domingo, 31 de março de 2013

Paranoid Park (2007)

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Paranoid Park de Gus Van Sant foi um dos seleccionados para a Palma de Ouro em Cannes e que nos conta a história de Alex (Gabe Nevins) um adolescente vindo de um lar conturbado onde vive com a mãe e o irmão mais novo que depois de alguns actos ainda por explicar se vê interrogado por um detective que investiga a misteriosa morte de um segurança numa linha de ferro.
Num misto de reflexão sobre a sua vida, o seu lar desfeito, a pressão sexual exercida pela sua namorada e uma morte acidental, Alex escreve num caderno os acontecimentos que se foram sucedendo naqueles dias ao mesmo tempo que frequenta Paranoid Park, um recinto de skaters que ali se encontram e forma a sua própria família e sociedade, longe das normas de uma sociedade ao seu redor que já por si, se encontra numa convulsão.
Habituado que estou obras de Van Sant como Disposta a Tudo, O Bom Rebelde ou Finding Forrester, seria natural que a expectativa a respeito deste filme fosse muita, especialmente se considerar que antes deste Paranoid Park já tinha também visto o seu premiado Milk. Numa linha contínua a essas obras que referi, este Paranoid Park prossegue com as histórias de personagens inadaptadas, algumas delas com problemas com a sua própria "pele" e que tentam desesperadamente encontrar um próprio lugar no mundo ou uma concepção de mundo adaptado à sua realidade. Assim o tivemos com a "Suzanne" de Kidman ou com o "Will" que Matt Damon compôs no referido filme e aqui não é excepção com a interpretação a que Gabe Nevins dá corpo com o seu "Alex".
Poderíamos esquecer por momentos que este "Alex" mais não é do que um adolescente que se encontra numa idade complicada e que "luta" pela sua transformação para uma idade adulta. No entanto este aspecto ganha mais importância devido a todas as inerentes responsabilidades que o esperam, graças à inexistência de um pai que o estima mas não está presente e por uma mãe apagada que vive os seus próprios problemas resultantes da separação do seu marido. Ele vive assim uma constante encruzilhada fazendo aumentar todos os problemas que, noutras circunstâncias, seriam tidos como "menores" mas que assim definem cada um dos seus instantes.
Uma vez atingido pela tragédia, ainda que acidental, "Alex" inicia a sua própria redenção através de um diário onde não só desabafa sobre os trágicos acontecimentos que vitimaram um homem à sua frente, como também sobre todo um meio que o rodeia e que é na prática pouco convencional ou mesmo facilitador para a sua condição de jovem adulto. As pressões dos pares (os outros adolescentes), da namorada e de uma situação familiar já de si fragilizada, acentuam o drama existente quando percebe não ter ninguém com quem desabafar os seus próprios problemas ou as situações graves pelas quais atravessa, resolvendo os seus próprios demónios e incertezas completamente sózinho num mundo que está, de certa forma, repleto de pessoas que consigo convivem, num desempenho notável de Nevins que demonstra todas as fragilidades de um jovem que se encontra perdido e que suporta basicamente todo o filme desde o primeiro instante, não recolhendo nenhum desempenho que se destaque além do seu.
E se as premissas desta história baseada na obra de Blake Nelson são suficientemente fortes para compreendermos as angústias silenciosas deste jovem, o que é certo é que sinto que este filme não foi para além do esperado mantendo toda a tensão dramático sempre num lume brando que nunca chega a "queimar", e para o qual além da interpretação de Nevins, só contribui uma magnífica fotografia de Christopher Doyle e Rain Li que por momentos nos colocam numa qualquer atmosfera etérea longe do plano terreno em que nos encontramos.
Paranoid Park é um (mais um) interessante filme de Gus Van Sant mas que poderia ter sido mais arriscado como as suas outras obras e criado uma ponte de ligação, e comparação, para com um público mais vasto e não apenas um público alvo assumidamente mais jovem.
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5 / 10
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sábado, 30 de março de 2013

Yama No Anata (2011)

