Poesia de Segunda Categoria de Luís Santo Vaz, que também assina o argumento, é uma curta-metragem portuguesa de ficção que nos transporta no tempo para um encontro entre António Ferro (João Didelet) e um Fernando Pessoa (Rui Mário) que desesperava por dinheiro para sobreviver tendo assim de vender os seus bens. Ferro sugere-lhe que participe num concurso literário, no qual recebe um honroso segundo prémio.
Ensombrado pelo dia em que teria de o receber pela sua obra de referência "Mensagem", considerada "poesia de segunda categoria", Pessoa é visitado por Álvaro de Campos (André Gago), um dos muitos heterónimos que utilizou, demonstrando uma quase esquizofrenia apenas comparada à sinistra época que aos poucos se fazia sentir em Portugal.
Luís Santo Vaz consegue com esta curta-metragem reconstruir um ambiente muito particular da primeira metade do século passado, altura essa em que o país entrava ruinosamente num período sombrio e onde as liberdades se inseriam num conjunto de miragens que levariam anos a obter. Este mesmo clima vai sendo "cozinhado" ao longo da curta e visível através de pequenos elementos que, bem analisados, se tornam desconcertantes e assustadores nomeadamente a paranóia com que é enquadrado o heterónimo de Pessoa, a forma como este é visitado pelo mesmo e principalmente pelos pequenos grandes destalhes factuais com que é encarada, por exemplo, a sua obra-prima Mensagem ao receber um prémio de "segunda categoria", sendo ela por si um elogio à História de Portugal e aos seus inúmeros feitos, elogio esse que é assim estendido à própria cultura e existência lusitana.
No entanto é no preciso momento em que a cerimónia decorre que Luís Santo Vaz consegue reconstruir o segmento mais emblemático e que caracteriza na perfeição essa mesma época ténebre e pouco lúcida a que Portugal iria assistir. Em primeiro lugar graças à interpretação de Paulo João como "Salazar" que, em breves instantes, mostra com um pequeno olhar o quão subjugado iria manter o país nas décadas seguintes, e finalmente graças à própria manifestação de "António Ferro" quando impõe à escritora "Cecília Meireles" que texto deve ler para homenagear um ausente "Pessoa" tendo esta, no entanto, optado por algo bem mais emblemático e característico do momento ao seleccionar "Nevoeiro" como simbologia de um Portugal a entristecer e um vislumbre quase apagado do que fora outrora.
Rui Mário, apesar de uma interpretação fugaz enquanto um dos maiores escritores lusitanos, tem uma interpretação sólida e da qual desejaria ter visto mais aprofundada, ao ponto de ser explorada algum do seu génio e loucura que, tal como podemos constatar, era a única forma do mesmo encarar um Portugal que ele próprio enlouquecia e se fechava em dogmas e certezas de um passado que deveria estar ultrapassado.
Por sua vez Diana Costa e Silva compõe um interessante retrato da escritora "Cecília Meireles", e o segmento em que lê um poema proibido e sintomático do momento, e não só... quão actual ele é, consegue reter uma essência transversal à época e inseri-lo nos nossos dias em que estamos estranhamente a atravessar uma época, também ela, preocupante e asfixiante para a cultura, para a educação e o saber e principalmente para um povo permissivo que se embrenha assim na sua própria loucura.
No entanto também a nível técnico temos uma curta-metragem de qualidade e para tal basta analisar a caracterização da autoria de Mário Leal e Sandra Pinto que consegue fazer destes actores "figuras" das primeiras décadas do século passado, e que em junção com um requintado guarda-roupa de Olga Amorim, Maria Rosa Vaz e Halyna Suyata e uma apurada direcção de arte também da autoria do realizador, nos fazem de facto entrar na época em questão.
Finalmente deixo ainda o merecido destaque à direcção de fotografia de André Matos Cardoso que com uma ausência de luminosidade excessiva tornando todo o ambiente à nossa volta mais carregado de cores vivas e dominantes, consegue ser um retrato de um povo e de uma época que se via esmagado por um regime que se queria austero, dominador e, em grande parte do domínio social, opressor.
Luís Santo Vaz conseguiu aqui encontrar um material forte e francamente interessante que poderia com todo o mérito entregar ao espectador uma longa-metragem desafiante, histórica mas muito dinâmica e que poderia ela própria servir como um interessante objecto de estudo não só da época que retrata como também dos seus intervenientes reais e da grande obra de Pessoa que é aqui inserida.
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"Cecília Meireles: Oh Portugal, hoje és nevoeiro."
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8 / 10
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