Capitão Falcão de João Leitão é uma longa-metragem portuguesa de ficção e a escolhida para a cerimónia de abertura do IndieLisboa - Festival Internacional de Cinema Independente que decorre até ao próximo dia 3 de Maio em várias salas da capital nomeadamente no Cinema São Jorge, na Culturgest, na Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema e no Cinema Ideal.
Num Portugal dos anos 50, o Capitão Falcão (Gonçalo Waddington) com a ajuda do Puto Perdiz (David Chan Cordeiro) protegem o país, sob o olhar atento de António de Oliveira Salazar (José Pinto), da ameaça comunista.
No momento em que o país parece perfeito e em que tudo corre segundo os valores máximos de uma Lusitaneidade divina, eis que surgem os primeiros grandes problemas e ameaças à integridade nacional. Conseguirá o destemido Capitão Falcão proteger Portugal dos temidos Capitães de Abril?
Depois de há quatro anos o projecto
Capitão Falcão ter sido ambicionado enquanto uma série de televisão que nunca viu a luz do dia, a longa-metragem estreia finalmente na abertura de um dos mais importantes festivais de cinema da capital e numa das suas mais emblemáticas salas. A antecipação para aquele que é o filme do momento notou-se quando a sala principal do Cinema São Jorge está esgotada e, após um emocionado discurso do realizador se começam a ver as primeiras imagens.
O segmento animado com que se inicia
Capitão Falcão marcou o tom. Desde o primeiro instante em que observamos o brilhante Gonçalo Waddington como protagonista que se percebe que este só poderia ser um dos maiores êxitos do ano não só pelo revivalismo que faz de algumas das séries que fizeram história para aqueles que viveram a infância e a adolescência nos anos 80 e 90, mas também pela excelente execução técnica com que
Capitão Falcão nos brinda.
O argumento de João Leitão e Nuria Leon Bernardo é astuto. Desde as referências histórias e contemplativas de um Portugal mergulhado num orgulho ultra-nacionalista da ditadura do Estado Novo - que segundo o Capitão Falcão haveria (felizmente não) de ser recordado com o bem maior da Nação - sem esquecer algumas das séries referência das duas décadas passadas como, por exemplo, os efeitos - não tão bem feitos - especiais como os
Power Rangers,
Flash Gordon, a série
Batman do final dos anos 60 - inegável a comparação a Batman e Robin versus Falcão e Perdiz -, a inegável referência a James Bond e seus rivais (atentos à referência no bar de criminosos), ou mesmo alguns filmes de artes marciais que faziam as delícias daqueles de nós que perdiam as sextas à noite a ver as longas sessões de cinema da RTP (passo a publicidade) fazem desta longa-metragem um marco histórico na evolução e na originalidade de um cinema português que cada vez mais (se) marca pelo bom gosto e por um conjunto de obras cinematográficas que chegam ao público de uma forma engenhosamente feliz.
Habituado que está o espectador a ter o ditador português como aquilo que ele realmente foi... um ditador, em
Capitão Falcão temos de o encarar - apenas numa ficção muito alternativa - como um mártir em prol de Portugal que tudo fará para o proteger dos inimigos sempre prontos a colocar a segurança nacional em risco. Num mundo dividido em dois blocos serão os comunistas a principal ameaça a esta (apenas) aparente tranquilidade. Portugal e Salazar precisam de um astuto protector capaz de tudo sacrificar em nome do bem da Nação. Aliás, é uma estreita relação entre
"Salazar" e
"Capitão Falcão" que é subtilmente abordada em alguns momentos desta longa-metragem e que serão confirmados mais tarde quando percebemos o quão próximos ambos são.
Aqui, aliás, todos os demais são os verdadeiros problemas. Desde os comunistas que, segundo
"Capitão Falcão", se apoiam na força numérica mas deixando sempre o indivíduo a sofrer, a mulher que é tida como o ser com cérebro primitivo ou o próprio "submundo do crime" composto pelos já referidos comunistas, marinheiros, feministas, travestis, mafiosos, ladrões, mulheres de má vida e claro... os homens das artes (aqueles que não correspondem aos elevados parâmetros aceites pelo Estado) e sem esquecer os Capitães de Abril que são as verdadeiras mentes do crime, rostos de uma nova ordem que o protagonista espera nunca encontrar. Em
Capitão Falcão nada escapa de uma acentuada crítica... nem mesmo o próprio regime que parece ser defendido com unhas e dentes mas, na realidade, é aqui criticado através de uma abordagem quase esquizofrénica da sentida perseguição estrangeira a um Portugal isolado, um descontrole quase mecânico das suas entidades e uma paranóia sobre a defesa do Estado que ultrapassa os limites de qualquer bom senso - inexistente na época retratada - ou até mesmo a submissão da mulher e da família à figura paternal detentora de toda a razão, justiça e lei.
