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A Inevitabilidade das Coisas de Felix Van Groeningen foi a longa-metragem escolhida para a cerimónia de encerramento da segunda edição do Cinema Bioscoop - Festival de Cinema da Holanda e da Flandres que decorreu no cinema São Jorge, em Lisboa, desde a passada quinta-feira.
Gunther Strobbe (Kenneth Vanbaeden) é um rapaz de treze anos que vive no seio de uma família onde o alcoól e o lixo fazem parte da sua família disfuncional dominada pelo seu pai e três tios perfeitos marginais à sociedade que sem um trabalho estável, no meio de noites perdidas em alcoól e sexo
ocasional, os Strobbe passam por um conjunto de situações semelhantes a um desgaste físico e emocional sem limites e sem
qualquer tipo de preocupação rumo à sua própria extinção, sempre sob um lema que os desresponsabiliza "Deus criou o dia e nós passamo-lo a festejar".
Gunther percebe que está, aos poucos, a ser preparado para seguir o mesmo estilo de vida do qual parece não poder escapar e que irá assim dominar toda a sua existência e forma de estar, sendo que os demais dele só esperam uma perpetuação dos hábitos da sua família que apenas o levarão ao ritmo de vida que os seus familiares têm independentemente de aparentar ser alguém com um nível de inteligência um pouco mais desenvolvido e, como tal, à possibilidade de fazer um pouco mais da sua vida, ou que se torne num jovem pai esquecendo assim todos os objectivos de vida e portas que lhe podem ser abertas aspirando depois apenas uma vida igualmente marginal igual àquela que os Strobbe sempre estiveram habituados.
Um adulto Gunther (Valentijn Dhaenens) continua à espera da sua grande oportunidade, com relações ocasionais longe de um grande amor da sua vida. Tenta lançar a sua carreira enquanto escritor na qual conta a sua própria história e factos numa altura em que a mulher com quem vive uma relação ausente de afectividade lhe anuncia que está grávida, facto que passa a atormentar toda a sua existência.
Van Groeningen e Christophe Dirickx escrevem um argumento baseado no romance de Dimitri Verhulst que nos insere num ambiente muito semelhante àquele que Scola nos deu no final da década de 70 do século passado com o seu brilhante Brutti, Sporchi e Cattivi ao retratar a desilusão não assumida de uma família nas franjas da sociedade. No entanto, afastando-se de um humor acutilante presente na obra-prima de Scola, Van Groeningen toma literalmente todos os podres e desilusões de uma família misturando-os e entregando uma obra onde todos estão inerentemente ausentes de qualquer esperança. Sentimos a espiral de decadência e antevemos desde muito cedo que o rumo daquelas personagens não pode ser bom. No entanto, é exemplar a forma como lhes é dada vida e sobretudo o facto de não os transformar em banais marginais mas sim em pessoas dotadas de uma extrema humanidade que, por um ou outro motivo, nunca tiveram oportunidades de a aplicar em nome do seu próprio bem-estar e da sociedade onde se inserem. Aqui, pelo contrário esta mesma sociedade sempre os colocou de parte, pela sua proveniência, pela sua despreocupação enquanto jovens, pelos seus modestos recursos ou até pela sua peculiar forma de diversão, e em vez de lutar contra essa tendência feita os "Strobbe" deixaram-se levar por ela, dando-lhe razão e inconscientemente arrastando-se rumo a um lugar de onde jamais iriam sair, aos vícios, às dependências e a uma vida que mesmo que lhe sorrissem estaria fechada por capricho a qualquer vontade que pudessem mostrar-lhe.
No entanto nem só sobre os inúmeros entraves a uma vida melhor se baseia este filme. Pelo contrário, somos ainda levados a um período onde a saturação com este vida, por parte de um jovem "Gunther" que percebe a tempo poder ter mais e melhor do que aquilo que lhe mostraram ser o inevitável, e opta assim por uma vida longe de tudo aquilo que sempre conhecera desde os seus tios, o seu pai e a sua avó que sempre lhe dedicou um carinho e atenção extremos, algo que sempre lhe fora negado por uma mãe que o ignorou. Assim, quando este jovem procura essa oportunidade que lhe é justamente devida, aquilo que encontra é a exigência de lhe ser retirado esse circulo de confiança onde sempre vivera. Círculo esse que, de certa forma, o prendia à tal vida que indesejava e que lhe vedava uma formação académica e a possibilidade de um futuro menos mau. Mas, algo que este excelente argumento mantém sempre presente, é a capacidade de mostrar que as oportunidades são facultadas mas se a mente de quem as tem não cede e se abre às inovações e às mesmas, não esquecendo o passado mas libertando-se das amarras que ele coloca, jamais conseguirá dar o passo em frente e aproveitar o elemento novo com que é presenteado. Esse acaba por ser o principal mote deste filme e aquele pelo qual um "Gunther" adulto se vê de certa forma limitado. Ele sabe que tem as oportunidades mas numa constante luta com o seu passado não o "usa" para falar de si, da forma como o mesmo o influenciou e determinou muitos dos seus comportamentos e, ao mesmo tempo, por não querer falar deles vive numa prisão de medo que o mesmo se aproxime demais e o tome de volta à vida que em tempos tivera.
