Letters from Childhood de José Magro (Portugal) é a primeira das curtas-metragens da selecção oficial da XXIVª edição dos Caminhos do Cinema Português a decorrer no Teatro Académico Gil Vicente, em Cimbra dedicada à temática LGBT.
Esta é a história de duas amigas, Kate (Ana Príncipe) e Sarah (Erica Chapim), contada através de algumas das cartas que trocaram ao longo dos anos... Cartas que expõem a cumplicidade de um grande amor.
A beleza, mas também a imediata frustração, que esta brevíssima curta-metragem apresenta - ronda os três minutos de duração -, é o facto de conseguir agarrar o espectador às dinâmicas imagens que apresenta da relação de amizade, de cumplicidade e de amor entre as duas jovens e, ao mesmo tempo, terminar toda esta dramatização antes que o espectador esteja preparado para tal. Não... não é justo. Imaginemos La Vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2, de Abdellatif Kechiche não em três horas... mas nesses referidos três minutos! Impossível.
As imagens e os momentos expostos, normalmente numa sequência que apenas versa os recantos escondidos da memória, levam o espectador a essa breve viagem a ocasionais partilhas de cumplicidades e actividades em que ambas estiveram. No fundo, assistimos à construção da sua memória, do que foi feito e principalmente do que ficou por dizer. Cúmplices, apaixonadas, umas vezes confessas e outras vividas no silêncio de um olhar, o espectador conhece não só a amizade como momentos de uma paixão tórrida típica de adolescentes e jovens adultas e, quando se deixa levar por aquela que pode ser uma moderna história de amor... as imagens terminam subitamente não nos permitindo obter nada mais da relação, passada e futura, destas jovens que agora entendemos como distantes no espaço.
Com a brevidade de uma carta que nunca foi escrita... ou daquelas que se escreveram tantas e tantas vezes e cuja mensagem foi mil vezes sabida, Letters from Childhood é seguramente um daqueles filmes curtos que não o deveriam ser tendo todo um mundo de possibilidades e portas abertas que facilmente o fariam cumprir-se como um dos grandes filmes portugueses do momento.
Chega amanhã o último dia do Caminhos do Cinema Português tendo ainda presença a última sessão oficial competitiva onde serão exibidos os filmes Entre o Verão e o Outono, de Maria Francisca Pinto, uma animação sobre a perda, Quando Pudermos, de Miguel Cardoso Faria sobre as dificuldades de triunfar num nem sempre admirável mundo novo, Sleepwalk, de Filipe Melo, Segunda-Feira, de Sebastião Salgado e com a interpretação protagonista da actriz Sílvia Pfeifer e finalmente o documentário À Tarde, de Pedro Florêncio onde se dinamiza uma longa tarde e as pequenas e não tão rotineiras tarefas vista de dentro e para fora de um apartamento num qualquer subúrbio.
Finalmente, perto das 22 horas terá início a cerimónia de encerramento no Teatro Académico Gil Vicente, onde serão divulgados todos os vencedores das diversas categorias e secções da XXIVª edição dos Caminhos do Cinema Português.
Razão Entre Dois Volumes de Catarina Sobral (Portugal) é uma das animações presentes na competição oficial da XXIVª edição dos Caminhos do Cinema Português que termina já amanhã no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra.
Qual a verdadeira diferença entre cheio e vazio? O que os distingue? O que os faz únicos? Numa animação iremos descobrir aquilo que os opõe e aproxima.
O argumento de Catarina Sobral parece, inicialmente, não querer apontar para um rumo certo que de facto identifique tudo o que surge na premissa sobre a tal "diferença" mas, no entanto, é com a proximidade do final que a mesma não só é revelada como surge como um certo elemento desarmante para o espectador que consegue, facilmente, encontrar semelhanças com a sua própria realidade. Afinal... do que falamos?!
São apresentadas duas personagens fisicamente idênticas... um deles, o "Cheio", é uma personagem que tem a capacidade de nada esquecer ligando de forma indissociável todos os seus pensamentos não conseguindo em instante nenhum encontrar uma tranquilidade. Sente o amor e a solidão com a mesma intensidade ao ponto de poder ter de evitar as pessoas para não encontrar nelas mais motivos para a saturação dos seus pensamentos. O "Cheio" consome-se rapidamente pelo exacerbar de todos os comportamentos aos quais é exposto e tudo, sem excepção, é algo que consome como pessoal e directo. Por sua vez temos o "Vazio", alguém que nada sente, a quem nada afecta sem qualquer manifestação de pessimismo ou negativismo e que, dessa forma, passa pela mundo sem que aquilo que se encontra à sua volta seja realmente importante.
É nestes dois manifestos opostos que, no entanto, sem se cruzarem vivem a exposição de um interessante fenómeno quando os seus comportamentos se alteram passando um a vivenciar aquilo que o outro sente e, por sua vez, aquilo que o próprio não sente. Quando os comportamentos se alteram e se revelam como feitos de uma mesma massa que, afinal, pode estar sujeito a transformações quando a exposição é intensiva... um por tudo experimentar começa a ter medo... o outro, por tudo fazer, não sente nada. Assim, é esta dinâmica de excessos e de opostos que se manifesta em ambos como os motores para a sua transformação pessoal e por consequência, social, revelando que por muito distantes que inicialmente se possam apresentar o "eu" e o "outro" não serão assim tão distintos... basta a influência (ou falta dela) certa para que os comportamentos se revelem... tudo depende, afinal, da exposição.
Interessante e revelador pela forma como expõe as diferenças e os comportamentos sociais do indivíduo em grupo ou na sua ausência bem como pela forma inteligente com que expõe o seu argumento, Razão Entre Dois Volumes mais não é, afinal, do que uma sentida reflexão sobre o indivíduo, sobre aquilo que o motivo ou, por outro lado, sobre os incentivos que lhe faltam e que o transformam num ser que se limita a passar pelo meio sem nele deixar ou receber qualquer influência.
Foram há instantes anunciados os nomeados à quinta edição dos Sophia Estudante entregues anualmente pela Academia Portuguesa de Cinema às melhores obras criadas no contexto académico ao longo do último ano nas áreas de Ficção, Documentário, Experimental e Animação.
São os nomeados:
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Curta-Metragem de Ficção
A Lenda do Galo, de Carlos Araújo - ESMAD - Escola Superior de Media Artes e Design Cinzas, de Célia Fraga - ESAP Porto Colapso, de Carolina Lourenço - ETIC Escuro, de Leonor Alexandrino - ULHT - Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Ruptura, de Gonçalo Santos - ESMAD - Escola Superior de Media Artes e Design Sputnik, de Miguel Magalhães - Escola das Artes Católica Porto Tomorrow Island, de Gwenn Joyaux - ULHT - Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
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Documentário Curta-Metragem
After the Fire, de Ahsan Mahmood - ULHT - Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Idiossincrasias, de Noé Pereira - Universidade da Beira Interior - UBI GEN.Y, de Débora Martins - World Academy Só Ali Vão Alguns, de Pedro Gama - Instituto Universitário da Maia - Instituto Universitário da Maia - ISMAI Terra Ardida, de Francisco Romão - ETIC Um Homem Não é Um Homem Só, de Alberto Seixas - ESMAD - Escola Superior de Media Artes e Design
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Curta-Metragem Experimental
[Awaken], de Cristiano Maciel, Diogo Bastos, Joana Soares e Rita Almeida - Universidade do Minho Aurora, de Lourenço Vaz e Rita Isaúl - ETIC Are You Okay?, de António Ferreira, Carlos Seixas e Luís Ribeiro - UTAD Azimute, de Ana Catarina Brás - ULHT - Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Broken, de Gabriela Marcolino - Universidade de Aveiro Maldição do Faraó, de Pedro Pacheco - ETIC Algarve Mariposa, de Sofia Mendes - ESAD Caldas da Rainha Memoriam, de Andreia Pereira - ESMAD - Escola Superior de Media Artes e Design No Fim do Mar, de João Monteiro - ESAP Porto
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Curta-Metragem de Animação Agridoce, de Tiago Monteiro - Escola Artística de Soares dos Reis Bruma, de Sofia Cachim, Daniela Santos, Gabriel Peixoto e Mónica Correia - Escola das Artes Universidade Católica do Porto O Chapéu, de Alexandra Allen - Escola Superior de Design IPCA Harden Edges, de José Carlos Morais - Escola Superior de Design IPCA Non-Human, de Pedro Soares - ESMAD - Escola Superior de Media Artes e Design Sleep Tight, de João Ribeiro, Miguel Silva e Rafael Garcia
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Cartaz
Mónica Correia, Bruma - Escola das Artes - Universidade Católica do Porto
Maria Clara Norbachs, Flor de Lótus - Universidade da Beira Interior - UBI
João Monteiro, No Fim do Mar - ESAP Porto Sara Gonçalves, Um Homem Não é Um Homem Só - ESMAD - Escola Superior de Media Artes e Design Nelson Sousa, 20.06.2018 - UTAD
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Os vencedores serão conhecidos numa cerimónia a realizar no próximo dia 13 de Dezembro no Teatro Rivoli, no Porto.
