sexta-feira, 27 de setembro de 2013

To Agori Troei to Fagito tou Pouliou (2012)

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To Agori Troei to Fagito tou Pouliou de Ektoras Lygizos foi um dos filmes que passou por Portugal na programação do Queer Lisboa e que me suscitou bastante curiosidade não só por ser o candidato da Grécia para o Oscar de Filme Estrangeiro como também pelo facto da sua curiosa história estar envolta na dura realidade pela qual o país, e a Europa de uma forma geral, agora atravessam.
Neste filme encontramo-nos numa praticamente anónima Atenas onde Yorgos (Yannis Papadopoulos), um jovem tenor desempregado, enfrenta as dificuldades de uma vida na capital grega da actualidade.
Sózinho de qualquer outra companhia humana, Yorgos apenas tem a acompanhá-lo o seu canário que, tal como ele, tem uma magnífica voz que na prática de pouco lhes serve. Assim, e sem conseguir manter uma ocupação que o sustente, Yorgos vive abaixo dos limites desta nova sociedade que consome drasticamente todos aqueles que nela se encontram mostrando que aqueles que outrora eram os seus talentos são hoje peças meramente decorativas sem qualquer utilidade prática.
Ektoras Lygizos além de realizar escreveu também esta magnífica história que mais não é do que um relato de tantas outras histórias que atravessam de uma ponta à outra esta nossa Europa, e obrigam o espectador a uma reflexão sobre as trágicas realidades pelas quais o continente hoje atravessa. Outrora uma referência de qualidade de vida e de oportunidade, a Europa vive nestes últimos anos uma situação de total ruptura com o seu próprio sistema que não vê por parte dos seus governos qualquer tipo de apoio, abrindo assim uma colisão entre um novo e ainda não bem definido modelo de "sobrevivência dos mais fortes" em relação àqueles que com mais ou menos dificuldades conseguiram aos poucos ir construindo a sua própria vida e que se vêem agora a braços com a perda de toda uma vida em construção.
É neste paradigma e com estas premissas que Lygizos nos mostra um olhar sobre aquele que é o seu país mas que, tão facilmente, se poderia estar a referir a Portugal ou a qualquer uma das demais sociedades mediterrânicas que atravessam a mesma difícil realidade. Outrora uma referência como o "berço da Democracia", a Grécia vê-se agora enfrentada como o país que viu o fim da mesma, enterrando-se e ao seu povo num conjunto de medidas que, em última análise, privam todos de uma vida de qualidade e bem-estar como é esperado de uma dita Democracia moderna e onde, como cruel consequência, os seus cidadãos se vêem também eles privados dos seus direitos principalmente aquele de sobrevivência. Primeiro são cortadas certas regalias sociais aos quais depois se vêem negados dos seus direitos fundamentais começando pelo direito ao trabalho que ele própria gera a perda de tudo o demais inclusivé, como vemos aqui tão bem retratado, o poder comprar algo para comer ou para pagar a conta da água, eliminando assim a própria sobrevivência de um povo. Aos poucos a própria existência de "Yorgos", que é aqui o rosto anónimo de tantos outros gregos, perde uma boa parte da sua autonomia e individualidade enquanto cidadão. Incapaz de produzir algo em concreto pois era tenor de profissão, todos os trabalhos lhe são ora negados ora denota uma incapacidade de os realizar, e a pobreza extrema a que chega começa aos poucos a limitar negativamente as suas próprias capacidades de interacção com os demais mantendo-se isolado e constantemente só sem comunicar com ninguém mesmo na situação extrema em que se encontra sem ter meios próprios de subsistência e prestes a ser despejado de uma casa que não consegue manter.
Tal como o seu canário, "Yorgos" tem uma belíssima voz sendo esta a sua única forma de expressão livre e incapaz de lhe ser retirada pelos demais mas, na prática, de que forma pode esta contribuir  para a sua sobrevivência quando se encontra num país que não consegue providenciar à sua população necessidades básicas? Não estando estas asseguradas, quem se pode dar a um "luxo" de se cultivar culturalmente e assistir a um espectáculo que pode custar uma refeição para a família? Não sendo a cultura uma prioridade... que utilidade têm pessoas como "Yorgos" que foram preparados academicamente para proporcionar aos demais essa mesma cultura?
Mas Lygizos consegue ir ainda mais longe com esta sua (nossa) história, e proporcionar-nos um dos momentos mais mordazes e crus de todo o filme quando nos remete para um segmento inicial onde "Yorgos" se prepara para uma audição enquanto cantor lírico, e canta um excerto de Bach. Sem entender alemão e o poder ou mensagem que as palavras que profere têm, questionamo-nos sobre o paralelismo que este momento tem para com a realidade onde, numa Atenas actual um governo acata ordens vindas de uma distante Berlim que determinam o extermínio da individualidade dos seus cidadãos e, como tal, da própria cultura de um país. Não estaremos nós a assistir a todo um novo, e igualmente cruel, processo de genocídio?
Desde o primeiro instante que acompanhamos "Yorgos", percebemos que vamos acompanhá-lo na sua longa luta pela sobrevivência e, como tal, perceber como, ou de que forma, tantos como ele resistem numa sociedade que aos poucos parece querer contribuir para o seu próprio extermínio. Assim e enquanto observadores, vemos este jovem tentar a sua sorte em inúmeros trabalhos afastando-se dos mesmos por não conseguir neles concretizar objectivos "mínimos", ao mesmo tempo que tenta sobreviver.. alimentar-se e ao seu canário, a única companhia que mantém e com o qual partilha diversas vezes o pouco alimento que tem comendo, também ele, muita da alpista que o pequeno animal possui. A última réstia de dignidade, e talvez de liberdade que lhe resta, partilha-a com aquele seu companheiro que, tal como ele, a única coisa bela que possui é a sua voz capaz de encantar todos aqueles que os escutam.
