O Outro Lado do Coração de John Cameron Mitchell foi o filme que deu a terceira nomeação ao Oscar de Melhor Actriz a Nicole Kidman em 2011 mas que só agora estreia comercialmente em Portugal, fazendo dele um dos filmes pelos quais mais ansiei nos últimos tempos.
Becca (Kidman) e Howie (Aaron Eckhart) são um casal que tem, aparentemente, uma existência feliz até o seu filho Danny ser mortalmente atropelado à porta da sua casa. Enquanto Becca tenta aos poucos sobreviver à morte que a abalou indiscutivelmente, através de pequenas tarefas como ginástica ou a manutenção do seu jardim, que momentaneamente a ajudam a esquecer o trágico acidente, Howie encontra o seu próprio conforto junto do grupo de apoio de outros pais que, também eles, perderam os seus filhos.
Aos poucos a relação entre Becca e Howie começa a sentir as pequenas grandes feridas que graças à ocasional falta de comunicação e dor se agravam numa sentida e latente tensão que aos poucos os consome. Enquanto Becca chora em silêncio a morte do seu filho, Howie procura uma qualquer expiação através dos inúmeros objectos e marcas que definem a passagem de Danny (que nunca chegamos a ver com vida), pelas suas vidas.
Mas tudo estaria prestes a mudar quando Becca se cruza acidentalmente com Jason (Miles Teller), o jovem adolescente que atrapelou Danny e que vive com os seus próprios demónios, e através da sua companhia encontra um estranho e inesperado conforto que lhe fora privado durante todos aqueles meses após a morte do seu filho.
O argumento de David Lindsay-Abaire baseado na sua obra homónima consegue ser curiosamente trágico e redentor. Se por um lado nos proporciona um constante estado de emoção ao qual dificilmente conseguimos escapar, não é menos verdade quando percebemos que por detrás de toda a tragédia, presente e passada, daqueles intervenientes existe uma estranha mas ao mesmo tempo reconfortante redenção com os caminhos que lhe foram de uma ou outra forma proporcionados. É praticamente inimaginável podermos retirar algum tipo de "bem-estar" ou conforto com estas existências trágicas mas, ao mesmo tempo, existe essa sensação presente em diversos momentos. Percebemos facilmente e com agrado que, por detrás de um conjunto de personagens e vidas fictícias, existem experiências e realidades que poderiam ser as nossas ou as de alguém que conhecemos. A dor, a tragédia e o remorso convivem lado a lado com a necessidade de ver o dia seguinte e aquilo que ele proporciona e com isso perceber se é esse dia que necessitamos para poder continuar o caminho, o rumo e a vida que se iniciou.
No entanto, esta é também ela uma experiência agridoce pois à medida que cada dia passa as experiências e vivências que vão ficando para trás têm de ser enfrentadas e de certa forma ultrapassadas para assim poder avançar... mais um dia. Mas, como poder viver com uma dor ou um acontecimento que eliminam lentamente um pouco da alegria que cada indivíduo tem dentro de si? Como suportar o facto de que aqueles que perdemos "ontem" já não os iremos ver "amanhã"? Ou, como diz "Becca" a uma dada altura do filme... "if God wanted a little angel why didn't he make his own?"? Se uns encontram refúgio e um alento na religião ou na potencialidade de uma qualquer entidade superior ter levado o seu ente querido (e toda a fé é de respeitar), porque será que os outros não crentes não têm a mesma possibilidade de reivindicar para si aqueles que lhes foram precocemente retirados? A sua reflexão deixa pensar que felizes são aqueles que ainda encontram esse tal refúgio na fé pois um dia podem chamar por essa entidade superior mas... e aqueles que não têm essa fé e encaram a realidade sob outra perspectiva... como encontram eles a forma de continuar mais um dia? Que significado passa então a ter a sua própria vida? Os seus hábitos? As palavras e conversas que têm de efectuar com os seus amigos e familiares que, também eles impotentes face a uma dura morte, apenas querem o "nosso" próprio bem? Se uns encontram reconforto nessa fé, num grupo de apoio ou na manutenção dos objectos tal e qual eles foram deixados por quem partiu, porque não haver quem encontre conforto num riso, num quebrar de regras até então respeitadas ou simplesmente no facto de verbalizar sentimentos e pensamentos até então reprimidos e ignorados? Porque não enfrentar o "outro" que tal como "eu", foi vítima de uma fatalidade que iria para sempre modificar a sua "normalidade" e estar, tal como "eu", devastado e com o seu próprio sentido de vida arruinado?
