Linhas de Wellington de Valeria Sarmiento, seleccionado para o Festival Internacional de Cinema de Veneza e possivelmente um dos filmes mais aguardados do ano e a maior produção de cinema portuguesa até à data.
Este filme recria assim os dias da terceira invasão francesa a Portugal pelas mãos do Marechal Massena (Melvil Poupaud) ao mesmo tempo que acompanha o enorme êxodo populacional que alguma vez fora registado no país como forma destas populações se refugiarem nas linhas de Torres Vedras, uma enorme estrutura defensiva contruída com o propósito de travar o avanço militar francês rumo a Lisboa.
Tendo a invasão francesa e a guerra como contexto de fundo, este filme acompanha no entanto as histórias e dramas pessoais de uma população civil em êxodo e as transformações radicais que as suas vidas sentiram não só devido às deslocações como também pelas perdas pessoais, independentemente da classe social a que, em tempos, haviam pertencido.
O magnificamente executado argumento de Carlos Saboga, que já havia colaborado em Mistérios de Lisboa de Raúl Ruiz que deveria ter assinado igualmente este filme, dá um perfeito olhar sobre o Portugal da época. Mergulhado em guerra, em êxodos populacionais que deixavam cidades completamente desertificadas, campos de cultivo sujeitos à prática da terra queimada, fome e consequente doença, morte e miséria física, mental e social, Portugal era uma pálida, e quase apagada, imagem do país opulento dos Descobrimentos que largos anos antes havia dado a conhecer novos mundos ao Mundo. É essencialmente este o Portugal que este filme quer retratar, num estranho mas muito interessante paralelismo como o país tal como o temos hoje e, em diversos momentos do mesmo encontramo-nos a pensar sobre o quão semelhante está a situação.
Se por um lado temos uma população empobrecida e com poucas luzes de esperança, não deixa de ser verdade que hoje estamos a atravessar um momento idêntico. Pouca esperança esta que não só é a nível económico como uma das inevitabilidades da guerra e hoje a continuamos a ter devido a outro tipo de guerra, a económico-financeira. A população encontra-se em êxodo para as famosas Linhas de Torres... pois hoje também a temos rumo a outras paragens que lhes forneçam uma segurança financeira que no país não se encontra. E quanto à famosa ajuda externa que anteriormente se revê nos magníficos "amigos" ingleses e hoje nas ditas organizações financeiras internacionais... bom, o que é certo é que esta ajuda revelar-se-ia bem cara e custosa de pagar, tal como daqui a uns anos (e já hoje) o sentimos. Quanto à miséria, fome, doença e analfabetismo... bom, esses são males que também hoje se começam a sentir aos poucos. Estranha, ou talvez mais oportuna, a presença deste filme nestes nossos dias em que os mesmos problemas, sob outras formas, dão novamente os seus "sinais de vida" e que Carlos Saboga sabe transpôr com alguma dose de ironia amarga para o grande ecrã.
Este não é portanto um filme sobre grandes batalhas e combates épicos que dizimaram o país. Esses são, como disse, secundários face àquilo que é verdadeiramente importante. Desse tipo de filme onde a batalha e a guerra ganham uma dimensão única e principal estamos já fartos de ver nas grandes produções norte-americanas que tantas e tantas vezes esquecem o drama humano. Aqui é a irremediável morte do país e do seu povo que parte rumo ao desconhecido deixando para trás, e para sempre, os seus espaços e as suas memórias, e que durante a sua viagem perdem também alguns daqueles que percorreram o seu mesmo caminho, que assume o protagonismo. É uma história sobre o sofrimento silencioso de um povo que aos poucos se limitou a definhar, desaparecer e morrer às mãos de uma guerra que foi não só territorial como também social. Uma guerra que não terminou no final dos conflitos mas que perdurou (e perdura) durante anos sem fim com a cobrança de avultados pagamentos que só eram saciados com o préstimo internacional que por sua vez, qual ciclo vicioso, exige também ele pagamentos de juros insuportavelmente elevados. É este o sofrimento de um país, e de um povo, que este filme tão bem consegue captar. Estaremos, depois disto, ainda tão interessados em ver uma batalha num campo cheio de mortos?
Estamos assim perante um filme que cruza várias histórias desde o comum civil ao militar, passando por uma nobreza agora quase falida e sem posses. Todos eles afectados à sua própria maneira por uma guerra sem sentido (como são todas elas), e completamente transformados pelas suas vivências individuais. A dar corpo, e algumas almas, a este filme temos um extraordinário elenco nacional e internacional onde se destacam Nuno Lopes como o "Sargento Francisco Xavier", um militar destacado que se apaixona por "Maureen", a mulher de um inglês morto em combate, interpretada por Jemima West.