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Yama No Anata - Para Além das Montanhas de Aya Koretzky é um documentário português que retrata uma viagem autobiográfica da realizadora e dos seus pais que, no início dos anos 90 do século passado, decidiram abandonar a cosmopolita Tóquio rumo a Coimbra onde passaram a tomar conta de uma quinta num estado de perfeito abandono que, aos poucos, começaram a recuperar.
Este documentário explora através de um conjunto de imagens que invocam o passado da realizadora de forma a compreendermos um pouco das suas origens e de um país tão longínquo como o Japão que, no entanto tem profundos laços históricos com Portugal, naquela que é uma viagem pessoal e intimista às suas recordações e memórias expressas através de vídeos que tem enquanto criança no Japão bem como através de cartas trocadas com alguns amigos e a professora que lhe deu os primeiros passos formativos e educacionais.
É assim que, aos poucos, vamos tendo uma maior percepção desta sua longa viagem de, por um lado separação da sua cultura primária e, por outro, de inserção num meio e cultura completamente diferente como é a portuguesa e europeia, e sempre através de uma narração em voz-off sempre com o intuito de perceber os porquês desta sua viagem para um país tão distante.
Através de uma junção extremamente bem conseguida entre uma fotografia etérea e uma perfeita montagem que selecciona cuidadosamente que momentos incluir e onde, este filme conta-nos uma história pessoal que cruza a memória, a mudança e a força das ligações que unem as pessoas independentemente das distâncias a que se encontrem umas das outras.
Um simpático e intimista documentário que foi vencedor de diversos prémios nomeadamente no DOCLisboa como melhor filme português em competição, bem como no Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira onde foi declarado vencedor absoluto com os prémios de melhor filme, revelação e crítica, e que merece ser visto como uma peça exemplificativa de um nobre sentimento tão português como é a saudade.
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6 / 10
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sexta-feira, 29 de março de 2013

Tulpa (2012)

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Tulpa de Federico Zampaglione presente na secção Altre Visioni da 6ª edição da Festa de Cinema Italiano de Lisboa, e o último filme que vi este ano, recupera o estilo Giallo há muito desaparecido do mesmo, numa combinação perfeita de elementos.
Tendo então em conta esta tradição recuperada, este filme conta-nos a história de Lisa (Claudia Gerini), uma executiva de sucesso que se prepara para poder ser a administradora de uma empresa de sucesso que de noite tem uma vida alternativa ao revelar ser frequentadora de um misterioso clube de inspiração budista e ao culto da tulpa, entidade que pode ser materialmente criada pela força de vontade através da meditação, concentração e visualização da mesma e que, encarnando os mais reprimidos pensamentos pode desviar na criação de um demónio, local este onde o sexo com estranhos é encarado como uma forma de libertação da ânsia de viver.
O inesperado acontece quando Lisa descobre que estranhos homicídios estão a decorrer e que as vítimas são alguns daqueles que com ela frequentam tão misterioso clube nocturno e, mais concretamente, aqueles que embarcaram em orgias onde esteve presente, e que denotam que alguém está desesperadamente a atormentar a sua vida e que ela própria pode ser uma das próximas vítimas. Ou será que a sua meditação já despertou o demónio interior que Lisa tem e que sempre tentou esconder devido aos padrões socialmente aceitáveis?
Segundo a melhor tradição do cinema Giallo, este Tulpa tem todos os ingredientes indispensáveis para que resulte da melhor forma, ainda que para alguns não preparados ou desconhecedores do filme ele se assuma como algo estranho e sem sentido. Temos a evidente e explícita sexualidade que na melhor tradição deste género nos indica quem serão as vítimas perfeitas do misterioso assassino e que é ele próprio um dos elementos fundamentais do género. Todos estes filmes, sem excepção, denotam uma sexualidade e sensualidade filmica que se fundem imediatamente com o voyeurismo do espectador. Quando despertamos do transe em que as imagens nos colocam, numa nudez explícita e quase gratuita inerentes ao género, percebemos que aqueles momentos não são tão gratuitos assim e que retratam uma certa vulnerabilidade em que as próprias personagens se encontram face ao desconhecido que se prepara para atacar.
E quando isto acontece temos um conjunto de momentos que oscilam entre a bizarria e o gore, também eles sempre muito explícitos e macabros que para além de uma simples morte mostram requintes de malvadez típicos do género cinematográfico que representam, deixando as suas "vítimas" como verdadeiros calvários em plenos século XXI. Sangue, feridas, marcas, chagas e muito macabro são apenas algumas das palavras que chegam à memória daqueles que assistem àquelas por vezes incomodativas imagens que são, de certa forma, verdadeiros símbolos do filme (e género) em questão.
E é também a partir deste momento que todos são suspeitos. os amigos, os colaboradores e colegas, a família (quando existe) e até aquele simpático vizinho do lado que aparenta não fazer mal a uma mosca. Todos são o assassino que persegue a vítima... Até ela própria chega a ser por vezes suspeita, deixando-nos numa constante corda bamba sobre o que poderá resultar daquele espectáculo macabro. Assassino esse que aparece de uma forma também característica do género (outro símbolo), sempre de casaco comprido preto, chapéu e luvas e, sem nunca lhe vermos o rosto ou as formas, fiamos até ao final em suspensão sobre a sua verdadeira identidade ou a respeito da proximidade que poderá ter para com a vítima. Vítima esta que, apenas e só ela, poderá e conseguirá no final descobrir e revelar quem está por detrás de tão hediondas mortes.
Tulpa é um digno representante do género, e o realizador Zampaglione não poderia ter escolhido outra actriz que não a sua própria mulher Claudia Gerini, para dar corpo e muita alma a uma "Lisa" que tem tanto de vítima como de femme-fatale... ora fria e calculista ora mulher sedenta da compreensão de uma alma por vezes perdida no caminho da vida que se assume maior do que a sua própria capacidade de a suportar, e que encontra naqueles meandros um escape para o seu enfadonho quotidiano... Mas todos os caminhos têm um preço, por vezes elevado demais, a pagar... como aqui se comprova.
Intenso e explícito... macabro e muito sexual, com um ambiente geral perfeito graças a uma fotografia por vezes claustrofóbica e assustadoramente intensa da autoria de Giuseppe Maio, que transforma aqueles corredores subterrâneos em labirintos responsáveis pela loucura dos mais desprevenidos, e uma banda-sonora intensa e repleta de vida, digna de ser uma própria personagem do filme que fora composta por Andrea Moscianese, Federico Zampaglione e Francesco Zampaglione que, todos em uníssono conseguem recuperar, na perfeição, um género cinematográfico que tem uma extensa legião de fãs e sem cair no absurdo de onde outras produções nunca conseguiram sair.
Se original se puder aplicar nos nossos dias a uma obra do género... Tulpa é sem dúvida, um filme original.
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7 / 10
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La Migliore Offerta (2013)

