O Caso Alzheimer de Erik Van Looy este presente no penúltimo dia do Cinema Bioscoop - Festa do Cinema da Holanda e da Flandres a decorrer no Cinema São Jorge em Lisboa.
Vincke (Koen De Bouw) e Verstuyft (Werner De Smedt) são dois brilhantes detectives de Antuérpia que após o desmantelamento de uma rede de pedofilia se vêem confrontados com o desaparecimento de um respeitado membro do Estado e com a intrigante morte de duas prostitutas.
É no seio desta investigação que os seus caminhos se cruzam com Angelo Ledda (Jan Decleir), um assassino profissional contratado para inúmeros "serviços" mas que agora se afasta gradualmente da "profissão" por denotar uma gradual debilitação devido ao Alzheimer de que sofre, especialmente depois de recusar assassinar uma jovem call-girl de 12 anos, o que provoca a ira dos seus antigos patrões. Ledda, que encontra as últimas energias para eliminar quem o contrata, estabelece assim uma relação entre todo o universo de escândalos sexuais e políticos com ramificações bem mais complicadas do que aquelas que a dupla Vincke e Verstuyft alguma vez imaginaram.
Com base no romance de Jan Geeraerts, Van Looy em colaboração com Carl Joos escrevem o brilhante argumento deste filme que nos deixa em suspenso ao longo de duas emocionantes horas, levando-nos a entrar não só no complexo universo destas personagens como também no jugo político, económico e sexual que está por detrás de rostos aparentemente inocentes e que pretendem a todo o custo espelhar uma moral social que está longe de poder ser aceite e evidenciando as inúmeras teias de corrupção que estão por detrás daqueles que deveriam cumprir a lei.
Num único filme consegue ser harmoniosamente juntos estilos tão diversos como o policial e o drama, a comédia e a intriga sempre recheados de muito suspense e de uma intensidade mordaz que nos prende aos destinos daquelas personagens deixando-nos sempre à espera do quão longe podem, ou querem, ir em nome da justiça e daqueles que vivendo nas suas margens não prejudicaram ninguém além de si próprios.
Este filme faz-nos igualmente nutrir uma especial simpatia por aquele que, à partida, deveria ser o verdadeiro repúdio de todo o filme. "Ledda" é um assassino profissional que levou toda a sua vida a eliminar "inconvenientes" para a Mafia, dando-lhe assim a possibilidade de continuar com todos os seus crimes e escapatórias à lei. E esta simpatia é conseguida graças à interpretação bem humana que um fantástico Jan Decleir consegue incorporar na sua personagem dando-lhe uma dimensão que passa a de simples assassino transformando-o antes num agente justiceiro de uma lei que a própria não reconhece mas que está no subconsciente de qualquer um de nós. Afinal quem nos incomoda mais: um assassino profissional que elimina um violador ou um pedófilo ou um homem que pratica crimes hediondos capazes de chocar as mentes de qualquer um de nós?
Se socialmente qualquer crime é de recriminar e de punir, não deixa de ser menos verdade que existe uma lei para além da própria que por muito condenável seja existe na mente de todos nós e sabemos no nosso íntimo que somos incapazes de julgar um homem como "Ledda" que resolve limpar os verdadeiros prevaricadores tornando todo o espaço em que co-habitamos estranhamente mais seguro.
No entanto, não é menos verdade que precisamos desse braço da lei também presente, e aqui está presente atrés de "Vincke" interpretado por um inspirado Koen De Bouw como o polícia que tudo faz para descobrir os factos e a verdade que estes escondem, mas que desespera por não conseguir tornar todo o seu mundo num espaço perfeito e livre de crime. É a "Ledda" e aos seus actos que vai buscar a força necessária para saber que algo é possível, naquela que é uma perfeita mas estranha junção entre o crime e a lei pois na prática um não "sobrevive" sem o outro. E De Bouw interpreta com uma extrema Humanidade o dilema em que o seu "Vincke" vive. Se por um lado é um polícia do dito "lado certo da lei" que pretende prender e punir aqueles que a violam, não é menos verdade que para o fazer acaba por ter de ceder aos caprichos e vontades de um homem que sempre viveu a sua vida no lado oposto da lei, que a contornou e violou vezes sem conta estando sempre um passo à frente daquilo que "Vincke" representa. É esta dualidade que os tanto De Vouw como Decleir representam numa perfeição e harmonia constantes e que nos conseguem cativar desde o primeiro tenebroso momento.
É ainda de destacar a interpretação de Werner De Smedt como "Verstuyft", o polícia que estando sempre do dito lado certo da lei começa a colidir com a súbita alteração de comportamento de "Vencke" e que, como tal, se assume como o elemento que o consegue trazer para aquele mesmo lado não o deixando portanto ser totalmente corrompido por uma incansável vontade de saber a verdade que o pode, invariavelmente, levar para caminhos menos ortodoxos.
Toda a atmosfera deste filme é enriquecida por uma excelente direcção de fotografia da autoria de Danny Elsen que transforma uma chuvosa Antuérpia em ruas e espaços sinistros onde o crime abunda. Sempre com uma luminosidade muito própria digna de uma Europa do norte onde o sol aparenta ter esquecido de aparecer, somos encaminhados por um ambiente que oscila entre várias tonalidades de azul que refletem não só o frio do espaço temporal como principalmente o mescla com a própria mente perturbada de "Ledda", denotando que aos poucos se começa a fragmentar enquanto se isola de grandes sentimentos em nome de uma verdade que tarda a chegar. É assim esta atmosfera fria e quase temporalmente distante de todos os intervenientes que Elsen nos transmite que funciona como uma comparação com a própria lei e justiça que parecem tardar ou sequer aparecer, num ambiente típico de um policial que recupera os seus elementos fundamentais dando-lhe um toque moderno, e o qual a música original de Stephen Warbeck ajuda a recriar e manter no clima perfeito desde o primeiro instante cativando o espectador ao ponto de esquecer a duração do próprio filme.
No final temos um thriller emocionante e repleto de adrenalina mas com uma história de fundo forte e bem narrada que nos prende aos destinos das suas personagens e das suas últimas acções que, na prática, acabem por definir toda a sua vida tendo ela sido vivida mais ou menos fora da lei, aproximando as suas personagens e esquecendo de que lado dessa dita lei viveram.
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9 / 10
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