E Agora? Lembra-me de Joaquim Pinto é um documentário em longa-metragem português que tem causado muito boa impressão, e completamente justificada desde já adianto, pelos festivais de cinema por onde tem passado, nomeadamente no Festival Internacional de Cinema de Locarno, na Suíça no qual esteve nomeado para o seu prémio máximo, o Leopardo de Ouro, e do qual saiu vencedor de três prémios, entre eles o Prémio Especial do Júri, e que agora vê a sua exibição nacional no Cinema São Jorge no decorrer da edição deste ano do Queer Lisboa.
Joaquim Pinto convive há cerca de vinte anos com o VIH e com o VHC, e com base no seu caderno de apontamentos elaborado durante um ano de ensaios clínicos com drogas tóxicas e não aprovadas efectuados pelo próprio realizador em Madrid, acompanhamo-lo, bem como às suas reflexões sobre a vida e a memória que sobrevive ao passar do tempo, sobre alguns amigos presentes e aqueles que a vida viu partir ao mesmo tempo que tece lúcidas considerações sobre o mundo em que vive (vivemos!).
É esta reflexão que nos faz acompanhá-lo em considerações sobre o tempo passado e presente em que se recorda dos seus amigos que com ele privaram em tantas situações, alguns dos quais que partiram cedo demais, bem como sobre os seus primeiros e mais emblemáticos filmes entre os quais se destaca a sua primeira longa-metragem Uma Pedra no Bolso. E é nesta mesma emocionante reflexão que o acompanhos e que nos faz pensar sobre problemas tão actuais como as epidemias independentemente da origem que possam ter e sobre a globalização das mesmas e a situação política e económica que atravessam a sociedade nestes últimos tempos.
Vários são assim os segmentos em que ao longo deste documentário escutamos como um ensurdecedor pano de fundo notícias sobre o aumento dos impostos, a crise que assola Espanha tal como se faz sentir por Portugal onde os sucessivos cortes orçamentais tornam "excedentários" cuidados médicos básicos que podem ajudar a prolongar em condições dignas as vidas daqueles que necessitam, e que empobrecem das mais variadas formas toda uma população que se sente a sufocar. Sufoco esse que, tal como os incêndios que devastam muito rapidamente todos os territórios por onde passam, impede qualquer indivíduo de pensar num plano futuro ainda que também ele esteja presente nas suas reflexões sobre a existência; o que a define, como ela se manifesta ou como se concretizar de forma a que se possa dizer no futuro "eu" existi.
Na sua essência, Joaquim Pinto faz-nos reflectir sobre a sobrevivência individual (a sua e a de todos) e colectiva que estão intimamente ligadas a uma definição de memória. A memória individual que nos faz equacionar sobre os nossos ideais e a forma como encaramos o mundo, as pessoas que conhecemos sejam elas a família que temos, os amigos que formamos ou aqueles que amamos e com quem partilhamos a vida completando o mundo, o nosso mundo e a nossa mais ou menos breve passagem, as nossas experiências e os nossos bons e maus momentos, no fundo as situações pelas quais passamos e a forma como elas aos poucos, mais ou menos discretamente, influenciam a nossa forma de estar e encarar o mundo.
Foi nesta abordagem que me lembrei imediatamente de uma pequena passagem do filme Shall We Dance? de Peter Chelsom, onde uma emocionante Susan Sarandon, questionada sobre o porquê do casamento responde que "as pessoas celebram-no para ter alguém que um dia testemunhe a sua passagem pela vida". Esta pequena e tão reveladora resposta poderia muito facilmente caracterizar outro importante elemento deste filme, ou seja, a relação profissional e sobretudo sentimental, que o realizador Joaquim Pinto mantém com o seu companheiro Nuno Leonel, com quem se recolheu na intimidade de uma vida recatada no campo e que ele próprio assume discretamente e a seu tempo um desempenho fundamental e central na execução deste filme, e na qual o seu dia-a-dia é repleto de momentos tranquilos na companhia dos seus cães, os próprios que assumem aqui um papel central em alguns dos momentos mais bem dispostos de todo o documentário, com a reflorestação de pequenas áreas da sua propriedade e na troca de pequenos ensinamentos que obtêm, e partilham, na companhia de uma vizinha como importante pano de fundo naquele que poderia ser facilmente considerado um retrato da vida quotidiana de ambos.
Longe de se transformar num relato sobre a doença e as fatalidades que lhe estão inerentes, Joaquim Pinto faz de E Agora? Lembra-me uma história, a sua, sobre a vida, sobre os prazeres que esta lhe proporciona, mesmo que por vezes seguidos de momentos tristes e de perda numa celebração diária dos dias e momentos que passam, da companhia que partilha com aqueles que fazem parte dos mesmos e que são as suas (in)conscientes testemunhas transmitindo ao espectador um emotivo relato sobre algo que tantos de nós esquecem frequentemente... a vida.