Se é verdade que desde o primeiro instante se sente por um lado a presença de "Danny" que nunca chegamos fisicamente a ver além das gravações que "Howie" insistentemente vê todas as noites, não é menos verdade que a tensão existente entre este e "Becca" é sentida em toda a sua magnitude. Ambos amam-se e sabem que as suas vidas se complementam, no entanto estão incapazes de exprimir os seus sentimentos pois percebem que parte das suas vidas terminou. Tudo o que fazem, dizem e como se comportam é um reflexo do filho que perderam, uma imagem dos pais que foram e que agora perderam o elemento que lhes permitiu ter essa condição. E é esta mesma tensão que é magistralmente incorporada por uma brilhante Nicole Kidman que tem aqui mais uma das suas fortes e intensas interpretações nomeada para diversos prémios desde o Oscar ao Globo de Ouro passando pelo SAG, e que mais uma vez a confirma como uma das grandes actrizes dos nossos tempos (e neste caso também produtora), e que o seu olhar vago e distante não é uma marca de ausência de sentimentos, bem pelo contrário, é sinal de uma mãe que perdeu o seu mais precioso ser e que, ela própria, se encontra numa rota de colisão com a sua essência e com o seu ser pois deixou de ser mãe... parte do que a definia.
E se se confirma que Nicole Kidman tem um forte e intenso desempenho, não é menos verdade que a seu lado está um gigante Aaron Eckhart com aquele que é possivelmente a sua mais sentida e emotiva interpretação, superando mesmo a obtida há mais de dez anos em Erin Brockovich, como o pai que deixou de ser mas que luta desesperadamente num agonizante silêncio por perceber que está aos poucos também a perder a mulher que sempre amou.
A química entre os dois é latente. Sente-se a todo o instante em que contracenam e mesmo nos momentos em que não estão presencialmente juntos percebemos que boa parte da sua interpretação está a ser feita em dependência um do outro. Um age... o outro reage e vice-versa, e apenas nos breves intervalos eles estão à procura de si próprios e da forma como poder enfrentar o dia de amanhã onde todos os mesmos sentimentos e pensamentos irão estar novamente nos seus actos, gestos e comportamentos, e transformam-se assim na dupla mais intensa a que as nossas salas de cinema irão certamente assistir.
Mas não podemos esquecer dois dos actores do elenco e que muito contribuem para o aprofundar da personagem de Kidman. Por um lado temos Dianne Wiest como "Nat", a atormentada mãe de "Becca" que largos anos antes perdera também ela um filho e que com ela tenta uma aproximação que parece ter os seus próprios demónios e distâncias. Por outro temos a igualmente fantástica interpretação de Miles Teller como "Jason", o jovem adolescente que atropelara "Danny" e que além de entregar a explicação que todos gostaríamos que fosse verdade para as suas vidas (e que dá título ao próprio filme), demonstra também conter uma emoção e tensão desarmantes que parecem poder fazê-lo entrar num qualquer colapso emocional a qualquer momento.
Tecnicamente destaco ainda a brilhante fotografia de Frank G. DeMarco que nos insere num ambiente profundamente melancólico e onde as luzes são tão inversamente opostas à intensidade que sentimos, enquadrando-nos numa atmosfera onde a tristeza e a mágoa vivem de braços dados, e ainda a igualmente emotiva música original de Anton Sanko que parece chorar (e fazer-nos chorar) fazendo do espectador um interveniente em todo aquele sentimento de tristeza que invade os próprios personagens, mas que ao mesmo tempo nos deixa pensar que talvez, simplesmente talvez, exista a tal realidade alternativa onde possamos ser todos felizes e viver vidas confortáveis.
Rabbit Hole, que em Portugal recebeu este curioso título O Outro Lado do Coração é, sem qualquer reserva ou dúvida, um dos filmes do ano com uma Nicole Kidman em forma e com uma interpretação notável, e que apesar de tarde para qualquer curioso cinéfilo, finalmente chegou às nossas mãos. Se há filmes imperdíveis... este é um deles.
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"Becca: Somewhere out there I'm having a good time. And so this is just the sad version of us..."
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10 / 10
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