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A Melhor Oferta de Giuseppe Tornatore foi o filme seleccionado para a cerimónia de encerramento da 6ª edição da Festa do Cinema Italiano de Lisboa e também a mais recente obra do realizador italiano.
Este filme conta-nos a história de Virgil Oldman (Geoffrey Rush), um reconhecido e reputado especialista em arte que através da sua leiloeira e avaliadora, toma contacto com um diversificado conjunto de obras de arte que admira.
No entanto Virgil é tão reputado na sua profissão como infeliz na sua vida afectiva e sentimental na qual não deixa entrar ninguém ao ponto de criar um verdadeiro laço de cumplicidade. Todos aqueles que lhe são mais próximos apenas o são por intermédio profissional sem que, com eles, partilhe qualquer tipo de intimidade ou amizade.
É quando inicia uma invulgar relação profissional com Claire (Sylvia Hoeks), uma misteriosa jovem que nunca se dá fisicamente a conhecer, mas que deposita nele toda a sua confiança para vender o seu património, que Virgil começa aos poucos a modificar a sua vida por se sentir imediatamente fascinado com aquela curiosa e peculiar mulher transformando assim radicalmente todos os seus hábitos que o irão levar à surpreendente descoberta de que tudo pode, realmente, ser falsificado.
Sendo um fã incondicional da obra de Tornatore, foi com assumido entusiasmo que esperei por este filme durante bastante tempo. Poder tê-lo em Lisboa antes de uma estreia comercial que iria provavelmente ser esquecida por muitos, foi um pequeno grande bónus que muito me motivou a ser dos primeiros a entrar naquela enorme sala do Cinema São Jorge.
Os sinais de que este era um filme de Tornatore eram óbvios assim que se começaram a escutar os primeiros acordes da banda-sonora e era assim inconfundível a mão do mestre Ennio Morricone que tão magistralmente tem composto as mais belas e sentidas sinfonias para os filmes do realizador italiano com quem colabora há largos anos tendo participado nos filmes Cinema Paraíso, Malèna, A Lenda de 1900 ou A Desconhecida. A magia dos seus filmes deve-se não só ao simbolismo e magnetismo das suas histórias como também muito contribuem as suas músicas que não deixarão ninguém indiferente e, à semelhança do que acontecera há mais de dez anos com A Lenda de 1900, Tornatore volta a filmar com actores cuja língua materna não é o italiano.
Para este elenco foram seleccionados alguns nomes de Hollywood que bem conhecemos como Geoffrey Rush para interpretar "Virgil", numa composição à qual dá uma perfeita alma como aquele homem que está tão indiferente ao que o rodeia como desejoso e expectante para que esse mesmo ambiente lhe traga algo, ou alguém, que o faça poder olhar à sua volta com uma maior tranquilidade e dedicação. "Virgil" não é um homem frio por natureza mas sim alguém que não teve com o passar dos anos, uma sociabilização normal com os demais. Dotado de uma sensibilidade extrema para as grandes obras de arte que artistas de renome deram ao mundo, e que o próprio resguarda de mãos mais inapropriadas, o seu lado social onde deveria ter interagido com o mesmo cuidado com os demais ficou gravemente afectado e, como tal, encara todos os que estão à sua volta não como pessoas menos dignas mas sim pessoas com as quais não consegue estabelecer uma relação dita normal. Até ao dia em que, ao conhecer "Claire", se entrega de corpo e alma não questionando a fundo nenhum dos seus comportamentos e acções que, noutros tempos, não iria tolerar.
O elenco é ainda composto por uma interpretação secundária de Donald Sutherland como "Billy", o fiel amigo de "Virgil" que com ele elabora alguns interessantes esquemas para poder ele próprio comprar as obras de arte que considera mais valiosas, e ainda um Jim Sturgess como "Robert", o jovem técnico que o auxilia nas tarefas mais mecânicas de recuperação de algumas obras.
Se é um facto que este filme consegue ser emocionante do início ao final, muito graças à interpretação de um sempre inspirado e notado Geoffrey Rush, não deixa também de ser verdade que o afastamento das tradicionais histórias da sua Sicília natal fazem perder uma certa magia que lhe é inerente, excepção feita ao já referido A Lenda de 1900 que é por si só uma magnífica obra-prima. Sem que percam o encanto, estas personagens não detêm o brilho e a magia que aquelas de filmes como Malèna, Cinema Paraíso ou O Homem das Estrelas possuem, sendo que aqui apenas o actor australiano brilha em exclusividade sem que para isso contribua em grande medida todo o restante ambiente, e nem mesmo um inspirado Sutherland consegue aqui reter o protagonismo que lhe é merecido sendo quase uma figura decorativa e não uma personagem com a importância que já perto do final percebemos que tem.
Dito isto, e sem retirar o mérito a um filme inspirado (como sempre), com uma história apelativa e personagens interessantes, destaco apenas a curiosidade de que as mulheres de "Virgil" (pintadas ou reais) deterem, sem excepção, a particularidade de se encontrarem encerradas numa redoma longe de todo o contacto com o público. Dentro da sua casa (que não o é), as "suas" mulheres encontram-se num cofre, longe do olhar do público quase como se não existissem para o restante mundo. "Claire", que se transforma na única mulher que "Virgil" realmente conhecera está, também ela, supostamente fechada na sua própria redoma longe do contacto com o mundo exterior que a rodeia, construindo assim os seus próprios universos numa quase apática e autista relação com esse mesmo mundo.
Não sendo a melhor obra de Tornatore, onde qualquer uma das anteriormente referidas a consegue ultrapassar, este filme vale pelos seus dois mais fortes e destacados elementos. Em primeiro lugar, um inspirado, forte e determinado Geoffrey Rush que muito facilmente transforma este filme numa sua preciosidade quase tão imaculada como as próprias obras que o seu "Virgil" salvaguarda e, em segundo lugar, uma exímia e perfeita música original da autoria de um dos, senão o, maior mestre e compositor que é Ennio Morricone, que graças à sua partitura consegue transportar-nos para um qualquer outro lugar e ambiente provocando-nos, por momentos, algum esquecimento em relação ao filme a que estamos a assistir.
La Migliore Offerta tem como seria de esperar a marca Tornatore mas, não é de facto, um dos seus mais fortes e intensos trabalhos que nos consiga apaixonar ou que ficará marcado na história ou na nossa memória como aqueles outros que nos conseguiram verdadeiramente emocionar.
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"Virgil Oldman: How is it living with a woman?
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Lambert: It's like taking part in an auction sale... you never know if yours is the best offer."
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8 / 10
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Su Re (2012)