É neste período que o vemos recordar os momentos passados como prova da sua existência, as memórias partilhadas com o pai e da casa onde este nasceu marcada pela voluntária passagem do tempo e que faz, também ela, parte da sua história, num pequeno mas muito emotivo segmento do qual apenas testemunhamos algumas fotografias.
Joaquim Pinto recorda também as suas viagens pela Europa de leste numa época em que o comunismo dominava a mesma, os estudos que pretendia lá efectuar e as pessoas que acabou por conhecer num viagem sempre recorrente ao seu tratamento e à forma como por vezes o mesmo torna as suas memórias difusas e difíceis de ordenar provocando-lhe um maior esforço de concentração para as manter intactas, e de uma forma serena e lúcida lança o espectador numa viagem que o faz obrigatoriamente pensar e recordar o seu próprio espaço e as pessoas que também conheceu e passaram pela sua vida, acabando por conseguir fazer a sua história a de qualquer outra pessoa mesmo que as memórias que partilha sejam apenas suas.
Quando me lancei na descoberta deste filme pensei que iria ser fundamentalmente um relato na primeira pessoa sobre o tratamento para o VIH e sobre a forma como ele afecta a já debilitada condição física de um indivíduo. A minha surpresa chega quando Pinto transforma um ano da sua vida numa história que vence naturalmente pela sua humanidade e pela forma como aproxima o espectador da mesma criando elos de empatia, de identificações e por vezes de momentos que poderiam ser os de qualquer um de nós. Uma história que assumidamente celebra a vida, e a vontade de viver através das memórias positivas construídas ao longo da mesma, deixando os momentos mais negativos e complicados relegados para um segundo plano, como algo que aconteceu durante um percurso, dedicando-se preferencialmente a encontrar todos aqueles pequenos grandes momentos que a sua memória (sempre presente) irá registar como aqueles que são definitivamente importantes fazendo de E Agora? Lembra-me não só o filme maior de toda a sua carreira como um dos maiores filmes dos últimos largos anos apresentado por um realizador português não só pela sua importante componente verídica como principalmente pela forma como é filmado e apresentado, como principalmente pela sua extrema sensibilidade onde os silêncios, a perda (seja de que natureza fôr) e os momentos mais banais do quotidiano são filmados com o requinte de quem por eles passou e sentiu com a maior das dignidades.
Assim, E Agora? Lembra-me é não só um dos filmes portugueses do ano como essencialmente um dos filmes do ano quer seja em Portugal como em qualquer outra parte do mundo. Um daqueles filmes que se impõe naturalmente pela importância da sua mensagem e pela sensibilidade e honestidade com que chega ao espectador que se liga natural e espontaneamente com a mesma, tal é a força deste relato auto-biográfico que se assume sem qualquer pudor como uma obra-prima que irradia vida, memória, e uma dose muito marcante de amor e dedicação que une as vidas dos seus principais intervenientes. Um filme que se preocupa em contar uma história do "eu" sem nunca esquecer o olhar que lança para o mundo, o "colectivo", transformando essas mesmas histórias pelas quais passou Joaquim Pinto em relatos daquilo que outro indivíduo, numa qualquer outra parte do mundo, poderia assumir como sendo suas desde as ansiedades às expectativas, das dificuldades às dores.
Aquela que poderia ser a história de um homem que tem convivido com uma condição de saúde debilitante num mundo que encara os tratamentos médicos como um "luxo" e cujos cortes orçamentais consideram "excedentários", Pinto encontra o seu refúgio na sua casa no campo, no seu companheiro, nos seus cães e nas inúmeras recordações que o passado lhe proporciona e que os transforma em desabafos sobre o mundo e sobre a vida mantendo sempre de perto a sombra de um desaparecimento que não é chorado mas sim encarado como algo que poderá um dia surgir... para ele e para todos, mas que a força da memória que temos, e que também deixamos aos demais, fará com que seja marcado, querido e lembrado numa verdadeira e sentida meditação sobre o verdadeiro significado de estar vivo e presente.
Como apontamento técnico tenho de destacar a edição que Joaquim Pinto e Nuno Leonel fizeram a este magnífico documentário que graças a ela se apresenta tão coerente como uma memória ou pensamento deve ser... com a lucidez com que eles nos percorrem a mente que transformam todas as imagens que nos são presenteados em momentos aparentemente saídos no exacto momento dos nossos pensamentos como se os estivessemos a "elaborar" naquele preciso instante.
