudesse ajudar a alcançar uma vida melhor.
Isolado de situações e ambientes conflituosos, "António" é assim um homem pacato na medida das suas possibilidades. No entanto, esta história de Grilo apresenta-nos mais uma realidade que apesar de ficcionada é, infelizmente, a de tantas pessoas que se deparam com um filho gravemente condicionado por um acidente. Este homem isolado, aparentemente pacato, vive assim uma existência conturbada não pelos problemas que alguém lhe coloca mas pela "simples" adversidade que a vida um dia lhe resolveu dar.
Este acumular de tensões que não sendo completamente explícitas se percebem pelos silêncios e expressões "vazias" do protagonista que percebemos irem acabar numa explosão de sentimentos e violência para a qual não estamos preparados mas que, ao mesmo tempo, compreendemos, aceitamos e justificamos como sendo "necessárias".
No fundo, e apesar de se encontrar fora de uma guerra que o marcou incondicionalmente, "António" é um homem que nunca conseguira viver em paz mas sim num ambiente de "paz armada" que o tentava a cada momento através dos olhares mais ou menos indiscretos e que um dia independentemente do que o levasse a tal, iria explodir numa raiva e fúria que ninguém conseguiria controlar.
É esta mesma fúria que o realizador e argumentista tão bem capta através das expressões, e principalmente dos silêncios (pouco silenciosos), que um brilhante Manuel Jorge como actor protagonista intepreta, e que inicialmente nos faz compreender a sua solidão e isolamento como um processo natural de alguém que só assim aparenta conseguir atingir a sua calma mas que ao mesmo tempo nos demonstra viver no seu limite, podendo dela despertar a qualquer momento relevando assim a fúria que o seu calmo olhar não consegue esconder.
Manuel Jorge, que como foi indicado não é actor dito profissional, não deixa no entanto de ter uma sentida e sólida interpretação que nos faz enquanto espectadores criar uma imediata empatia. Se por um lado compreendemos o seu drama diária fruto dos seus pesadelos pois muitos de nós conhecemos histórias de um parente que passou pela Guerra e os traumas que de lá voltaram, não é menos verdade que percebemos outro dos seus dramas ao tratar de uma jovem filha que infelizmente já não tem a sua devida autonomia. Assim, e sem ser uma personagem imediatamente empática, não deixa de captar a nossa atenção e queremos conhecê-lo e saber o que o motiva (se ainda algo...). E é quando os seus limites, já muito dissipados, são ultrapassados que finalmente vemos naquele homem um vingador que esperava poder despertar dando assim uma qualquer libertação e redenção aos pecados que sente ter cometido no passado fruto de uma ordem, mas que agora os cumpre convicto de que agiu pelo bem maior, ao livrar-se de um grupo de marginais protegidos pela mão de um pai que ignorava as más acções dos seus filhos.
De destaque ainda a caracterização de Anabela Gonçalves que por um lado evidencia a rudeza de pessoas do campo e de uma vida aparentemente mais dura de trabalho manual como, por outro lado, exponencia as características da violência física presentes nos últimos instantes deste trabalho, que são ainda aumentados pela fotografia de José Caria que transforma todo um ambiente já carregado pela sua trágica história num espaço de onde, cedo percebemos, não conseguir escapar. Finalmente é ainda de destacar a banda-sonora composta por Bruno Vicente e Pedro Marques que dão uma atmosfera muito característica, tanto trágica como melancólica, às vidas e vivências daquelas personagens condenadas pelo seu próprio destino.
Quando pensamos que a fúria apenas pode ser um reflexo de uma injustiça, esta brilhante e tensa curta-metragem de Sérgio Grilo mostra-nos que para além de uma vingança ela pode ser não mais do que o viver um momento de justiça que pela via legal jamais chegaria e secretamente, quer o admitamos ou não, sabemos que "António" tem toda a legitimidade.
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10 / 10
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