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Su Re de Giovanni Columbu foi mais uma das longas-metragens presente na secção Altre Visioni da 6ª edição da Festa do Cinema Italiano de Lisboa.
Tendo como base o Evangelho segundo Mateus, Marco, Lucas e João, o argumento da autoria de Giovanni Columbu e Michele Columbu centra-se sobre as últimas horas de Jesus mas, ao contrário do tradicional neste género cinematográfico, aqui elas são vistas a partir da perspectiva daqueles que com ele passaram as últimas horas ou que por elas cruzaram, desde a sua mãe, passando por Maria Madalena, os seus amigos e futuros apóstolos até àqueles que o condenaram e crucificaram, a Judas que o traiu e mesmo a Poncio Pilatos, o governador romano da Judeia que validou a sua condenação, privilegiando assim não a perspectiva própria de um Homem que caminhou para a sua própria morte mas sim a perspectiva de um narrador que acompanhou os acontecimentos à medida que eles decorriam.
O efeito maior que esta obra de Columbu consegue criar é tornar-nos enquanto espectadores, quase que uma parte participante na história sem que na prática possamos interferir na mesma. Funciona assim de uma forma tão convincente que nos sentimos presentes como que se pairássemos por cima dos acontecimentos e os observássemos de muito perto ao ponto de quase se tornar insuportável, não só pela inevitabilidade dos factos como por ser uma história que já bem conhecemos, todo aquele drástico desenrolar de factos até a uma trágica e dolorosa morte.
Sem artifícios ou qualquer efeito de espectáculo que normalmente um cinema norte-americano possui (com o bom e mau que isso possa representar para um filme), este Su Re é não só uma obra inovadora pela diferente perspectiva que nos dá daquelas trágicas horas como, ao mesmo tempo, se torna um filme aliciante e hipnótico devido a esse mesmo efeito novidade, que também pela "transferência de palco" da Palestina para as rochosas montanhas de uma Sardegna agreste e rigída para com as vidas dos próprios habitantes transforma esta experiência já de si dura num filme bruto mas repleto de emoção.
Com um conjunto de interpretações uniformes e que funcionam bem entre si há no entanto que destacar a presença de um "Judas" interpretado por Antonio Forma que não só se assume como o traidor que conhecemos como também nos é dado também dele uma nova perspectiva ao ser retratado como um homem arrependido e martirizado com a decisão que tornou Jesus numa lenda.
Destacam-se também alguns aspectos técnicos nomeadamente a fotografia quase "gélida" de Francisco Della Chiesa, Emilio Della Chiesa, Massimo Foletti, Uliano Lucas e Leone Orfeo que aos poucos transforma a imagem e todo o ambiente num local quase claustrofóbico e que nos incomoda. O guarda-roupa de Stefania Grilli e Elisabetta Montado que consegue, de facto, transportar a acção para um meio rural latino-mediterrânico e finalmente a caracterização dos actores pelas mãos de Desiré Palma que, ao contrário de outras produções, não embeleza os actores mas dá-lhes sim o ar mais rude e campestre que se espera ver se pensarmos nos tempos e no meio em que estas pessoas habitavam.
Um filme diferente, e que por isso poderá ter dificuldades de distribuíção, mas que é uma interessante abordagem a uma história que já todos conhecemos.
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7 / 10
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quinta-feira, 28 de março de 2013