Temos ainda a participação de Soraia Chaves como "Martírio", uma mulher da "vida", John Malkovich como o "General Wellington", num retrato de um homem cujo único propósito era vencer uma guerra e retratá-la com "dignidade e pouco sangue" as suas vitórias, não se preocupando com o drama humano que se fazia sentir um pouco por todo o país. Isabelle Huppert, Catherine Deneuve e Michel Piccoli como uma família francesa em Portugal que ainda vivendo uma certa opulência comparativa com a demais população, demonstra no entanto viver uma decadência física e psicológica fruto de uma guerra que os coloca como "invasores" num país onde há muito vivem.
Carloto Cotta, que se assume como uma figura determinante deste ano no cinema português ao interpretar personagens protagonistas em três interessantes e importantes filmes (Linhas de Wellington, Paixão e Tabu), e que aqui interpreta o "Tenente Pedro de Alencar", um jovem militar que acaba por se cruzar com a grande maioria das demais personagens, percorrendo e percebendo um pouco do drama de todos.
Temos ainda outro dos nomes forte do cinema português, Albano Jerónimo, numa interessante e forte interpretação de um "Abade" que se junta a uma resistência armada que caça franceses isolados e os massacre tão ou mais violentamente que estes o fazem aos indefesos portugueses.
E finalmente temos aquela que, juntamente com Cotta, detém uma das interpretações mais triunfantes deste filme, ou seja, a actriz espanhola Marisa Paredes que, não sendo surpresa nenhuma o seu enorme talento, nos comove com a sua sentida e perturbante interpretação como "D. Filipa Sanchez", uma espanhola que desde criança vive em Coimbra e se recusa a sair da sua casa onde, depois de auxiliar "Pedro de Alencar", sofre uma inesperada e terrível visita que irá marcar para sempre a sua frágil existência.
A unirem-se a este magnífico conjunto de actores temos ainda um vasto elenco secundário ou de participações especiais onde se destacam as presenças de Miguel Borges, José Afonso Pimentel, Adriano Luz, Maria João Bastos, Paulo Pires, Vicent Perez, Chiara Mastroianni, Rita Martins, Marcello Urgeghe, Filipe Vargas, João Arrais, Elsa Zylberstein, Joana de Verona, Victória Guerra, Manuel Wiborg, Diogo Dória ou Ricardo Aibéo, todos eles a contribuir quer para o desenvolvimento das personagens mais destacadas referidas anteriormente como principalmente para demonstrar que existem tantos outros dramas pessoais "escondidos" e que aumentam assim a crueldade de uma guerra que parecia insistir em não terminar.
E tecnicamente este filme é igualmente um marco digno de registo. Não só o seu evidentemente nobre guarda-roupa é digno de referência, pois afinal de contas estamos a falar de um filme de época, mostrando assim a opulência de uma classe nobre e a miséria de um povo cada vez mais empobrecido, como também consegue ser magnífico no retrato das fardas dos dois lados da guerra, evidenciando assim uma riqueza cultural bastante própria, como também há que referir os dois mais fortes aspectos técnicos do mesmo: em primeiro lugar a sua distinta banda-sonora, não épica mas marcante, da autoria de Jorge Arriagada, como principalmente a fotografia de André Szankowski que transforma o Portugal dos 1800's no local desprovido de vida que em tons cinza e castanho e com uma aparente ausência de luz (que só chega após a saída dos franceses) demonstra o resultado das terra queimadas e da fome que se fazia sentir. Graças a ela estamos perante uma ausência de vida que sem ter a morte "às claras", percebemos que ela está presente a cada momento.
Este será possivelmente um daqueles filmes que muitos irão colocar de lado por pensarem que um drama histórico e português será algo para o qual ainda não estão preparados para ver. No entanto, nada poderia ser mais falso. Não só o filme consegue ter uma fluência narrativa exemplar, fruto das inúmeras histórias que vamos acompanhando, como também a sua riqueza visual consegue seduzir-nos e fazer-nos desejar ver sempre um pouco mais. Não é um filme de guerra ou de batalhas, nem tão pouco de sangue e de efeitos especiais que só o iriam prejudicar. Este é sim um filme de histórias, de pessoas mais ou menos anónimas que atravessaram um difícil período nas suas vidas e na História de um país que se vinha a degradar e aos poucos a morrer. E este é um filme que tem a estranha compatibilidade com os dias de hoje onde sentimos novamente o país invadido sem ter uma presença estrangeira declarada, e o qual somos forçados a abandonar por nele não vermos, termos ou sentirmos qualquer esperança por um futuro que só nos apresenta um claro definhamento dos seus "filhos" e que por isto se torna num dos mais significativos filmes do ano.
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"D. Filipa Sanchez: Desta casa só saio morta!"
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8 / 10
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