Foram divulgados os nomeados aos Satellitte Awards entregues anualmente pela International Press Academy que reúne membros da Imprensa a nível internacional tendo estes destacado alguns dos maiores êxitos da crítica e do público bem como alguns dos títulos mais aguardados deste temporada de prémios.
São os nomeados:
. Melhor Filme - Drama Black Panther, de Ryan Coogler First Man, de Damien Chazelle Hereditary, de Ari Aster If Beale Street Could Talk, de Barry Jenkins Mary Queen of Scots, de Josie Rourke Widows, de Steve McQueen . Melhor Filme - Comédia/Musical Crazy Rich Asians, de Jon M. Chu The Favourite, de Yorgos Lanthimos Green Book, de Peter Farrelly Mary Poppins Returns, de Rob Marshall Nico. 1988, de Susanna Nicchiarelli A Star is Born, de Bradley Cooper . Melhor Filme - Independente BlackKklansman, de Spike Lee Eighth Grade, de Bo Burnham First Reformed, de Paul Schrader Leave No Trace, de Debra Granik Private Life, de Tamara Jenkins A Private War, de Matthew Heineman . Melhor Documentário Crime + Punishment, de Stephen Maing Free Solo, de Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi Minding the Gap, de Bing Liu RBG, de Julie Cohen e Betsy West Three Identical Strangers, de Tim Wardle Won’t You Be My Neighbor?, de Morgan Neville . Melhor Filme de Animação Incredibles 2, de Brad Bird Isle of Dogs, de Wes Anderson Mirai no Mirai, de Mamoru Hosoda Ralph Breaks the Internet, de Phil Johnston e Rich Moore Riz to Aoi Tori, de Naoko Yamada Ruben Brandt, Collector, de Mirolad Krstic . Melhor Filme Estrangeiro The Cakemaker, de Ofir Raul Graizer (Israel) I Am Not a Witch, de Rungano Nyoni (Reino Unido) Manbiki Kazoku, de Hirokazu Koreeda (Japão) Roma, de Alfonso Cuarón (México) Den Skyldige, de Gustav Möller (Dinamarca) Zimna Wojna, de Pawel Pawlikowski (Polónia) . Melhor Realização
Bradley Cooper, A Star is Born
Alfonso Cuarón, Roma
Peter Farrelly, Green Book
Barry Jenkins, If Beale Street Could Talk
Yorgos Lanthimos, The Favourite
Spike Lee, BlackKklansman . Melhor Actor - Drama
Willem Dafoe, At Eternity’s Gate
Ben Foster, Leave No Trace
Ryan Gosling, First Man
Ethan Hawke, First Reformed
Lucas Hedges, Boy Erased
Robert Redford, The Old Man & the Gun . Melhor Actor - Comédia/Musical
Bradley Cooper, A Star is Born
Rami Malek, Bohemian Rhapsody
Lin-Manuel Miranda, Mary Poppins Returns
Viggo Mortensen, Green Book
Nick Robinson, Love, Simon
John David Washington, BlackKklansman . Melhor Actriz - Drama
Yalitza Aparicio, Roma
Glenn Close, The Wife
Viola Davis, Widows
Nicole Kidman, Destroyer
Melissa McCarthy, Can You Ever Forgive Me?
Rosamund Pike, A Private War . Melhor Actriz - Comédia/Musical
Emily Blunt, Mary Poppins Returns
Olivia Colman, The Favourite
Trine Dyrholm, Nico. 1988
Elsie Fisher, Eighth Grade
Lady Gaga, A Star is Born
Constance Wu, Crazy Rich Asians . Melhor Actor Secundário
Mahershala Ali, Green Book
Timothée Chalamet, Beautiful Boy
Russell Crowe, Boy Erased
Adam Driver, BlackKklansman
Sam Elliott, A Star is Born
Richard E. Grant, Can You Ever Forgive Me? . Melhor Actriz Secundária
Claire Foy, First Man
Nicole Kidman, Boy Erased
Regina King, If Beale Street Could Talk
Margot Robbie, Mary Queen of Scots
Emma Stone, The Favourite
Rachel Weisz, The Favourite . Melhor Argumento Original
Bo Burnham, Eighth Grade
Alfonso Cuarón, Roma
Deborah Davis e Tony McNamara, The Favourite
John Krasinski, Scott Beck e Bryan Woods, A Quiet Place
Paul Schrader, First Reformed
Nick Vallelonga, Brian Hayes Currie e Peter Farrelly, Green Book . Melhor Argumento Adaptado
Bradley Cooper e Eric Roth, A Star is Born
Debra Granik e Anne Rosellini, Leave No Trace
Nicole Holofcener e Jeff Whitty, Can You Ever Forgive Me?
Barry Jenkins, If Beale Street Could Talk
Armando Iannucci, David Schneider, Ian Martin e Peter Fellows, The Death of Stalin
Spike Lee, David Rabinowitz, Kevin Wilmott e Charlie Wachtel, BlackKklansman . Melhor Montagem
Barry Alexander Brown, BlackKklansman
Jay Cassidy, A Star is Born
Tom Cross, First Man
Alfonso Cuarón, Roma
Joi McMillon e Nat Sanders, If Beale Street Could Talk
Joe Walker, Widows . Melhor Fotografia
Alfonso Cuarón, Roma
James Laxton, If Beale Street Could Talk
Matthew Libatique, A Star is Born
Robbie Ryan, The Favourite
Rachel Morrison, Black Panther
Lukasz Zal, Zimna Wojna . Melhor Música
Thomas Ades, Colette
Terence Blanchard, BlackKklansman
Nicholas Britell, If Beale Street Could Talk
Alexandre Desplat, The Sisters Brothers
Justin Hurwitz, First Man
Hans Zimmer, Widows . Melhor Canção Original “All The Stars”, Black Panther “Can You Imagine That?”, Mary Poppins Returns “Requiem for a Private War”, A Private War “Revelation”, Boy Erased “Shallow”, A Star is Born “Strawberries & Cigarettes”, Love, Simon . Melhor Som Black Panther First Man Mary Poppins Returns A Quiet Place Roma A Star is Born . Melhor Direcção Artística e Design de Produção Black Panther Fantastic Beasts: The Crimes of Grindelwald The Favourite First Man Mary Poppins Returns Roma . Melhor Guarda-Roupa
Colleen Atwood, Fantastic Beasts: The Crimes of Grindelwald
Erin Benach, A Star is Born
Alexandra Byrne, Mary Queen of Scots
Ruth E. Carter, Black Panther
Andrea Flesch, Colette
Sandy Powell, The Favourite . Melhores Efeitos Visuais Avengers: Infinity War Black Panther Fantastic Beasts: The Crimes of Grindelwald Jurassic World: Fallen Kingdom Rampage Ready Player One .
Lovers on Borders de Atsushi Funahashi (Portugal/Japão) é uma das longas-metragens oficiais em competição no Caminhos do Cinema Português a decorrer em Coimbra no Teatro Académico Gil Vicente.
Lisboa 1757. Dois anos após o terramoto que devastou a cidade, Gaspar de Carvalho (António Durães) regressa da Ásia para recuperar a casa de família. Consigo trás os escravos japoneses e africanos que havia trocado por pólvora. Na sua propriedade, Mariana (Ana Moreira) é uma nova empregada por quem se apaixona. Mas, no coração de Mariana palpita um sentimento por Shiro (Yûta Nakano), um desses escravos.
Em 2021, dez anos depois do acidente de Fukushima a história repete-se mas, desta vez, Mariana vive uma arrebatadora história de amor que apenas a tragédia da crise poderá impedir de se concretizar.