Finalmente, E Agora? Lembra-me não é apenas um dos grandes filmes do ano, ainda que este tenha trazido poucas longas-metragens à luz do dia. Pinto tem aqui não só a sua obra maior como também um dos grandes filmes alguma vez feitos e para nós, espectadores anónimos que não o conhecem, o testemunho de que a sua vida e passagem estão testemunhadas. Simplesmente um dos melhores filmes que vi até à data.
É esta reflexão que nos faz acompanhá-lo em considerações sobre o tempo passado e presente em que se recorda dos seus amigos que com ele privaram em tantas situações, alguns dos quais que partiram cedo demais, bem como sobre os seus primeiros e mais emblemáticos filmes entre os quais se destaca a sua primeira longa-metragem Uma Pedra no Bolso. E é nesta mesma emocionante reflexão que o acompanhos e que nos faz pensar sobre problemas tão actuais como as epidemias independentemente da origem que possam ter e sobre a globalização das mesmas e a situação política e económica que atravessam a sociedade nestes últimos tempos.
Vários são assim os segmentos em que ao longo deste documentário escutamos como um ensurdecedor pano de fundo notícias sobre o aumento dos impostos, a crise que assola Espanha tal como se faz sentir por Portugal onde os sucessivos cortes orçamentais tornam "excedentários" cuidados médicos básicos que podem ajudar a prolongar em condições dignas as vidas daqueles que necessitam, e que empobrecem das mais variadas formas toda uma população que se sente a sufocar. Sufoco esse que, tal como os incêndios que devastam muito rapidamente todos os territórios por onde passam, impede qualquer indivíduo de pensar num plano futuro ainda que também ele esteja presente nas suas reflexões sobre a existência; o que a define, como ela se manifesta ou como se concretizar de forma a que se possa dizer no futuro "eu" existi.
Na sua essência, Joaquim Pinto faz-nos reflectir sobre a sobrevivência individual (a sua e a de todos) e colectiva que estão intimamente ligadas a uma definição de memória. A memória individual que nos faz equacionar sobre os nossos ideais e a forma como encaramos o mundo, as pessoas que conhecemos sejam elas a família que temos, os amigos que formamos ou aqueles que amamos e com quem partilhamos a vida completando o mundo, o nosso mundo e a nossa mais ou menos breve passagem, as nossas experiências e os nossos bons e maus momentos, no fundo as situações pelas quais passamos e a forma como elas aos poucos, mais ou menos discretamente, influenciam a nossa forma de estar e encarar o mundo.
Foi nesta abordagem que me lembrei imediatamente de uma pequena passagem do filme Shall We Dance? de Peter Chelsom, onde uma emocionante Susan Sarandon, questionada sobre o porquê do casamento responde que "as pessoas celebram-no para ter alguém que um dia testemunhe a sua passagem pela vida". Esta pequena e tão reveladora resposta poderia muito facilmente caracterizar outro importante elemento deste filme, ou seja, a relação profissional e sobretudo sentimental, que o realizador Joaquim Pinto mantém com o seu companheiro Nuno Leonel, com quem se recolheu na intimidade de uma vida recatada no campo e que ele próprio assume discretamente e a seu tempo um desempenho fundamental e central na execução deste filme, e na qual o seu dia-a-dia é repleto de momentos tranquilos na companhia dos seus cães, os próprios que assumem aqui um papel central em alguns dos momentos mais bem dispostos de todo o documentário, com a reflorestação de pequenas áreas da sua propriedade e na troca de pequenos ensinamentos que obtêm, e partilham, na companhia de uma vizinha como importante pano de fundo naquele que poderia ser facilmente considerado um retrato da vida quotidiana de ambos.
Longe de se transformar num relato sobre a doença e as fatalidades que lhe estão inerentes, Joaquim Pinto faz de E Agora? Lembra-me uma história, a sua, sobre a vida, sobre os prazeres que esta lhe proporciona, mesmo que por vezes seguidos de momentos tristes e de perda numa celebração diária dos dias e momentos que passam, da companhia que partilha com aqueles que fazem parte dos mesmos e que são as suas (in)conscientes testemunhas transmitindo ao espectador um emotivo relato sobre algo que tantos de nós esquecem frequentemente... a vida.
É neste período que o vemos recordar os momentos passados como prova da sua existência, as memórias partilhadas com o pai e da casa onde este nasceu marcada pela voluntária passagem do tempo e que faz, também ela, parte da sua história, num pequeno mas muito emotivo segmento do qual apenas testemunhamos algumas fotografias.
