domingo, 4 de março de 2018

Vazante (2017)

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Vazante de Daniela Thomas (Portugal/Brasil) presente na secção competitiva do FESTIn - Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa que leva o espectador a uma viagem ao Brasil de 1821 - pré-independência - onde António (Adriano Carvalho), um rico fazendeiro descobre que a sua mulher morrera durante o parto aquando da sua ausência. Na sua propriedade reside com diversos escravos africanos e António, agora viúvo, vê em Beatriz (Luana Nastas), sobrinha da sua mulher a oportunidade de recomeçar uma nova família.
Num mundo que se encontra numa desconhecida transformação, conseguirá António resistir-lhes ou terá de se adaptar àquilo que é inevitável?!
A realizadora e Beto Amaral assinam um argumento que não poderia ser mais actual. No entanto, começando pelo princípio, aquilo que o espectador aqui recebe é um breve mas intenso relato sobre os últimos momentos de um Brasil colonial onde a vontade dos velhos costumes de uma comunidade portuguesa habituada a esse passado se imiscuía com os desejos, vontades e até certo ponto costumes de uma comunidade também ali "estrangeira" que esperava por novos ventos que apenas aos olhos da actualidade se sabiam próximos. "António", rosto desse passado colonial é um homem enriquecido. O espectador desconhece quais as formas pelas quais obteve os seus dividendos mas percebemos que recorre à mão-de-obra escrava, barata, cativa e, como tal, forçada para os obter. Encontramo-nos num Brasil profundo distante de todas as grandes cidades e a viagem para ali chegar - compreende-se - leva vários dias. A comunidade, ainda que próxima em termos geográficos, delimita-se pelo espaço em que cada um dos seus membros vive; "António" num casarão semi-abandonado, o seu cunhado e mulher num espaço mais pequeno e finalmente os escravos na área limítrofe da propriedade onde, ao estilo de uma avenida principal, determinam os seus dias num silêncio quase invisível tal como a sua própria existência.
Assim, e condicionados pela sua existência em comunidade num espaço distante de toda a réstia de civilização - ainda que esta ensombrada pelos ditames violentos de um reino em plena decadência onde a escravatura é um modo de vida e de enriquecimento -, toda a propriedade de "António" é o fruto não só da sua própria lei - não controlada por ninguém - e da sua vontade enquanto dono e senhor. Mas a hipocrisia desta suposta "lei" não termina quando o espectador conhece a forma de estar de um proprietário e senhor que abomina os costumes dos seus escravos mas, no entanto, não só os utiliza para o seu enriquecimento como principalmente para saciar os seus prazeres carnais. "Feliciana" (Jai Baptista) é uma das suas escravas. A sua (silenciosamente) predilecta e que o acompanha quando nada mais existe. "Feliciana" é mãe de "Virgílio" (Vinicius dos Anjos) e, com o decorrer desta história, o espectador desconhece se não será ele o fruto de uma relação entre patrão e escrava que nunca poderia ser reconhecida. Aliás, é depois do casamento entre "António" e a sobrinha "Beatriz" que o espectador compreende que tanto a nova "senhora" como a sua escrava estão ambas grávidas... supostamente do mesmo homem. Ou será que uma latente paixão entre "Beatriz" e "Virgílio" já deu os seus próprios frutos? Poderá "António" ser avô de um filho de "Virgílio" com a sua própria mulher?
Estas questões, que nunca serão respondidas em Vazante mas apenas fruto das conjecturas dos espectadores mais ávidos de uma teoria da conspiração, ecoam ao longo desta história centrada sim nas condições desumanas da escravatura mas principalmente, na loucura de um colonialismo que impunha uma ordem moral que o próprio não respeita ou ao qual dá contas e sim na disputa de um poder que eventualmente se compreendia perdido - ou ameaçado - explícito essencialmente nos segmentos finais onde para impôr uma certa força, o esclavagista "António" assassina não só o recém nascido filho da sua mulher - que sabemos ser filho de "Virgílio" -, com o próprio rapaz (talvez seu filho) e ainda "Feliciana", a sua escrava preferida como marca última dessa demonstração de poder.
De forma arcaica e marcadamente violenta, "António" surge portanto como o último marco da escravatura presente nesse Brasil profundo, na medida em que os seus comportamentos espelham essa prática mas também pela forma como nunca conseguira "domar" (tal como pretendia) uma jovem mulher que perdida na loucura do espaço comunitário se assume como o rosto desse novo (porvir) país ao abraçar o jovem filho de "Feliciana" (e de "António") como aquele que viria a substituir seu... morto por um homem perdido na sua incontrolável raiva ao qual decidiu dar o nome de traição.
Vazante - município no Estado de Minas Gerais -, é assim o rosto daqueles instantes finais de uma certa loucura e decadência do Império. Retrato de um poder extremista e extremado que tenta impôr pela força, pela repressão, pela humilhação e pela simples vontade de poder mandar. Aquele poder que decide entre a vida e a morte. Entre a permissão e o proibido. Entre a liberdade (inexistente) e a transgressão. E é aqui que entra a inicialmente referida menção à actualidade. Neste mundo industrializado, supostamente informado e cada vez mais livre e democrático, como não estabelecer próximas relações para com este Brasil agora a braços com restrições de liberdades e com graves choques de classes que opõem uma grande maioria cada vez mais pobre a uma "elite" conservadora e para quem os direitos parecem estar garantidos de berço?
Com uma magnífica interpretação de Adriano Carvalho que se impõe nesta longa-metragem como o tranquilo rosto de um mal presente, e dotado de um ritmo muito próprio típico de todos os filmes de época, Vazante brilha não só por essa reconstituição histórica mas também, e sobretudo, pela forma como Daniela Thomas filma essa espiral de violência decadente e louca tradicional de todos os fins... mas principalmente esperada para todos os novos começos como aqui o era para este novo (então) Brasil.
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