Se
Capitão Falcão transmite excelência em todas as suas componentes técnicas desde a caracterização ao guarda-roupa - Sophia do próximo ano espero que estejam atentos - sem esquecer a muito característica música original de Pedro Marques que muito homenageia as referências anteriormente citadas e que são aqui claros pólos de inspiração, a realidade é que é graças a um elenco de luxo que este filme atinge o ponto de excelência. Se de Gonçalo Waddington nada se pode dizer sobre a sua dramatização ao encarnar as mais diversas personagens - desde o
"Guarda Silvério" de
A Raia dos Medos sem esquecer
"Arnaldo Ferreira" em
Alves dos Reis, o
"Vaz" de
Até Amanhã, Camaradas, o
"Augusto" de
Mal Nascida, o
"Abel Olimpio" de
Noite Sangrenta ou o próprio
"Gonçalo" (ele próprio) de
Odisseia - a realidade é que será este
"Capitão Falcão" que mais parece lhe assentar como uma luva. Desde um cómico de situação a todo um conjunto de movimentos coordenados/encenados que o robotizam, Waddington encarna com alma aquela que parece faltar ao seu
"Capitão". Dono de um aspecto muito
comic, Waddington é o herói improvável não por aquilo que jurou defender mas sim pelos momentos que o transformam no tal herói. A sua personagem (sobre)vive da sorte - de ocasião - que o momento lhe proporciona. De um conjunto de acasos mais ou menos estudados e que resultam em seu favor e, sem nunca questionar aquilo que é a doutrina que defende, o
"Falcão" de Waddington obtém a simpatia do público pelo surreal de um herói improvável num regime ditatorial e austero. Entre o improvável, o cómico e o "parolo", Waddington confere a
"Capitão Falcão" uma estranha graça e humanidade.
Mas o elenco de estrelas não começa ou termina em Waddington. Se ele é a alma desta longa-metragem, não é menos verdade que David Chan Cordeiro se revela num
side-kick "Puto Perdiz", braço direito - e esquerdo - do
"Capitão" e José Pinto entrega ao espectador um
"Oliveira Salazar" muito alternativo - em diversos aspectos - que parodia o ditador não com o objectivo de conquistar a simpatia do público mas sim por reduzir o seu pensamento e doutrina conferindo-lhe uma personalidade que se encontra nos antípodas do verdadeiro conseguindo, portanto, reduzir a sua imagem por escarnear aquilo que este - o ditador per si - encarava como os males de Nação. De um elenco onde ainda se destacam Nuno Lopes, Carla Maciel, Miguel Guilherme, Rui Mendes, Matamba Joaquim, Miguel Borges, Manuel João Vieira ou Pêpê Rapazote, seria impensável deixar esta apreciação crítica sem referir as breves interpretações - mas julgo que determinantes para um futuro... pelo menos assim o espero - como as de Ricardo Carriço como o
"Major Al...Berto", a de Luís Vicente como o temido líder dos comunistas - numa clara referência ao
"Imperador Ming" de
Flash Gordon e a devida homenagem ao êxito
Duarte & Companhia dos anos 80 portugueses - e Bruno Nogueira como
"Flamingo", um dos mais temidos opositores de
"Capitão Falcão", que abre toda uma nova dimensão não só aos homens de barba rija do regime como à própria sexualidade dos seus protagonistas já abalada pelos instantes finais da longa-metragem de João Leitão.
Se o espectador teve de esperar quatro anos para que
Capitão Falcão conseguisse ver a luz do dia numa sala de cinema, não deixa de ser menos verdade que agora se espera com igual - ou superior - ansiedade por uma continuação destas histórias que têm não só o potencial a nível de público com a capacidade de continuar a dar uma vida a todas as surreais personagens que o compõem num conjunto daquilo que suspeito possam ser novas e divertidas aventuras do improvável herói português. Especialmente agora que um novo vilão foi anunciado. Que João Leitão faça "nascer" a sequela - se possível com mais apoios - e que esta esteja para muito breve. Ao próprio e a toda a equipa... um aplauso de pé.