Richard Griffiths

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1947 - 2013
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Festa do Cinema Italiano de Lisboa 2013: os vencedores

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Chegado o último dia da 6ª edição da Festa do Cinema Italiano de Lisboa, chegou também a altura de ficarmos a conhecer os vencedores dos dois prémios do certame que, este ano, tiveram ainda uma menção honrosa atribuída a um dos actores pelo seu elevado contributo para a caracterização social do momento. E os vencedores foram:
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Prémio Rottapharm Madaus de Melhor Filme
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Io Sono Li
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de Andrea Segre
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Prémio do Público
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Io Sono Li
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de Andrea Segre
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Menção Honrosa
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Valerio Mastandrea
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Gli Equilibristi
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Festa do Cinema Italiano de Lisboa 2013: o último dia

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Chega hoje ao fim a 6ª edição da Festa do Cinema Italiano de Lisboa de 2013. Durante oito dias de uma intensa e diversificada selecção de cinema que em diversas ocasiões encheram as salas do Cinema São Jorge e do Teatro do Bairro, as duas salas oficiais da festa deste ano.
Na sessão de encerramento além de ser anunciado o Prémio Oficial Rottapharm Madaus atribuído pelo júri composto pelo realizador Bruno de Almeida, o programador cultural Giacomo Scalisi, pelo actor Marcello Urgeghe e pelo crítico de cinema João Lopes ao Melhor Filme em Competição, e também o Prémio do Público através da votação directa dos espectadores, será ainda exibida a última obra do realizador Giuseppe Tornatore, La Migliore Offerta.
A festa de encerramento que irá começar por volta da meia-noite no Teatro do Bairro, e não no Ritz Club como tinha sido inicialmente anunciado, conta com o concerto dos Calibro 35, banda composta por Massimo Martellotta, Enrico Gabrielli, Fabio Rondanini, Luca Nano Cavina e Tommaso Colliva, num projecto musical que revisita as intensas bandas-sonoras dos policiais dos anos 60 e 70 do século passado, num ponto de partida de fusão de vários estilos nomeadamente o funk, rock, jazz e groove, continuando o resto da noite com o DJ Makosa.
A Festa prosseguirá depois para as restantes cidades que a acolhem nomeadamente Coimbra de 2 a 5 de Abril, para o Porto entre 4 e 7 de Abril, Funchal de 11 a 14 de Abril, Loulé de 19 a 21 de Abril e finalmente de 6 a 9 de Junho extra-fronteiras para Luanda em Angola.
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quarta-feira, 27 de março de 2013

I Primi della Lista (2011)

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I Primi della Lista de Roan Johnson, que também escreveu o argumento em parceria com Davide Lantieri e Renzo Lulli (um dos intervenientes dos quais esta história fala), conta-nos os acontecimentos ocorridos em 1970 quando três jovens italianos convencidos que Itália estava prestes a sofrer um golpe de Estado decidiram pôr-se a caminho de uma nova vida, e é mais um dos filmes presentes na secção competitiva da 6ª edição da Festa do Cinema Italiano de Lisboa a decorrer no Cinema São Jorge.
Depois das manifestações estudantis em Itália em 1970, que representavam um claro desejo de mudança na sociedade, o país encontrava-se dividido entre os sonhos daqueles que ainda acreditavam nessa mesma mudança e outros que pensavam que no país poderia rebentar um conflito interno que o lançasse no caos.
