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Ferrugem e Osso de Jacques Audiard tornou-se no filme que mais desejei ver este ano e que tive oportunidade graças ao magnífico evento que foi a Festa do Cinema Francês de Lisboa que teve uma bem forte selecção de filmes que na sua maioria refletem um tempo e uma sociedade.
Ali (Matthias Schoenaerts) ficou recentemente encarregado de cuidar do seu filho. Sem qualquer tipo de responsabilidades, desempregado e emocionalmente liberto de qualquer relação com os outros, deixa a sua Bélgica natal rumo a França onde vive a sua irmã com quem não tem qualquer contacto há largos anos e esperar por um início de relação e constituição de família.
Stéphanie (Marion Cotillard) é treinadora de orcas num parque temático. Um espírito livre que se encontra presa numa relação onde parece estar controlada e que não a satisfaz conhece Ali. Quando sofre um acidente de trabalho que a deixa sem pernas, Stéphanie reencontra Ali com quem inicia aquela que inicialmente é uma relação de amizade mas que rapidamente se transforma em física e sexual.
A filmografia de Jacques Audiard é exemplar em dar um retrato de um conjunto de pessoas que, de uma ou outra forma, se encontram à margem da sociedade. Podemos constatá-lo em Nos Meus Lábios, De Tanto Bater o Meu Coração Parou ou em O Profeta independentemente da forma como se manifestam cada uma das personagens nas suas respectivas histórias. Quer seja por serem inadaptados à própria sociedade, marginais às suas leis, aos seus costumes ou até mesmo por serem caracterizados por um desconforto em relação ao afecto e à convivência com o mundo que os rodeia. Aqui voltamos a encontrar este desconforto que começa por ser em relação às demais pessoas mas que cedo se manifesta como uma quase repulsa pela sociedade na qual Stéphanie e Ali vivem.
O brilhante argumento elaborado por Audiard em parceria com Thomas Bidegain não poderia ser mais actual. Não só pela sua abordagem dada àqueles que vivem à margem da sociedade como também pela própria decadência em que esta se encontra. A crise e as suas consequências que passam pelo desemprego, a fome ou a perseguição patronal e os despedimentos colectivos que, de certa forma, acabam por contribuir para a manutenção de uma sociedade com as suas margens sempre explosivas e que separa o "eu" dos "outros". Aliás, uma recorrente mensagem que esta Festa do Cinema Francês trouxe em vários dos magníficos filmes que foram apresentados.
A composição das personagens não poderia ter sido melhor. Comecemos pela dupla de actores que não só dão alma às suas personagens como já é claro que são fortes talentos do cinema Europeu e mundial. Marion Cotillard é "Stéphanie", uma mulher forte e aparentemente independente que, por um trágico acaso do destino, se vê amputada das suas pernas. Seria de esperar que esta mulher se tornasse dependente dos outros e resistente à mudança que tragicamente se apoderou da sua vida, no entanto, aquilo que temos é uma mulher consciente da sua situação mas indiferente às aparentes limitações que esta lhe poderia colocar. É uma mulher que comunica, que expresa verbalmente a condição em que se encontra e que se faz dessa forma notar perante um mundo que facilmente a colocaria de lado. Cotillard tem assim uma forte interpretação que fez furor em Cannes tendo chegado a ser mencionada como a preferida para o prémio de interpretação e que já dá que falar para uma segunda nomeação ao Oscar (que infelizmente duvido que se concretize na segunda estatueta), e será uma clara vencedora do Cesar pela Academia Francesa.