É esta mesma sobrevivência física, mas não comportamental pois enquanto observamos percebemos que a sua individualidade já partiu há muito, que o faz alimentar-se dessa alpista, de pequenos frutos nas traseiras do prédio em que habita, de um chá ou uma bolacha em casa de um vizinho que auxilia ocasionalmente, do lixo de outros que recolhe e até mesmo (e talvez o meu mais chocante de todo o filme e que consistirá eventualmente naquele factor que irá impedir este filme de fazer carreira comercial para além da Grécia) do seu próprio esperma. E é neste exacto momento que percebemos que os seus limites enquanto indivíduo foram totalmente ultrapassados e que essa sua sobrevivência lhe retirou qualquer tipo de dignidade ou pudor.
É o desemprego, a carência e a consequente miséria que leva o indivíduo a situações limite incapazes de existir noutros tempos e noutras condições que fazem o indivíduo ter a noção animal de que precisa viver, a qualquer custo, mas que ao mesmo tempo é um ser incapaz de garantir ou proporcionar essa mesma sobrevivência pois tudo aquilo que sempre fez é agora "inútil", fazendo dele dispensável para a sociedade que integra, sentimento este que se propaga assustadoramente por gerações inteiras de gregos, e dos demais Europeus, que se vêem agora elementos dispensáveis e indesejados por uma Europa (ou seu ideal) que ajudaram a construir.
Retirada a subsistência e os direitos individuais de cada um, como conseguirá alguém resistir com dignidade quando não tem onde se proteger e quem o defenda? Tal como em meados do século passado os judeus se viram ameaçados na sua condição individual e enquanto povo, também hoje os gregos, os portugueses, os espanhóis ou os italianos se vêem a braços com a ameaça à sua própria existência enquanto povo, enquanto cidadãos e acima de tudo enquanto indivíduos. Mas enquanto nos obriga a questionar sobre este aspecto, Lygizos também quase nos retira o fôlego quando nos obriga a perceber a realidade daquele jovem que não num futuro que não conseguimos no momento precisar, mas sim no imediato em que tem de passar por todas aquelas dificuldades presentes na vidas de tantos que, tal como ele, são rostos anónimos que tentam esconder a sua situação por vergonha ou medo de uma qualquer ostracização.
A interpretação de Yannis Papadopoulos como, não direi herói mas sim resistente, "Yorgos" é desarmante. Primeiro porque nos consegue cativar durante todos os instantes em que nos mostra a sua forma de sobreviver sem nunca perder a sua dignidade ou esquecer aquele que partilha o seu espaço e por quem tem estranhamente (ou talvez não) tantas semelhanças. Se um não consegue subsistir por não ter emprego, o outro também não consegue viver não tendo a alpista que lhe é dada. Se um vive numa gaiola imposta pelo Homem, este vive numa prisão financeira por ver aos poucos todos os seus bens desaparecerem e, como tal, a sua própria segurança, vivendo assim prisioneiro das portas que lhe são fechadas. Uma prisão aberta que é tão ou mais claustrofóbica do que aquela que o eu canário vive, sendo que ambos, à sua maneira, encontram uma forma de sobreviver e até esquecer a fome ou delírios que a mesma lhe "impõe" e que são claramente retratados na debilidade com que "Yorgos" se depara em diversos momentos como podemos ver quando recorre freneticamente a todos os locais por onde julga poder encontrar alimento. E em segundo lugar por ter uma interpretação franca e genuína, longe de lugares comuns que dramatizariam a sua situação para além da real e que aqui, com integridade e honestidade, mostram o extremo de uma degradação psicológica à qual o Homem pode chegar quando lhe retiram todos os meios para poder viver com dignidade, segurança e conforto. Papadopoulos tem, seguramente e sem qualquer reserva, uma das mais fortes e devastadoras interpretações do ano, à qual será impossível ficar indiferente. Sublime ao ponto de nos demostrar que toda a sua precária condição consegue ser ultrapassada sendo que, no entanto, o único momento em que o vemos vacilar é aquele em que aparentemente está impossibilitado de chegar ao seu canário. A sua aflição e a emoção que transmite através da sua perda são francamente arrepiantes e conseguem desarmar qualquer um.
"Boy Eating the Bird's Food", o título internacional com que este filme se tem apresentado em diversos festivais, mais não é do que um franco e devastador retrato de um mundo em crise económica, financeira, cultural e principalmente moral onde, em nome do dinheiro e de uma austeridade sem limites, se deixam morrer primeiro o espírito e depois o físico de milhões de indivíduos que foram, em tempos, os rostos de civilizações que renasceram de guerras e de ditaduras tendo mostrado recuperações ecoómicas milagrosas que os colocaram como exemplos a seguir. No entanto, agora que o dinheiro falta, e fala mais alto do que tudo o demais, temos o retrato de alguém que recusa a perder a sua dignidade e a sua Humanidade... nem que isso signifique partilhar aquilo que tem com a mais frágil e cândida alma... como a de um canário. E não fosse o momento acima referido que poderá chocar as mentes de mais alguns, Boy Eating the Bird's Food e Lygizos seriam os claros vencedores do Oscar de Filme Estrangeiro a atribuir no próximo ano. No entanto, resta esperar que uma Academia Europeia de Cinema, tradicionalmente menos convencional (mesmo nos tempos que agora correm) resolva transformá-lo num dos filmes do ano. Por mim... já o é.
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