É a Pisa que chega a notícia de que esse golpe de Estado, semelhante ao que ocorrera na Grécia em 1967, está iminente e que faz Pino Masi (Claudio Santamaria), um cantor resistente alvo de uma difícil e conturbada juventude, temer o pior, e decide partilhar os seus conhecimentos com Renzo Lulli (Francesco Turbanti) e com Fabio Gismondi (Paolo Cioni), dois jovens estudantes que o encaram como uma lenda viva com quem têm o privilégio de conviver, e que os convence a fugir no carro de um deles para, no estrangeiro, poderem cantar sobre as injustiças sentidas em Itália.
Quando se metem a caminho rumo à sua suposta liberdade, páram num bar de estrada onde encontram um elevado número de militares que afirmam estar a caminho de Roma. Receosos de que este fosse realmente o início do tão falado golpe, esquecem que no dia seguinte será o 2 de Junho, festa da República, para o qual os militares se dirigem. Entram em pânico e rumam à fronteira que pretendem desesperadamente atravessar para a Jugoslávia acabando, no entanto, a atravessá-la de forma abusiva e sem autorização mas... para a Áustria, e é aí que deparados com um interrogatório da polícia percebem que não existiu nenhum golpe e que estão numa complicada situação judicial e diplomática que coloca a sua própria amizade à prova.
Este filme foi anunciado como uma história quase irreal, e foi interessante verificar como os problemas que nunca chegaram a ser saldados numa sociedade podem, mais tarde, assumir-se como aqueles que a podem fragmentar separando toda uma população ou até mesmo criar velhos demónios que teimam em ressurgir, sejam ou não, também eles, reais. O fantasma da ditadura que iria novamente reprimir toda a população italiana, aliada ao facto da mesma viver há largos anos com um conjunto de factores que provocavam uma incessante instabilidade política, criaram naquele conjunto de jovens um sentimento de que o seu país estaria, uma vez mais, prestes a cair num jogo político pouco claro que ameaçaria não só as suas tímidas liberdades como também os medos de uma violência sobre aqueles que ousassem desafiá-lo.
No fundo, tanto na altura como até hoje, muitas são as semelhanças e as comparações que podem aqui ser estabelecidas e que mostram, uma vez mais, que a sociedade não saldou os seus conflitos com o passado tendo ultrapassado sem os resolver, e para isto basta considerarmos o impasse que o país tem vivido nos últimos anos e muito concretamente agora onde o próprio governo (ou a sua inexistência) ameaçam a tranquilidade do mesmo e onde esses mesmos fantasmas em tempos sentidos, voltam a dar um ar de sua graça.
Curiosa está também a relação entre as três personagens principais, "Pino", "Renzo" e "Fabio", onde o primeiro assume desde o início uma postura forte e determinada típica de um líder que motiva os seus seguidores a enveredarem pelo seu caminho, mas que devido a uma confusão e medo de um futuro incerto se mostra como uma pessoa frágil, também ele incerto e inseguro que apenas pretendia ocupar um seu próprio e seguro lugar num mundo que aos poucos sente como ameaçado. Uma brilhante interpretação de Claudio Santamaria como "Pino Masi" que o transforma na força motora de toda a acção, num filme que não sendo grande em domínios históricos consegue, ainda assim, ser uma interessante obra que deve ser colocada em perspectiva do tempo que representa.
Simbólico está ainda o segmento final no qual os três amigos tocam frente à instituição que os manteve detidos até ao esclarecimento definitivo da sua situação, numa reflexão que pode ser interpretada sobre a Itália da época, da sua sociedade e principalmente de uma ideia sobre o futuro que estava então bloqueado face às incertezas que se faziam sentir, bem como a inserção dos verdadeiros homens que aqueles três actores interpretam que, sem desempenhos ou palavras, consegue ser um momento emocionante.
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"Pino: Noi siamo i primi della lista... musicisti, scrittori, intellettuali."
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7 / 10
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terça-feira, 26 de março de 2013