Portugal e Japão com uma história que os une ao longo dos séculos é o ponto de partida para um argumento escrito pelo próprio realizador e dividido em dois segmentos, que remete o espectador primeiro para um Portugal destruído pela crise - geológica, cultural, económica e social - como consequência do maior evento natural da sua História e, de seguida, para uma semelhança histórica que faz também do Japão um país numa semelhante crise económica incapaz de recuperar onde uma improvável história de amor tenta resistir às agruras de um fim (ou início) anunciado. Como todas as tragédias, também estas são o motor não só para a recuperação e transformação de um todo como principalmente das pequenas experiências pessoais que surgem e brotam no meio de toda uma tragédia.
Se no primeiro momento é a relação de um amor improvável que surge entre uma humilde criada portuguesa (Moreira) e um escravo japonês (Nakano), a mesma surge num Japão do século XXI que se tenta afirmar e recuperar de um desastre sismológico, onde as transformações económicas do mesmo decorrentes tentam adiar, lançando na incerteza vidas que com sonhos e esperanças tentam a diferença e um qualquer sucesso enraízado nos costumes e nas tradições que caracterizam países distantes geograficamente mas próximas pela História e pelas circunstâncias que a desgraça os marcou.
Mas, se o amor é a marca que tenta afirmar-se nos dois referidos momentos, é também a violência do poder económico - física e social - sobre os mais desprotegidos que ganha contornos protagonistas ao lançar não só as referidas personagens como as suas histórias num ambíguo fim que os impede de uma progressão emocional firme entre si e para com o meio em que se inserem, transformando-os em pequenos redutos de incerteza principalmente a propósito dos seus próprios sentimentos (ou da construção dos mesmos) e finalmente na sua proximidade que surge como resultado de relações adversas que primeiro se instalam pelo ódio e, finalmente, pela compreensão de que a sua própria sobrevivência surge pelo afecto criado e originário dessa manifestação de repulsa mútua. Na sua essência, a grande questão que é aqui levantada prende-se com a compreensão de que no fim, as relações que surgem são, na sua maioria, resultado de ódios, solidões e perdas que se manifestaram em cada uma das personagens. Nenhuma delas, independentemente de como se encontram no momento "presente", foi fruto de um sentimento espontâneo e natural mas sim de um conjunto de acções negativas que, no final, despoletou um entendimento de que a mesma seria a última oportunidade para todos eles.
E, como todas as histórias de amor, também em Lovers on Borders surge a morte como uma das suas protagonistas. Primeiro decorrente dos eventos naturais que assolaram os dois países e que os marcaram de forma determinante transformando-os não só em termos populacionais como mantendo reféns de políticas económicas centradas na rigidez e na pressão entre entidades patronais e força de trabalho... se no caso português este deu origem à presença de escravatura - ilegal - no país/metrópole, no exemplo japonês originou toda uma política de contenção de custos como forma de fazer sobreviver as empresas imersas numa crise económica da qual o país parece não conseguir sair. Morte essa que se manifesta depois nos sonhos, esperanças e expectativas de progressão pessoal e profissional daqueles que tentam sobreviver... num contexto a um nível pessoal onde um amor considerado proibido dá os primeiros passos entre os dois protagonistas... no último na forma como o sonho é eliminado pela força dessa dita crise e da contenção económica que todos impossibilita de olhar para o "dia de amanhã" com a esperança que lhe seria natural.
Mas não são só as crises que Lovers on Borders aborda. Pelo menos não só aquelas de conteúdo económico e podemos observá-lo nos dois momentos em que se divide esta história quando num Portugal do século XVIII existe a consciencialização de raça e classe deixando para as camadas mais desprotegidas e desfavorecidas não só aqueles que chegam dos vários pontos do Império, de um estrangeiro desconhecido - o Japão - mas também de dentro do país de onde surgem as vítimas do pós-terramoto e, num Japão do século XXI onde os ditos "mestiços" fruto das relações nipo-brasileiras são aqueles que mais facilmente encontram não só a xenofobia como a ostracização de todas as relações, principalmente as laborais, mas também sociais e até afectivas mantendo-se no limbo da dita "vida normal". No seio de todo um universo onde reina a crise, a questão que permanece é sobre os seus limites - se é que alguns - e principalmente sobre como esta afecta aqueles que dela sobrevivem... em última instância.
Num ambiente centrado nas relações amorosas, nos eventos naturais e na forma como os indivíduos se aproximam independentemente das suas origens ou classes, Lovers on Borders acaba por fazer justiça a um título que remete o espectador para a consciencialização de que o amor (este pelo menos) se encontra num inesperado limbo que parece nunca querer ser concretizado mantendo os seus protagonistas num compasso de espera, compreendendo a sua situação mas nunca se querendo comprometer com a inevitabilidade de um distanciamento... ali mesmo ao lado.
Original pela forma como se expõe uma mesma história em contextos semelhantes mas distanciados pelas culturas e pelos séculos, Lovers on Borders destaca-se pela interessante execução principalmente da realidade histórica portuguesa ao recriar todo um elaborado cenário de época - arte, guarda-roupa e caracterização no seu melhor -, e que poderia por si só ter feito surgir um brilhante filme de época com a particularidade de ser escrito e filmado por alguém "distante" da realidade e do contexto histórico português de então, mas que transforma todo o ambiente e atmosfera da sua história num peculiar e cativante momento de cinema do qual o espectador fica com a vontade de ver - e ter - mais. Curioso ainda pela forma como faz, séculos depois, chegar a alma portuguesa ao outro lado do mundo, num já não tão vibrante Japão afectado por uma crise de uma década mas, ainda assim, manter vivo um espírito saudosista e nostálgico muito característico da realidade e do universo português fazendo destacar a dupla de actores japoneses aqui presentes, um vibrante António Durães como o mal amado nobre português e os dois distintos, embora semelhantes, registos de Ana Moreira sempre capaz de afirmar como o centro de uma história que é, no fundo, intemporal... tal como o amor.
Assim, Lovers on Borders é capaz de se afirmar além fronteiras... longe de quaisquer barreiras ou linhas geográficas imaginadas... tal como o amor no qual se baseia todo o relato de um conto histórico... e sobre a História.
Foram hoje entregues os New York Film Critics Circle Awards que anunciaram Roma, de Alfonso Cuarón como o grande vencedor do ano ao arrecadar não só o troféu de Melhor Filme como ainda o de Realização e Fotografia.
São os vencedores:
. Filme:Roma, de Alfonso Cuarón Primeira Obra:Eighth Grade, de Bo Burnham Documentário:Minding the Gap, de Bing Liu Filme de Animação:Spider-Man: Into the Spider-Verse, de Bon Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman Filme Estrangeiro:Zimna Wojna, de Pawel Pawlikowski (Polónia) Realização:Alfonso Cuarón, Roma Actor: Ethan Hawke, First Reformed Actriz: Regina Hall, Support the Girls Actor Secundário: Richard E. Grant, Can You Ever Forgive Me? Actriz Secundária: Regina King, If Beale Street Could Talk Argumento:Paul Schrader, First Reformed Fotografia: Alfonso Cuarón, Roma Special Award - Carreira:David Schwartz - Curador do Museum of the Moving Image Special Award: Kino Classics Box Set Pioneers: First Women Filmmakers .
Soldado Milhões de Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa (Portugal) presente na competição oficial da XXIVª edição dos Caminhos do Cinema Português a decorrer no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra chega como a obra que marca o centenário do final da Grande Guerra Mundial.
Aníbal Augusto Milhais é um dos muitos soldados portugueses que, em 1918, parte para a Flandres onde irá combater em La Lys. Em 1943, em Portugal prestes a ser alvo de mais uma homenagem, Milhais - agora Milhões - recorda os idos tempos quando, em 1918, se transformou num herói de guerra português.
Mário Botequilha e Jorge Paixão da Costa assinam o argumento desta longa-metragem num momento que, para lá de pertinente dado o centenário do final deste conflito revela, tal como então, uma época que se adivinhava de extremismos, nacionalismos e fundamentalismos numa Europa que ciclicamente se vê em convulsão. Mas, para lá do contexto histórico que estranha e ciclicamente se repete, é esta longa-metragem da dupla de realizadores que se tende a analisar. Num estilo muito próprio, e que nem é tanto sobre o conflito em si mas sobre a forma como um homem já distante do mesmo tende a sobreviver numa época em que o seu isolamento e prisão a uma imagem criada noutros tempos - e noutros contextos - o transformam psicologicamente num indivíduo diferente daquele que provavelmente imaginou ser.
