Selma de Ava DuVernay é a mais recente longa-metragem a recuperar a memória e o legado do Nobel da Paz de 1964, Martin Luther King.
Iniciando nesse exacto momento, Selma conta-nos a história do humanista e defensor dos Direitos Humanos no momento da sua marcha de Selma a Montgomery, no Alabama, e todas as dificuldades para a concretização da mesma nomeadamente com o governador do Estado que se opunha à sua missão, ao mesmo tempo que observamos alguns dos violentos ataques aos direitos da população afro-americana nomeadamente no seu acesso ao voto.
Tido como um dos filmes mais aguardados desta temporada de prémios, Selma naquela que é uma realização de Ava DuVernay e uma produção de Oprah Winfrey que desempenha aqui um personagem secundária mas relevante para a contextualização desta história no seu tempo e espaço, aquilo que de facto mais de destaca nesta longa-metragem são os violentos atropelos que o respeito pela dignidade humana e dos seus respectivos direitos sofreram durante décadas em silêncio, e o mais representativo desses momentos - entre muitos - regista-se aquando da primeira marcha sobre a ponte de entrada em Selma onde aqueles que marcham são brutalizados pelas autoridades e demais elementos recrutados por entre a população dita civil.
Num sombrio e medonho segmento que apenas poderia figurar nas memórias colectivas - e distantes - dos mais cruéis tempos da escravatura, esta marcha rumo a Selma foi palco da mais hedionda e brutal violência que desde gás lacrimogénio ao uso de bastões cravejados de arame farpado, chicotes e atropelo a cavalo teve, de tudo, um pouco.
Esta marcha abraçada por Martin Luther King - num magnífico e inspirado desempenho de David Oyelowo - teve o intuito da defesa e reivindicação do direito ao voto então vetado à população afro-americana em muitos dos Estados sulistas dos Estados Unidos através de um conjunto de absurdos requisitos que lhes eram impostos. O segmento em que "Annie Lee Cooper" (Winfrey) tem obter o seu recenseamento e lhe são colocadas questões como o conhecimento do preâmbulo da Constituição ou até mesmo o nome dos juízes do Estado são uma pequena mostra de como o acesso ao voto era reservado a uma população branca tida como "superior". Este direito ao voto era tido como essencial pela população afro-americana visto que só assim poderiam eleger os seus representantes e sentir os seus direitos e deveres assegurados por lei. De outra forma, estando apenas sujeitos aos representantes escolhidos por terceiros, como poderia toda esta população - que na prática representavam metade da total do Estado - sentir-se representado por aqueles que estavam essencialmente contra os seus direitos?
Mas a violência à qual Selma expõe o espectador não se prende unicamente com aquela tida pelas autoridades estatais. Aqui, conhecemos ainda os entraves colocados pela presidência de Johnson que tinha como agenda principal a "luta contra a pobreza", ignorando voluntariamente que muita dessa pobreza tinha como origem o facto de uma boa parte da sua população não se poder defender e fazer representar devidamente, ou até mesmo a contra-acção de J. Edgar Hoover - patrão do FBI - que controlava todas as conversas telefónicas de Luther King ou inventava gravações que sentia o poderem intimidar e, dessa forma, conter as suas acções. Era esta violência, desconhecida do grande público, que era no fundo o grande entrave às acções de dignificação dos direitos individuais, sociais e políticas de uma grande parte da população e que apenas foram tornados "nacionais" aquando da mediatização desta marcha para Selma que ganhou contornos nacionais ao chegar directamente aos olhos não só de uma população afro-americana mas sim de toda uma população independentemente da sua religião, localização e especialmente "cor".
Ainda que ao longo de toda esta longa-metragem não exista uma interpretação que se destaque pois todas actuam como um complemento das demais, é indispensável referir a inspirada interpretação do actor britânico David Oyelowo como "Luther King" e da sua intensa reprodução de alguns dos discursos que apelam aos mais elementares - pensávamos nós - direitos de qualquer indivíduo e ainda à interpretação de Carmen Ejogo que poderemos mais facilmente associar a Metro (1997) com Eddie Murphy e que aqui interpreta "Coretta King", a mulher de um símbolo, que reproduz com mestria os dilemas pessoais e morais de se encontrar nessa mesma situação.
Com uma reprodução fiel da época não só nos acontecimentos históricos - e do seu lado sombrio - como também a nível técnico através de um notável guarda-roupa, direcção artística e caracterização e ainda repleto de interpretações ditas "secundárias" (nunca o são) como as de Oprah Winfrey, Tom Wilkinson como "Lyndon Johnson", Tim Roth como "George Wallace" e o seu "southern way of life" que mais não simbolizava do que o profundo racismo que sentia e que lhe convinha em termos eleitorais ou ainda Keith Stanfield que com o seu "Jimmy Lee Jackson" encarna uma das mais sérias e sofridas vítimas de um regime que defendia o apartheid, Selma torna-se não em "mais um" filme sobre o racismo mas sim num dos seus mais destemidos não pela transmissão da mensagem que já lhe conhecemos mas sim por nos mostrar que não é só culpado aquele que propaga a discriminação mas também todos aqueles que silenciosamente pactuam com a mesma.
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"Martin Luther King Jr.:
Our lives are not fully lived if we're not willing to die for those we love, for what we believe."
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8 / 10
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