La Leggenda di Kaspar Hauser (2012)

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La Leggenda di Kaspar Hauser de Davide Manuli presente na secção Altre Visioni dedicada a um cinema mais experimental e alternativo desta 6ª edição da Festa do Cinema Italiano de Lisboa foi a mais improvável e agradável surpresa do ano.
O trailer já fazia antever um filme bastante diferente onde a palavra "alternativo" se adequava na perfeição, e a apresentação feita por Stefano Savio, o director da festa, quando nos deseja uma "boa experiência", foi no mínimo uma preparação (tímida) para aquilo que estava prestes a assistir.
O argumento, ou se melhor lhe quisermos chamar de linha condutora (a haver uma) deste filme, foi também ele escrito por Davide Manuli, inspirado na figura de Kaspar Hauser, um jovem abandonado na Alemanha do século XIX que, segundo dizem as lendas, estava ligado à família real de Baden e que teria alegadamente passado boa parte da sua jovem vida aprisionado e afastado de qualquer contacto com outras pessoas o que, em última análise, o teria impossibilitado de desenvolver uma comunicação verbal clara e explícita, até à sua prematura morte e que o levou a ser considerado como o "filho da Europa".
Esta falta de comunicabilidade é o ponto de ligação entre este Kaspar Hauser do século XIX com o que Davide Manuli aqui pretende recriar. O filme inicia como uma breve referência introdutória a este filme e associa a chegada do "nosso" Kaspar como ao regresso de um Messias há muito esperado, e todo o relato que a seguir nos espera está, para os mais atentos, repleto de sinais que o indiciam como o Jesus que tantos esperam.
Estamos numa praia desabitada algures no Mediterrâneo, numa época imprecisa mas que adivinha ser um período no qual a Humanidade vive uma qualquer provação e escassez de valores que a faz esperar por uma estranha salvação.
Esta pequena e peculiar localidade tem um conjunto muito restrito de habitantes (pelo menos aqueles que nos são apresentados), dos quais fazem parte um xerife DJ (Vincent Gallo) que é o primeiro elo de ligação de Kaspar Hauser (Silvia Calderoni) com a comunidade, Pusher (também Vincent Gallo) um assassino contratado para os trabalhos sujos e amante da Duquesa (Claudia Gerini) que controla com pulso de ferro essa mesma comunidade e que vê em Hauser a única ameaça ao seu poderio. Um padre (Fabrizio Gifuni) que se rende à chegada do Salvador e ainda uma psíquica/prostitua (Elisa Sednaoui) que aos poucos se mescla com Hauser, numa evidente ligação à relação Jesus Cristo - Maria Madalena. A finalizar esta peculiar população temos ainda um emissário da Duquesa naquela que é uma das mais bizarras personagens de todo o filme e um silencioso homem que usa a sua mula para transporte dos mesmos quando necessário.
É então a chegada deste Messias que preocupa o poder dominante naquele pequena e perdida localidade onde aparentemente nada acontece e os poderes instituídos estão assumidamente garantidos por uma Duquesa que, não querendo perder este controlo dos demais, inicia uma investigação cerrada a este estranho forasteiro que (in)conscientemente a ameaça, e com a ajuda de Pusher decide como se libertar de tão perigoso inimigo.
É então que, Kaspar Hauser, numa comunidade sem qualquer referência ou aparente liberdade consegue, sem uma comunicação verbal dita convencional, estabelecer um diálogo que através do poder da música, das emoções e dos sentidos que esta exalta, comunicar com todos os demais libertando-os assim do poder estabelecido pelo vazio e ausência que outrora havia encontrado.