Dividido em dois segmentos muito específicos - 1918 e 1943 onde, curiosamente, ambos se situam em períodos de dois conflitos mundiais -, Soldado Milhões apresenta primeiro um "Milhões" (Miguel Borges) perdido no seu tempo. Um homem que serve de coqueluche de um regime que pontualmente o apresenta como a imagem de um país heróico e oriundo de umas quaisquer cinzas onde, renascido, é utilizado para uma propaganda típica do sistema de então. Por outro, e como paralelo, encontramos "Milhais" - antes de ser "Milhões" - (João Arrais) como o jovem transformado em adulto graças ao conflito em que participa e ele, tal como todos os demais que o acompanham, homens antes do seu próprio tempo, são agora meras barreiras no avançar de uma ofensiva alemã que não parece poder ser travada. É então que o jovem (agora homem) por sorte ou mero acaso mais do que qualquer perícia, consegue sobreviver e eliminar um conjunto de soldados inimigos transformando-se assim no herói nacional do qual a História reza. Em 1918, tal como em 1943, este jovem/homem encontra-se condicionado a uma vida que não deseja e a um conjunto de obrigações que fazem dele mais um instrumento de uma qualquer agenda política do que propriamente o homem senhor de si próprio que vive (ou sobrevive) face às constantes provações alheias que são colocadas no seu caminho. Para lá de qualquer questão existencial levanta-se sim uma problemática moral... quem é "Milhões"? Ou, por outro lado, em quem se transformou "Milhais"?!
Se o argumento permite a interpretação desta problemática - por um lado analisar o homem e o seu tempo e, por outro, a instrumentalização de um acaso em favor de um regime -, são principalmente as interpretações desta longa-metragem que deixam uma certa curiosidade não só naquilo que foi construído como principalmente naquilo que elas poderiam ter sido com uma maior e mais dinâmica incursão nas mesmas... senão, vejamos... Encontramos um sempre intenso João Arrais enquanto protagonista mas a sua interpretação em Soldado Milhões limita-se a uma interpretação histórica da "lenda" e não tanto do jovem homem e de todos os seus dilemas e conflitos morais, afinal, lembremo-nos apenas na idade do mesmo para perceber que muitos deveriam ser os seus pensamentos, e o mesmo se adequa a todos os demais jovens actores como Isac Graça ou Tiago Teotónio Pereira cuja capacidade de dar cor às suas personagens está mais do que provada mas que aqui se limitam a ser breves secundários que, para o espectador, apenas salientam o óbvio... "Milhais" tinha os seus companheiros e amigos... algo não difícil de imaginar dadas as circunstâncias. De destacar, no entanto, encontramos Raimundo Cosme e o seu "Malha Vacas", a única potencialmente grande surpresa que esta longa-metragem entrega a nível de interpretações ao criar com o mesmo aquele que sofre o único e verdadeiro dilema moral, o que assiste não só ao desmoronar no do mundo "lá fora" como principalmente no seu pensamento que enfrenta e vê todo um conjunto de realidades que o seu Portugal nunca lhe permitira ousar pensar. Cosme faz do seu "Malha Vacas" um homem, inicialmente alegre mas no, e para o qual, tudo termina quando a realidade da guerra finalmente se faz mostrar. E tudo isto sem esquecer os demais secundários nos quais se destacam os nomes de Nuno Pardal, Ivo Canelas, Lúcia Moniz, Graciano Dias ou António Pedro Cerdeira que são quase "elementos decorativos" não deixando o argumento que as suas personagens pudessem ter um momento marcante nesta longa-metragem ou, pelo menos, que deixassem a sua real influência nos demais, na história ou mesmo no espectador.
Tecnicamente, quer a nível de som, caracterização, direcção artística e guarda-roupa, a longa-metragem da dupla Galvão Teles e Paixão da Costa é fiel não só ao género como à reconstituição de época que se espera - melhor nos anos do conflito do que propriamente na recriação do Portugal de '43 -, fazendo da mesma um interessante exemplar do género (tão raro no no nosso cinema independentemente das inúmeras histórias que poderão existir por contar) mas, ao mesmo tempo, não aquele que o espectador poderá recordar por muito tempo. Soldado Milhões tem todo o potencial e interesse histórico que uma história tão pouco contada da nossa História tem mas, ao mesmo tempo, esta longa-metragem é breve demais para que o espectador se deixe seduzir por ela por inteiro... Talvez pela dinâmica dos dois momentos temporais que poderiam até dar origem a duas longas-metragens e que, na realidade, não se enquadram na totalidade ou até pela forma como ambos são "colados" sem fazer real ligação entre ambos tenha sido o principal factor de não transformar este Soldado Milhões num verdadeiro milionário não deixando, no entanto, de ser uma obra importante no contexto de revisitação à nossa História... isso, por si só, já é alvo de um apontamento positivo para os realizadores.
Chegámos ao penúltimo dia dos Caminhos do Cinema Português numa dia em que a competição oficial se inicia com a curta-metragem de animação Razão Entre Dois Volumes, de Catarina Sobral numa viagem sobre dois opostos que se cruzam num final de etapa, o qual será seguido pela mais recente longa-metragem de António Ferreira, Pedro e Inês.
Pela tarde, o Teatro Académico Gil Vicente apresentará as curtas-metragens Por Tua Testemunha, de João Pupo e Luana, de Pedro Magano em obras que traçam um distinto registo sobre a parentalidade sendo sucedidos pela longa-metragem Mariphasa, de Sandro Aguilar.
A sessão da noite dedicada inteiramente à temática LGBT começa pelas curtas-metragens Letters from Childhood, de José Magro, Anjo, de e com o actor Miguel Nunes e a mais recente obra da dupla André Santos e Marco Leão, a também curta-metragem Self Destructive Boys à qual se sucederá a longa-metragem Até que o Porno nos Separe, de Jorge Pelicano onde se explora a dinâmica entre mãe e filho após revelações surpreendentes sobre a vida deste último que a obrigam a encarar a sua perspectiva de mundo de uma forma diferente em nome do amor.
Ao sexto dia dos Caminhos do Cinema Português chega o dia em que serão exibidas três longas e uma curta-metragem.
Ao início da tarde a selecção oficial estará representada pela curta-metragem Descobrindo a Variável Perfeita, de Rafael Almeida naquela que será uma incursão a um universo muito particular e com alguns elementos "Andersonianos", a qual será seguida pela longa-metragem Soldado Milhões, de Gonçalo Galvão Teles num retrato do herói português da Primeira Guerra Mundial agora que cumpre o seu centenário.
Ao final da tarde será exibida a longa-metragem Lovers on Borders (Amantes na Fronteira), uma co-produção luso-nipónica realizada por Atsushi Funahashi e que centra a sua dinâmica em dois espaços temporais distintos mas com elementos históricos que os unem... tal como às suas personagens.
E finalmente, a sessão da noite irá apresentar Praça Paris, de Lúcia Murat, uma co-produção luso-brasileira protagonizada por Grace Passô e Joana de Verona num estudo abordagem à violência e à sua directa influência no indivíduo. .
Leviano de Justin Amorim (Portugal) é a longa-metragem que encerrou o dia dos Caminhos do Cinema Português que terminam já no próximo Sábado no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra.
Chegou a entrevista mais esperada do ano em que Anita Paixão (Anabela Teixeira) e as suas filhas Adelaide (Diana Marquês Guerra), Carolina (Alba Baptista) e Júlia (Mikaela Lupu) terão finalmente de revelar os acontecimentos por detrás dos crimes cometidos tempos antes.
A primeira longa-metragem do realizador luso-canadiano não poderia estar repleta de mais brilho; uma família da classe média alta - as "Paixão" - num mundo pleno de dias de Verão, colégios privados, aulas de ténis, festas e onde tudo acontece, tudo é permitido e, no fundo, onde tudo é possível no Algarve de Vilamoura. Mas, como por detrás de todo o brilho em excesso, existe uma origem negra, não tão perfeita e onde segredos inconfessáveis se escondem com a máscara dessa beleza, em Leviano estas personagens também não são tão puras como querem aparentar ser.