Joaquim Pinto recorda também as suas viagens pela Europa de leste numa época em que o comunismo dominava a mesma, os estudos que pretendia lá efectuar e as pessoas que acabou por conhecer num viagem sempre recorrente ao seu tratamento e à forma como por vezes o mesmo torna as suas memórias difusas e difíceis de ordenar provocando-lhe um maior esforço de concentração para as manter intactas, e de uma forma serena e lúcida lança o espectador numa viagem que o faz obrigatoriamente pensar e recordar o seu próprio espaço e as pessoas que também conheceu e passaram pela sua vida, acabando por conseguir fazer a sua história a de qualquer outra pessoa mesmo que as memórias que partilha sejam apenas suas.
Quando me lancei na descoberta deste filme pensei que iria ser fundamentalmente um relato na primeira pessoa sobre o tratamento para o VIH e sobre a forma como ele afecta a já debilitada condição física de um indivíduo. A minha surpresa chega quando Pinto transforma um ano da sua vida numa história que vence naturalmente pela sua humanidade e pela forma como aproxima o espectador da mesma criando elos de empatia, de identificações e por vezes de momentos que poderiam ser os de qualquer um de nós. Uma história que assumidamente celebra a vida, e a vontade de viver através das memórias positivas construídas ao longo da mesma, deixando os momentos mais negativos e complicados relegados para um segundo plano, como algo que aconteceu durante um percurso, dedicando-se preferencialmente a encontrar todos aqueles pequenos grandes momentos que a sua memória (sempre presente) irá registar como aqueles que são definitivamente importantes fazendo de E Agora? Lembra-me não só o filme maior de toda a sua carreira como um dos maiores filmes dos últimos largos anos apresentado por um realizador português não só pela sua importante componente verídica como principalmente pela forma como é filmado e apresentado, como principalmente pela sua extrema sensibilidade onde os silêncios, a perda (seja de que natureza fôr) e os momentos mais banais do quotidiano são filmados com o requinte de quem por eles passou e sentiu com a maior das dignidades.
Assim, E Agora? Lembra-me é não só um dos filmes portugueses do ano como essencialmente um dos filmes do ano quer seja em Portugal como em qualquer outra parte do mundo. Um daqueles filmes que se impõe naturalmente pela importância da sua mensagem e pela sensibilidade e honestidade com que chega ao espectador que se liga natural e espontaneamente com a mesma, tal é a força deste relato auto-biográfico que se assume sem qualquer pudor como uma obra-prima que irradia vida, memória, e uma dose muito marcante de amor e dedicação que une as vidas dos seus principais intervenientes. Um filme que se preocupa em contar uma história do "eu" sem nunca esquecer o olhar que lança para o mundo, o "colectivo", transformando essas mesmas histórias pelas quais passou Joaquim Pinto em relatos daquilo que outro indivíduo, numa qualquer outra parte do mundo, poderia assumir como sendo suas desde as ansiedades às expectativas, das dificuldades às dores.
Aquela que poderia ser a história de um homem que tem convivido com uma condição de saúde debilitante num mundo que encara os tratamentos médicos como um "luxo" e cujos cortes orçamentais consideram "excedentários", Pinto encontra o seu refúgio na sua casa no campo, no seu companheiro, nos seus cães e nas inúmeras recordações que o passado lhe proporciona e que os transforma em desabafos sobre o mundo e sobre a vida mantendo sempre de perto a sombra de um desaparecimento que não é chorado mas sim encarado como algo que poderá um dia surgir... para ele e para todos, mas que a força da memória que temos, e que também deixamos aos demais, fará com que seja marcado, querido e lembrado numa verdadeira e sentida meditação sobre o verdadeiro significado de estar vivo e presente.
Como apontamento técnico tenho de destacar a edição que Joaquim Pinto e Nuno Leonel fizeram a este magnífico documentário que graças a ela se apresenta tão coerente como uma memória ou pensamento deve ser... com a lucidez com que eles nos percorrem a mente que transformam todas as imagens que nos são presenteados em momentos aparentemente saídos no exacto momento dos nossos pensamentos como se os estivessemos a "elaborar" naquele preciso instante.
Finalmente, E Agora? Lembra-me não é apenas um dos grandes filmes do ano, ainda que este tenha trazido poucas longas-metragens à luz do dia. Pinto tem aqui não só a sua obra maior como também um dos grandes filmes alguma vez feitos e para nós, espectadores anónimos que não o conhecem, o testemunho de que a sua vida e passagem estão testemunhadas. Simplesmente um dos melhores filmes que vi até à data.
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"Joaquim Pinto: Quando regressarmos ao pó a vida respirará de alívio."
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