A sua redenção só chegará no dia em que abraçar como uma parte sua todos aqueles clichés que outros utilizaram para o definir e que jogavam contra a sua própria evolução e transformação. A vida degenerada e vivida marginalmente, a paternidade enquanto um jovem, o seu meio natural e principalmente a sua família... aqueles que o protegeram, que lhe deram vida e segurança mesmo que, por vezes, estes não chegassem através dos melhores meios e métodos. E é quando esta aceitação chega que sabemos que a inevitabilidade das coisas chega não por se transformar naquilo que se espera mas sim por saber que veio de um meio que não o define mas que o molda e caracteriza em valores que de outra forma nunca teria conhecido.
Com um conjunto de actores que encarnam ferozmente as interpretações que lhes são dadas enquanto a caricata família Strobbe, há que destacar no entanto um pequeno conjunto de actores que dominam o filme à sua própria maneira. Logo de início tenho de referir os actores que encarnam "Gunther" em duas distintas fases, ou seja, em jovem interpretado por Kenneth Vanbaeden e em adulto Valentijn Dhaenens. Se o primeiro mostra a força e a determinação de alguém que sabe qual o seu meio mas que ao mesmo tempo percebe que este irá funcionar de forma a prendê-lo a um passado e a uma vida que não quer, o segundo demonstra com certeza que as suas opções não o levaram ao destino que ele pretendia. Em comum ambos têm a aceitação do espaço e do meio das suas origens e conseguem retratar com excelência que podem viver uma vida atormentados em ocultar, principalmente de si próprios, as mesmas ou por sua vez aceitá-las e percebê-las como uma parte do seu intelecto sem que, no entanto, sejam a sua totalidade. O confronto de personalidade que esta personagem tem ao longo de todo o filme e que por vezes consegue ser angustiante para o próprio espectador revelam a capacidade e qualidade interpretativa depositada por estes dois magníficos actores que conseguem fascinar-nos desde o primeiro instante.
Por sua vez há também que destacar a interpretação de Gilda De Bal enquanto "Meetje", a avó de "Gunther" que num silencioso muito estrondoso zela pelo bem-estar de todos os seus filhos que independentemente das suas vidas errantes só lhes quer bem (mesmo quando decide contra eles), e pela extrema ternura e carinho que entrega ao seu neto renegado por uma mãe que nunca o desejou.
E finalmente há que destacar aquela que é capaz de ser a mais marginal e fisicamente mais forte interpretação de todo o filme a cargo de Koen De Graeve enquanto "Celle", o excêntrico pai de "Gunther" que nutre tanto amor como ódio (ainda que ocasional) pelo seu filho, ao ponto de por ele ser capaz de tudo... de entrega e dedicação como também de raiva e fúria por nele ver o motivo da separação da sua mãe.
De destacar ainda as interpretações de Wouter Hendrickx, Johan Heldenbergh e Bert Haelvoet que funcionam como os suportes de comédia do filme enquanto os três tios do jovem "Gunther" que vivem à margem de qualquer convenção social que alguma vez possa ter sido imaginada.
Tecnicamente há que destacar a direcção de fotografia de Ruben Impens que nos faz recuar e fazer-nos sentir parte de uma década de 80 onde os excessos e a consequente marginalidade co-habitavam quase harmoniosamente, e fazer-nos ver todas estas pessoas não como alguém que nada pretende da vida mas sim como retratos daqueles que tentaram e desistiram por saber que jamais se conseguirão libertar dos estigmas que lhes foram colados naquela que é sem qualquer margem para dúvidas uma desconhecida obra-prima vinda da Bélgica.
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10 / 10
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