O argumento de Justin Amorim parece claro desde os primeiros instantes quando apresenta uma tumultuosa relação entre mãe e filhas, umas a quererem seguir um exemplo de moral e bons costumes que, no entanto, é subitamente interrompido pelo comportamento de outras das jovens irmãs que cedo também se revelam como levianas - outra palavra seria injusta -, mimadas e habituadas a um estilo de vida longe de uma qualquer normalidade familiar... existe sim um certo desdém para com tudo aquilo que, na verdade, todas elas querem... mas não conseguem ser... uma família. Nesta medida aquilo que aqui encontramos é uma imediata ruptura no clã atirando para a incerteza não só as jovens como a mãe que, percebemos desde cedo, está mais preocupada em celebrar os últimos cartuchos da sua já não existente juventude, a qual vive como se fosse... umas das reais jovens. Por outro lado encontramos as irmãs "Paixão" perdidas num abandono não anunciado por uma mãe que quer curtir a vida com o seu namorado - também ele mais jovem -, e que cruzam esse Algarve mais ou menos desconhecido onde reina a praia, a diversão e as noitadas de futebol, sexo, passagens de modelos e uma erotização precoce que... faz parte da dita "normalidade" transformando-as num certo mito de juventude perdida pois terão de encontrar o mundo real mais cedo do que o esperado e revelando um prenúncio de decadência por todo o lado em que passam.
Se esta problemática até poderia ser interessante na medida em que surge como uma análise de muitos comportamentos familiares actuais - não o vamos esconder -, a realidade é que Leviano exibe uma certa aura de Xavier Dolan mas com menos inovação ou dramatização pop que tanto caracterização a obra do realizador canadiano. As influências em Leviano são claras... a constante e sempre intensa música adaptada a momentos tidos como ícones da longa-metragem, a roupa como uma característica de "marca" e sempre algo que acaba por esvoaçar ao vento como que uma libertação do passado, as personagens que se desejam mas que não podem, conseguem ou querem terminar juntas e, finalmente, a eterna personagem LGBT que surge como um comparsa de peso numa história que não se compreende se quer de facto ser original ou se pretende ser uma inovação de luxo no panorama nacional mas seguindo exemplos já garantidos de um cinema de sucesso que também aqui poderia funcionar... se se assumisse desde o primeiro instante como algo que é... de facto... original!
Assim, longe de ser portador de uma total originalidade - é certo que existe a conflituosa relação das mais jovens da família com o mundo ao seu redor que usam e dele abusam para seu imediato prazer - ou mesmo o elemento crime que aqui surge como algo diferente da referida obra do realizador canadiano, Leviano não se destaca por uma total inovação no género não deixando, no entanto, de ser uma simpática obra ligeira, estival até, capaz de atrair um público mais jovem ao cinema muito também graças a toda uma nova geração de actores e actrizes conhecidas dos mesmos e capta alguns momentos e sequências bem passadas onde se recupera também algum do imaginário dos '80's nacional que tanta nostalgia provoca a uma geração parental... eventualmente mais perdida ou saudosista desses seus idos anos mais jovens.
Para além do óbvio destaque de uma sempre inspirada Anabela Teixeira como a mãe fútil que quer viver e gozar a sua vida, é a presença de Diana Marquês Guerra e Alba Baptista que se destacam nesta longa-metragem... A primeira como o rosto protagonista de uma história na qual se encaixa na perfeição e a segunda como a confirmação absoluta de uma jovem grande actriz que certamente nos irá garantir (mais) intensos desempenhos num futuro próximo. E se encontramos aqui secundários de peso como o são José Fidalgo - também concentrado em seduzir alguém mais novo como garante da sua eterna juventude... um pouco ao estilo de Dorian Gray - ou Pedro Barroso numa breve mas intensa interpretação, são pequenos apontamentos técnicos como a direcção artística ou a inspirada direcção de fotografia de Edward Herrera que capta as cores de um Algarve estival que transformam Leviano numa longa-metragem a observar com atenção e que deixam a compreensão de que o seu conteúdo poderia ter ido um pouco mais longe do que aquilo que acabou por ser.
Bostofrio, Où le Ciel Rejoint la Terre, de Paulo Carneiro (Portugal) é um documentários presentes na selecção oficial da vigésima-quarta edição do Caminho do Cinema Português a decorrer em Coimbra e, possivelmente, um dos filmes mais pessoais presentes em competição.
O que são as origens? Em que medida é que elas influenciam o "eu" e levantam questões sob a pertença e o lugar que esse ser pessoal ocupa no mundo? Partindo destes pressupostos, e de tantas outras questões que o realizador coloca ao longo deste documentário, o espectador acompanha-o numa viagem a Trás-os-Montes onde o mesmo tenta saber que é o avô cuja história nunca conheceu.
Divido em doze distintos mas interligados capítulos, Bostofrio, Où le Ciel Rejoint la Terre inicia com um Prólogo que nos apresenta o espaço em que tudo irá acontecer. Procuram-se as origens... um avô... as explicações para um passado desconhecido que traçou os destinos do seu próprio pai - do realizador - naquele lote de portugueses que são "filhos de pais incógnitos". Filhos de ninguém - como diria a minha própria avó nas mesmas condições apesar de outras particularidades -, e que transformaram cidadãos deste país em proto-fenómenos desconhecedores do seu passado, da sua origem, de uma figura parental e, de certa forma, da confirmação da sua concepção que mais parece, remetida para uma qualquer mensagem divina deixado na Terra algures no tempo.
A viagem de Paulo Carneiro, acidentada por vezes, de descoberta por tantas outras mas sobretudo, e quase sempre, emotiva e fragilizante, é construída graças a um conjunto de entrevistas feitas pelas gentes da terra na primeira pessoa. O realizador, tido por diversos momentos como um invasor, um elemento estranho (até mesmo "estrangeiro") nas terras onde poderá encontrar a sua própria história, deixa-se levar pelos caminhos que, não conhecendo, são também os seus. Conhece as pessoas, cruza-se com alguns rostos mais ou menos familiares e indaga sobre o que poderá ter acontecido décadas antes. Ali espera (?) encontrar não só a história dos seus antepassados mas, possivelmente, aquela qeue poderá contar como também sendo a sua... as origens da sua existência estã, de certa forma, ligada àquele terra que viu o seu pai nascer mas que, no entanto, não o confirmam como o filho... de alguém.
Se algumas das entrevistas começam de forma mais agreste e ríspida, sendo o Capítulo II um excelente exemplo quando a entrevistada não quer a sua presença por perto recorrendo a uma linguagem mais forte e áspera para o afastar do local, lentamente Carneiro aproxima-se daqueles mais dispostos - ainda que de forma algo secreta ou não fossem, todos eles, filhos da terra - a abrir-lhe as portas a propósito do passado e construindo, ele próprio, uma melhor ideia de futuro (o seu). As histórias chegam lentamente, dotadas de alguns silêncios que o espectador nunca compreende se resultam do desconhecimento do entrevistado ou se, por sua vez, da incapacidade de tocas no passado de alguém que conheceram e que podem, de certa forma, estar a quebrar a confiança. Esta componente que alguns exibem de não se quererem intrometer nas histórias das pessoas "da terra", acaba por deixar uma cada vez maior curiosidade por parte do espectador em saber um pouco mais da história desta família e, ao mesmo tempo, também sobre o que poderá reservar o próximo "capítulo".
Aos poucos o espectador compreende que existia uma relação entre o pai e o avô... que se encontravam às escondidas devido ao primeiro ser fruto de uma relação fora do casamento. Um romance proibido... uma paixão da qual ninguém na terra poderia saber... A emoção - ou emotividade - apodera-se do realizador que acaba por ser também ele uma das "personagens" frente à câmara abandonando uma talvez "esperada" posição mais neutral. No entanto, esta não é uma história qualquer... é a sua! Aos poucos chega-lhe mais informação sobre outros elementos da sua família. Pessoas que ou não conhecia ou das quais apenas teria escutado breves relatos mas que, à sua maneira, também contribuíam - ainda que de forma indirecta - para a sua compreensão sobre o seu passado e de que forma tinham estas influenciado o mesmo.
Bostofrio, Où le Ciel Rejoint la Terre marca, ao mesmo tempo - o realizador e o público - pelo registo do espaço... pela forma como o clima influencia os humores e os silêncios... as pessoas, os espaços e as histórias. Um espaço que foi também marcado pelos acontecimentos históricos de outros tempos que fizeram da terra um local esquecido, marcado por alguma miséria e dificuldades onde os espíritos livres - como era aparentemente a sua avó -, tinham dificuldade em sobreviver face ao conservadorismo não só desses tempos como também das suas gentes. Os costumes e os pensamentos - também eles moldados pelos dias que se viviam - levavam a encará-la como alguém fora do seu tempo, talvez até marcada por outras "forças" que ninguém compreendia e das quais queriam distância. A viagem, com algumas descobertas e revelações que apenas podem ser digeridas na primeira pessoa termina com o lugar de repouso para todos. Povoada de silêncios que apenas a mente de cada um pode interpretar, cruza-se o filme com o pensamento de Teixeira de Pascoaes... "Deus e o Demónio são incompatíveis em toda a parte... menos em Portugal" numa clara alusão de que vivemos todos no local onde tudo pode acontecer... mas onde pouco pode ser revelado com a clareza necessária para ser compreendido.