E se Cotillard é o espírito, as palavras e a comunicabilidade, temos a seu lado um Matthias Schoenaerts que depois de Cabeça de Boi, se assume como um dos mais fortes talentos do momento. O seu "Ali" é um homem que se relaciona com o mundo através do seu corpo e de uma aparência rude e bruta. Schoenaerts compõe uma personagem habituada a trabalhos onde a força física é determinante e cuja relação que estabelece com o mundo seja apenas e só através dela, favorecendo assim uma incomunicabilidade verbal com um mundo no qual não se insere. A relação com os outros, mesmo os que mais perto se encontram, é quase nula. Com a irmã com quem há anos não falava, com um filho que quase encara como um irmão mais novo, com os ocasionais colegas de trabalho que nem encara ou com as mulheres que cruzam a sua vida apenas para esporádicos encontros sexuais, ou mesmo através dos combates de boxe ilegal que organiza e que se assumem como a única forma que ele encontra de se enquadrar num mundo que voluntariamente ignora. Todas estas estranhas e ocasionais relações que estabelece são formadas, de uma ou outra forma, através da violência seja ela verbal, física ou simplesmente por ignorar quem se encontra do outro lado.
Se estas duas personagens não podem parecem mais diferentes, não deixa igualmente de ser verdade que elas conseguem ser o complemento uma da outra. Por um lado temos Stéphanie que se vê impedida no que a mobilidade física diz respeito, por outro temos Ali que está longe de ser perfeito no trato com os demais. Se Stéphanie é a alma, Ali é o corpo. Ambos precisam um do outro, pois cada um à sua maneira e devido à solidão em que se encontram, representam dois corpos que sofrem quer de uma dor física ou de uma dor psicológica, e aceitam-se, um complementando o outro, numa relação errática que tem tanto de frágil como de hesitante, mas conscientes das necessidades de cada um.
E é esta mesma consciência que acaba por defini-los. Ambos sabem que não podem confiar na aparência um do outro. As pernas amputadas de Stéphanie não definem a sua vontade de viver e de sentir o mundo. Ela possui um fogo e uma vontade maiores do que a aparente limitação que o seu corpo apresenta pode definir. E o mesmo a respeito de Ali que dá uma imagem de ser rude e desinteressado pelos outros devido ao seu corpo possante mas que na eminência de perder o filho ou a estabilidade que Stéphanie lhe dá, mostra uma sensibilidade interior que há muito se encontrava reprimida. É esta estabilidade que representam um para o outro que lhes dá uma força de renascer, de enfrentar as suas limitações e de continuar, características com as quais nos poderemos facilmente identificar.
Tecnicamente este filme é igualmente uma pérola. A beleza crua das imagens consegue recriar um ambiente natural, livre de artifícios e de embelezamentos quase irreais e por outro lado, dar um ar poético a determinados momentos que de tão sensíveis se tornam emocionantes nomeadamente as três fases de Stéphanie... a inicial onde exerce a sua "dança" com as orcas antes de sofrer o seu acidente, a segunda quando na sua casa recria esses mesmos movimentos e finalmente a terceira e última quando já com as suas novas pernas se dirige ao tanque onde sofreu o acidente e abraça a sua nova situação chamamdo para perto de si a orca que lhe "deu" a sua nova condição física.
Igualmente brilhante é a banda-sonora de Alexandre Desplat que em nada me surpreenderia que obtivesse uma nomeação para o Oscar, e que transforma todos os momentos mais íntimos em verdadeiras imagens de uma sensibilidade que poucos ousam admitir. Simplesmente emotiva e mais um dos fortes elementos deste filme.
Independentemente dos prémios, que já afirmei noutros comentários não definirem a grandeza de um filme (mas pelos quais anseio que cheguem rapidamente), mas este será provavelmente um dos filmes desta época, não só pela sensibilidade das interpretações dos seus brilhantes actores como pela actualidade dos seus temas que abrangem não só a condição do ser humano como as suas limitações e o mundo ou sociedade em que se encontra como também a capacidade que tem de as ultrapassar e adaptar-se a um novo mundo ou a uma nova condição.
Forte e poético. Duro e corrosivo. Sensível e emotivo sem que estas duas características façam dele, ou das suas personagens, menos fortes, este é um dos filmes do ano e que encerrou brilhantemente em Lisboa, a Festa do Cinema Francês.
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10 / 10
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