O documentário de Paulo Carneiro é, para lá da sua primeira longa-metragem aquela que o próprio terá como uma das suas mais emblemáticas não só pelo cunho pessoal que lhe entrega - e que refrescante que é quando temos tanto cinema que se esquece de criar uma qualquer ligação com o público em geral -, como também pela forma com que aborda uma temática tão importante e tão, também ela, silenciada como o esmagador número de cidadãos que são, aos olhos do Estado, filhos de ninguém... os filhos de pais incógnitos fazendo dos mesmos desconhecedores das suas origens, impossibilitados de as confirmar e de ter algo "tão simples" como o nome de família que tanto desejam e lhes poderia conferir um sentido de histórias, de História e sobretudo de um passado.
Sentido, emotivo, até mesmo divertido, entusiasmante e motor do despertar de toda uma curiosidade por parte do espectador que se deixa, ao mesmo tempo, deslumbrar pelas paisagens arrebatadoras de um território tão desconhecido como é o de Trás-os-Montes, Bostofrio, Où le Ciel Rejoint la Terre é de longe um dos melhores filmes desta edição do Caminhos do Cinema Português e seguramente um dos melhores documentários portugueses dos últimos anos. Aqui não temos nada incógnito... tudo está devidamente marcado e "assinado" e o espectador compreende a importância desta história para lá de uma obra cinematográfica mas também uma de cunho pessoal que se firma e assume forte pela sua mensagem quase sempre comovente.
Foram há momentos anunciados os vencedores dos primeiros prémios da crítica especializada: os National Board of Review Awards referentes às melhores produções cinematográficas de 2018 tendo o gande vencedor sido Green Book, de Peter Farrelly ao arrecadar os troféus de Melhor Filme e Melhor Actor do ano.
São os vencedores:
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Filme:Green Book, de Peter Farrelly
Documentário:RBG, de Julie Cohen e Betsy West
Filme de Animação:Incredibles 2, de Brad Bird
Filme Estrangeiro:Zimna Wojna, de Pawel Pawlikowski (Polónia)
Realização: Bradley Cooper, A Star Is Born
Realização Revelação: Bo Burnham, Eighth Grade
Actor: Viggo Mortensen, Green Book
Actriz: Lady Gaga, A Star Is Born
Actor Secundário: Sam Elliott, A Star Is Born
Actriz Secundária: Regina King, If Beale Street Could Talk
Intérprete Revelação: Thomasin McKenzie, Leave No Trace
Elenco:Crazy Rich Asians
Argumento Original: Paul Schrader, First Reformed
Argumento Adaptado: Barry Jenkins, If Beale Street Could Talk
William K. Everson Film History Award:The Other Side of the Wind, de Orson Welles e They'll Love Me When I'm Dead, de Morgan Neville
NBR Freedom of Expression Award:22 July, de Peter Greengrass e On Her Shoulders, de Alexandria Bombach
Top do Ano:
The Ballad of Buster Scruggs, de Ethan Coen e Joel Coen
Black Panther, de Ryan Coogler
Can You Ever Forgive Me?, de Marielle Heller
Eighth Grade, de Bo Burnham
First Reformed, de Paul Schrader
If Beale Street Could Talk, de Barry Jenkins
Mary Poppins Returns, de Rob Marshall
A Quiet Place, de John Krasinski
Roma, de Alfonso Cuarón
A Star Is Born, de Bradley Cooper
Top de Filmes Independentes:
The Death of Stalin, de Armando Iannucci
Lean on Pete, de Andrew Haigh
Leave No Trace, de Debra Granik
Mid90s, de Jonah Hill
The Old Man & the Gun, de David Lowery
The Rider, de Chloé Zhao
Searching, de Aneesh Chaganty
Sorry To Bother You, de Boots Riley
We the Animals, de Jeremiah Zagar
You Were Never Really Here, de Lynne Ramsay
Top de Documentários:
Crime + Punishment, de Stephen Maing
Free Solo, de Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi
Os Dois Irmãos de Francisco Manso (Portugal/Cabo Verde) é uma das longas-metragens em competição na XXIVª edição dos Caminhos do Cinema Português a decorrer no Teatro Académico Gil Vicente, me Coimbra cujo argumento de José Fanha baseado na obra de Germano de Almeida conta a história de André (Flávio Hamilton) regressado a casa no interior de Cabo Verde depois de anos a viver em Lisboa. Aí, o pai revela-lhe que o irmão João (Che Gonçalves) esteve envolvido com Maria Joana (Janeth Tavares), a sua mulher.
Num momento em que André revela querer avançar com a sua vida em Lisboa, família e antigos amigos exigem justiça... André, desesperado com o isolamento e ostracização da comunidade, rapidamente terá de agir.
De destacar nesta história é o imediato choque entre os vários membros desta comunidade que primeiro recebem um dos seus vindo da antiga metrópole como um elemento mais "evoluído" que agora mal reconhecem. Assim, o provocado choque entre a sociedade do século XXI e o rural e tradicional que se mantêm intactos num ambiente no qual a dita evolução ainda não se manifestou fica latente por esta chegada como principalmente pelas constantes manifestações de um sistema que se rege e governa pelo "costume" e pelos velhos hábitos que os antigos clãs estabeleceram, fazendo da prática comum a lei pela qual todos se governam. Nesta perspectiva, não só a chegada de um "André" que poucos já reconhecem como um dos seus é um elemento "estrangeiro" e estranho como também lhe é exigido que respeite as leis da comunidade ostracizando um irmão e uma mulher que se envolveram durante a sua ausência. Mas, na realidade... quem serão estas pessoas que, em tempos, foram as suas?
"André" é o protótipo de alguém dividido entre esses dois referidos mundos... por um lado fiel aos seus costumes e tradições, à sua família e antigas paixões bem como ao espaço que o viu nascer e que, de certa forma, mantém como a sua principal referência enquanto o homem que é. Por outro, é este mesmo espaço e as suas gentes que são, na realidade, também inesperados estranhos não só por se encontrarem num patamar social diferente do seu mas também pela sua realidade que exige uma vingança para com um acto que o próprio cometera nessa Lisboa distante. Qual a necessidade de se vingar ou mesmo de exigir uma inexistente justiça quando o próprio não só não quer saber do sucedido como também ali chegou para dele se distanciar definitivamente?! Poderá (ou quererá) ele manter algum tipo de laços quando os próprios intervenientes apenas o desejam se forem selados com sangue?
É com esta perspectiva em mente que toma lugar o outro momento do filme, já em tribunal, quando depois de um crime cometido se exige o julgamento do mesmo. Assim, numa constante revelação de momentos, o espectador observa, percebe e regista não só a (in)operatividade de todas as forças - política, justiça e política - como principalmente as toma como meras paródias de um poder absoluto e não questionado que opera no local mais respeitando esse dito "costume" do que propriamente as leis do país que apenas se aplicam numa capital... também distante. Será "André" o último bastião da aplicação dessa justiça ou apenas alguém em mera transição e cujo destino será... incerto?
Os Dois Irmãos funciona assim como o registo de uma história moral e social que exibe o directo conflito entre rural e urbano, que opõe as diferenças inerentes a cada um deles e sobretudo como a extrema necessidade da pertença do Homem ao seu ambiente primário o expõe a uma pressão que o condiciona não só no seu pensamento como sobretudo nos seus actos... nada é deixado impune... principalmente as acções de um homem no seu pensado limite.
Ainda que interessante de um ponto de vista de análise dos dois meios em questão, Os Dois Irmãos é uma longa-metragem extremamente frágil no ponto de vista da sua execução onde não só um certo amadorismo dos actores compromete a mensagem que se pretende transmitir como também os elementos técnicos desta história parecem mais depressa a querer transformar num segmento de uma qualquer sitcom do que propriamente numa história forte e coesa que exponha o referido choque de culturas que se opõem. Do drama social de um "André" entre mundos aos momentos tendencialmente mais cómicos - propositados ou não... nunca saberemos - esta longa-metragem sofre sobretudo pelo descrédito que tende a afirmar do que propriamente pelas incoerências de um argumento que poderia ser não só mais elaborado como mais convicente do ponto de vista da sua mecânica versus mensagem.
Com interpretações de Flávio Hamilton e Che Gonçalves capazes de dinamizar o grande ecrã - tivessem elas tido mais e melhor margem de manobra para expôs os conflitos das suas personagens - e um ambiente natural propício a uma moderna história de vingança, tivesse Os Dois Irmãos sido mais consistente e encontraríamos aqui uma história que a ninguém envergonharia.
Quinto dia dos Caminhos do Cinema Português e o Teatro Académico Gil Vicente volta a receber um conjunto de obras cinematográficos dos mais variados géneros.
A tarde começa com a exibição da curta-metragem de animação Desempregato, de André Matos e Sara Marques numa reflexão sobre a dita geração (à) rasca à qual se segue a longa-metragem Peregrinação, de João Botelho pré-seleccionada para os Oscars e vencedora de prémios Sophia.
O final da tarde chega com um conjunto de obras onde, sobre diversas perspectivas, é a Morte que se assume como a principal personagem de todos os contos... de Ensaio Sobre a Morte, de Margarida Madeira e Equinócio, de Ivo M. Ferreira passando por Os Mortos, de Gonçalo Robalo ou Bostofrio, Où le Ciel Rejoint la Terre, de Paulo Carneiro dois documentários que contemplam e homenageiam as vidas passadas.
Ao início da noite Aquaparque, de Ana Moreira, pré-seleccionada ao European Film Award na respectiva categoria e 3 Anos Depois, de Marco Amaral precedem a longa-metragem Leviano, de Justin Amorim a primeira obra do realizador que conta com as interpretações de Anabela Teixeira, José Fidalgo, Pedro Barroso e Alba Baptista.
Foram hoje entregues numa cerimónia realizada em Nova York, os Gotham Independent Film Awards, aqueles que dão início "oficial" à temporada de prémios deste ano.
São os vencedores:
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Filme: The Rider, de Chloé Zhao
Documentário: Hale County This Morning, This Evening, de RaMell Ross
Prémio do Público:Won't You Be My Neighbor?, de Morgan Neville
Bingham Ray Award - Realizador Revelação: Bo Burnham, Eighth Grade Actor: Ethan Hawke, First Reformed Actriz: Toni Collette, Hereditary
Intérprete Revelação: Elsie Fisher, Eighth Grade
Prémio Especial do Jurado - Elenco:The Favorite, Olivia Colman, Emma Stone e Rachel Weisz
Russa de João Salaviza e Ricardo Alves Jr. (Portugal/Brasil) é um dos documentários em formato curto presente na selecção oficial em competição do Caminhos do Cinema Português a decorrer no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra.
Helena "Russa" regressa ao Bairro do Aleixo durante uma precária. De visita à sua irmã e alguns amigos para celebrar o aniversário de um filho distante, "Russa" descobre um bairro diferente naquela que é uma transformação total das suas memórias e da imagem de bairro que tinha.
Salaviza e Alves Jr. constroem um breve mas intenso documentário que não só espelha o retrato de uma comunidade através do conjunto de memórias do mesmo que, nunca reveladas com precisão para o espectador, se centram na expressão de desencanto de "Russa" quando esta (re)visita o bairro do Aleixo.
A viagem inicial de regresso ao bairro parece uma certa meditação sobre o tempo - que passou para ela e para com aqueles que conhecera - e sobretudo sobre aquilo que irá encontrar e talvez não reconhecer. Sem casa - um dos momentos do documentário são os telefonemas de "Russa" para as entidades camarárias que emparedarem o seu lar -, "Russa" permanece na da sua irmã com quem troca palavras escassas e momentos cúmplices mas relativamente distantes. Talvez sem saber o que dizer face às mudanças da sua vida e mesmo estupefacta para com o novo cenário do bairro que sempre conhecera e que agora encontra como todo um "novo" local, "Russa" embarca numa breve viagem pelo espaço como testemunho (para o espectador) daquilo que ainda subsiste. Dos reencontros com os amigos e com a irmã que servem como o principal elo de ligação a um espaço - e, por sua vez, a uma comunidade - que sente cada vez menos sua pela condenação a que o espaço (tal como ela) tem de atravessar, "Russa" permanece num silêncio derrotista sobre como ultrapassar a sua condição (in)definida de uma habitante do bairro do Aleixo e como reorganizar a sua memória na medida em que o seu espaço de outrora resiste agora com uma nova imagem... ainda em transformação.
Intensa obra cinematográfica - nomeada para o Urso de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Berlim - sobre a memória, o espaço, o indivíduo e a identidade, Russa confirma uma obra contínua, pertinente e actual de Salaviza que aqui em parceria com Alves Jr. documenta o tempo e a sua passagem, apagando espaços, transformando memórias e assumindo-as como uma parte supra-importante na afirmação do Homem e da sua identidade.
Nevoeiro de Daniel Veloso (Portugal) baseado no conto de Mário Dionísio, é uma das curtas-metragens presentes na competição oficial da XXIVª edição dos Caminhos do Cinema Português a decorrer em Coimbra no Teatro Académico Gil Vicente até ao próximo dia 1 de Dezembro.
Lisboa, década de '40. A cidade e o país estão com ordem de racionamento enquanto os mantimentos partem para a Alemanha Nazi. Ao mesmo tempo, milhares de trabalhadores lutam na clandestinidade contra a miséria e a fome.
Não poderia chegar em melhor forma um dos poucos filmes portugueses que aborda os debilitados anos da nossa História não só sob o regime fascista como, muito particularmente, aqueles passados sob os anos da Segunda Guerra Mundial onde o mesmo pactuava de forma silenciosa com a Alemanha Nazi. Esta obra cinematográfica baseada no conto de Mário Dionísio e com argumento de Inês Oliveira e do realizador Daniel Veloso revela uma história de clandestinidade, de opressão, de miséria mas, ao mesmo tempo, de uma constante luta contra as agruras de um regime repressivo que ainda iria durar mais trinta anos.
Nesta história encontramos "Paulo" (João Patrício) que juntamente com dois companheiros na clandestinidade reúnem um conjunto de papéis que dactilografam para passar uma mensagem de reivindicação dos seus direitos. Relutante, parece compreender a sua situação mas, ao mesmo tempo, querer distanciar-se pela compreensão do perigo que a mesma representa. Pelo trabalho que tem desenvolvimento na clandestinidade, bem como pelos registos que futuramente lhe são deixados, o espectador conhece um homem que fora, em tempos, empenhado na luta pelos direitos dos mais fracos, dos trabalhadores e dos oprimidos pelos quais, no entanto, agora revela uma intensa falta de entusiasmo que não só o compromete para com os demais como principalmente o demarcam das acções que estes pretendem realizar. "Paulo" é um homem presente fisicamente mas distante pela sua abstracção para com aquilo que todos os demais lutam.
Quando sente ou sabe que a polícia se aproxima, "Paulo" distancia-se dos demais vivendo nas sombras da "sombra" na medida em que continua presente na luta clandestina mas, ainda assim, afastado das grandes convulsões que outra apaixonadamente defendera e se essas em tempos o levaram a abraçar os mais desfavorecidos, agora compreende que esta luta está (estaria) condenada ainda por muito tempo. Os valores que antes foram os seus são então pouco mais do que uma memória distante e impossível de ser concretizados como sempre sonhara. "Paulo" é, no fundo, um homem desiludido, desencantado e que se demitira desse tal "sonho"... Incapaz de lutar com a convicção que o marcara... mais não lhe resta do que fugir de todos aqueles que o conheceram... mas a que custo?
A inevitabilidade da ironia presente no desfecho desta história acaba por ser superior àquela dos acontecimentos históricos que, na realidade, todos nós conhecemos pelos mil e um relatos do período em questão que todos nós já observamos nos mais variados documentários ou documentos históricos. Todos nós sabemos que até 1974, muitos seriam aqueles que viriam a ser perseguidos, presos, torturados, mortos e mais ainda aqueles que atravessavam fronteiras na ilegalidade para fugir ao martírio de um regime brutal e impiedoso. No entanto, Nevoeiro é, para lá de um registo desse tempo - que o faz e muito bem -, um conto (imaginado ou não) sobre as oportunidades e consequências dessa fuga que levavam o Homem não só à demissão do seu compromisso moral para com os valores em que sempre acreditara mas, sobretudo, à ironia do cativeiro longe do cativeiro na medida em que pode pretender a fuga... mas o que será dela quando apenas tem como rumo uma inevitável e esperada prisão onde será duplamente detido... primeiro pelos seus opositores e, finalmente, por aqueles que partilharam a luta com ele e que no próprio reconhecem tão "válido" como aqueles que os haviam detido.
Com sólidas mas tranquilas interpretações - magnífica a contenção de João Patrício - e uma direcção de fotografia capaz de captar o ambiente dos tempos "negros" que o país vivera nessas décadas, Nevoeiro é uma intrigante - pelo seu extenso potencial - curta-metragem dirigida com um pulso firme digno de uma história sobre a História onde os seus protagonistas, não se demitindo da execução dos seus sonhos e liberdades, compreendem a impossibilidade da sua concretização nos tempos sombrios em que ousaram tê-los fazendo assim justiça ao ideal de nevoeiro - político e principalmente pessoal - que se fazia sentir.
O Homem-Pykante - Diálogos kom Pimenta de Edgar Pêra (Portugal) é um dos documentários presentes na competição oficial da XXIVª edição dos Caminhos do Cinema Português a decorrer em Coimbra no Teatro Académico Gil Vicente.
Edgar Pêra recupera com este documentário alguns dos registos gravados de e com Alberto Pimenta, escritor e ensaísta português que se afirmou ao longo das décadas pela sua escrita considerada insurrecta, subversiva, irreverente e assumidamente crítica do meio político, social e cultural.
Aquilo que se inicia como uma estranha obra que tem como protagonista um homem que interpreta duas distintas personagens - o mendigo e o burguês socialmente em ascensão -, cedo se transforma numa obra onde o próprio escritor não só declama alguns excertos dos seus textos como livremente se (os) expõe de forma assertiva e não menos mordaz. E se inicialmente o espectador estranha aos seus ditos, rapidamente os entranha como uma realidade que no fundo pensa - sobre os tempos que vive -, compreendendo e aceitando aquilo que diz e pensa como a sua (do espectador) própria realidade.
Tudo começa como um ensaio improvisado onde um homem de posses (Pimenta) encontra um mendigo que dorme num banco de jardim (Pimenta de novo). Por entre o seu pasmo e ditos de alguém "superior", cedo reparamos que este não é um mendigo qualquer... com ele tráz os seus próprios pensamentos e um telemóvel - qual mendigo moderno -, que rapidamente atende e para o qual tece os seus mais ou menos iluminados discursos como se de um homem de negócios se tratasse.
Com este momento como o momento de partida que introduz o homem e a sua obra ao espectador, aquilo que escutamos das verdades deste homem e que, na realidade, são muitas das verdades inconfessáveis de tantos de nós, é todo um conjunto de pensamentos sobre a vida, a política, a sociedade, a hipocrisia, a vida e a morte que levam o espectador a reflectir sobre temas banais mas presente no seu quotidiano estabelecendo diferenças não só entre o Homem em si como principalmente sobre a sua (des)evolução ao longo dos tempos... fazendo daquilo que ontem era mentira seja a verdade de hoje ou vice versa.
Pimenta fala dos seus tempos na Alemanha onde trabalhava e onde viveu parte do seu exílio como opositor ao regime de Salazar, da promessa do 25 de Abril e da perseguição que sentiu quando cá vivera no seu pós mas sobretudo sobre a irreverente transformação do povo que se habituou a olhar, como diz, "a casa sempre pelo lado de fora", ignorando todos os pequenos detalhes ou nuances que a transformam naquilo que ela realmente é... uma casa.
As suas verdades, aparentemente banais e circunstâncias, ganham forma e conteúdo quando o espectador pensa que todas elas, sem excepção, têm um fundo de verdade do dia-a-dia na medida em que são pequenos e breves pensamentos que escondem verdades profundas sobre a essência de cada um... afinal, não são estes pequenos e livres estudos de alma que, quando analisados, assustam pela sua realidade e pela rendição que todos nós lhes depositamos?! Assim, a distância estabelecida entre essa verdade "banal" e o pessimismo existencial, leva Pimenta a falar sobre a Humanidade e a sua (ir)racionalidade como uma consequência de quem tudo (e nada) tem esquecendo que os "migrantes de hoje são os escravos de ontem" tal como refere numa das suas mais emblemáticas obras, Discurso sobre o filho da puta (1977).
No entanto são os seus pensamentos sobre a morte e sobre a total independência que "apenas se obtém nas portas, locais de entrada e saída", que ganham maior destaque... é ela que nasce connosco e que vive (ironia do pensamento) sempre como um invisível parceiro e que levam o espectador a compreender (ou pelo menos tentar) melhor a sua mortalidade como principalmente aquela que um homem do mundo, que fala dos outros consciente de que também o representa a si, enfrenta a sua própria mortalidade como uma inevitabilidade que não o preocupando o assusta...
Em tom de humor - nem sempre positivo -, sarcástico e por vezes "negro", Pêra com o seu estilo vanguardista muito próprio, dá uma cor a um poeta e um autor com quem estabelece uma próxima amizade, expondo os seus pensamentos como um reflexo desta portugalidade (e não só), de forma corrosiva, intensa, mordaz, irónica mas ao mesmo tempo dotada de um humor próximo e quase fraterno que nos leva a uma imediata empatia com o homem, com o seu pensamento e também com a sua obra tão cheia de intensas verdades que raramente ousamos admitir.
Potencialmente a grande surpresa desta edição dos Caminhos do Cinema Português, O Homem-Pykante - Diálogos kom Pimenta é certamente não só uma das suas obras mais emblemáticas como seguramente das de Pêra, centrado em filmar Portugal e o mundo com um olhar muito próprio que o espectador não esquecerá e que quando o pensa... lhe reconhece toda a verdade. Bravo Pêra... Bravo Pimenta.
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"Alberto Pimenta: Morrer depois da morte prova que a alma também é mortal."
Quantas Vezes Tem Sonhado Comigo? de Júlia Buísel (Portugal) presente na secção oficial em competição dos Caminhos do Cinema Português a decorrer em Coimbra revela um inesperado encontro entre uma mulher (Catarina Wallenstein) e Mefistófeles (Dinis Gomes), uma figura satânica que a quer aliciar para o seu lado de perdição pelas ruas da Lisboa de Pessoa.
Do Chiado às arcadas do Terreiro do Paço, esta primeira incursão da realizadora transforma a Lisboa que todos reconhecemos num inesperado e solitário purgatório por onde uma mulher (ou aquilo que aparenta ser a sua alma penada), vagueia na esperança de (re)encontrar algo que a volte a unir a uma realidade agora desconhecida.
Esta mulher interpretada por Wallenstein parece sofrer do mal de um luto que a visitou antes do tempo e que a deixou a deambular pelas ruas de um familiar "desconhecido". Lisboa, ou as suas ruas, são assim o seu passeio eterno onde a sua busca parece não ter fim... primeiro por procurar algo que a faça recordar e depois pela esperança dessa memória que não chega. É nestas ruas conhecidas mas incertas que uma figura satânica a visita e a tenta... tenta-a primeiro com uma simpatia e depois com promessas de afectos que o próprio não poderá (ou quererá!) garantir.
Pelas ruas dessa mesma Lisboa onde nada reconhece, ou onde ninguém se vislumbra, são provavelmente as imagens de um incêndio descontrolado que a fazem despertar desse son(h)o profundo que a levam a compreender que essa promessa de afecto e amor garantidos por um marido desaparecido, mais não são do que palavras de alguém que em tempos tentou Jesus saindo gorado, e que vagueia os caminhos de um mundo cada vez mais moderno e onde a sua solidão se acentua. É esta mesma solidão que faz despertar a "Mulher" levando-a a compreender que aquilo que procura não encontrará, muito menos através das promessas vãs de quem, também ele, procura uma companhia que não encontrará.
Com um cenário facilmente identificável e uma história cativante pela forma como expõe a solidão de uma figura satânica e, pensa o espectador, idealmente caprichosa e maldosa, Quantas Vezes Tem Sonhado Comigo? peca "apenas" por uma excessiva teatralidade que parece colocar os seus actores e respectivas personagens num palco improvisado onde a declamação ganha terreno face à natural expressividade de um conjunto esperado de emoções e sentimentos que aqui... nunca ganham forma. Num universo em que o submundo se expõe e aos seus sentimentos... espera o espectador mais do que uma simples declamação de um solidão nunca confessada.