De facto, e como referia o director do festival, este filme é mesmo uma experiência e deve ser encarado como tal. Aparentemente uma história surreal num ambiente fora do normal possuímos de imediato uma premissa sobre a qual vale a pena reflectir que se prende com o facto de se centrar toda a acção num local isolado longe de tudo e todos que tem como uma consequência directa a desolação do próprio espaço. Tudo o que de pouco nos rodeia indica que aquele lugar, outrora habitado, está agora perdido no tempo e no espaço onde apenas um conjunto de "alegres" sobreviventes se decidiu refugiar. Não existe qualquer sinal de vida para além das já referidas personagens sendo que, no entanto, temos algumas leves referências a um maior conjunto populacional que, na prática, nunca chegamos a ver.
Manuli vai mais longe ao conseguir estabelecer a única forma de comunicação aparentemente viável junto de uma população que não consegue comunicar entre si. Do pouco que retemos desta comunidade, o único factor assumidamente correcto é que a dificuldade de comunicação entre a mesma é quase uma impossibilidade, e é através dessa mesma impossibilidade que alguns poucos prosperam através de um sistemático controle até então não questionado.
"Kaspar Hauser" chega assim a uma comunidade que espera desesperadamente por aquele que irá trazer uma qualquer libertação desse mesmo poder. Assim, num local onde comunicar é impossível qual a melhor forma de um DJ chegar àqueles que "O" esperam? Somente pela música, essa forma de comunicar que não precisando de qualquer palavra consegue transmitir um conjunto múltiplo de sensações, emoções e libertação jamais conseguido através de qualquer outra forma de comunicação, menos ainda quando essa é verbal. E é esta mesma libertação que ameaça um poder instituído da "Duquesa" que se sente assim enfraquecida, tendo então como único objectivo tornar "Hauser" num charlatão, sendo assim repudiado pelos demais, e nunca num idiota que originaria a simpatia e a piedade dos mesmos. Primeiro há que colocar na lama o nome de um indivíduo e só depois, quando já não reunir o apoio popular, o poderá eliminar definitivamente.
Continuamente, o argumento de Manuli vai mais longe ao criar claras referências históricas e bíblicas entre Kaspar Hauser e Jesus, que são evidentes ao longo do filme. Começando pela própria forma com que Hauser aparece no filme... através do mar sendo que, não andando sobre ele, torna-o no entanto o elo de ligação ao Messias de há dois mil anos. Temos ainda a nova ligação presente no momento em que "Hauser" balouça e tem o primeiro contacto com o "Padre".... Se estivermos atentos reparamos que além dos phones que sempre o acompanham, Hauser tem ainda uma espécie coroa na cabeça e é tratado pelo Padre com um devido respeito e admiração que o caracterizam como "O" salvador dos Homens.
Finalmente num dos longos segmentos de música temos um "Kaspar Hauser" e a "Psíquica/Prostituta" cujas sedutoras imagens quase se (con)fundem numa alusão que poderá ser comparada à união (nunca confirmada) de Jesus com Maria Madalena, e mesmo a morte de Hauser através de um tiro no peito poderá ser comparada à de Jesus Cristo na cruz com a lança no mesmo local.
Davide Manuli cria um claro espectáculo visual que tem tanto de surreal e avant-garde como de político e social. Se por um lado temos uma extravagante e desconcertante história com personagens bizarras e descontextualizadas de uma sociedade tal como a conhecemos, não é menos verdade que as mesmas são retratos de vários poderes instalados que, bem analisados, tão bem conhecemos e revemos ao longo dos tempos e que em certa medida explicam (não justificando) o porquê deste filme estar ainda por estrear numa sociedade vaticanizada como é a italiana na qual este filme tem a sua origem. Além de não ser um conto tradicional e convencional, temos ainda aquele que poderá ser o mais polémico de todos os aspectos que se prende com o facto do nosso Kaspar Hauser (ou Jesus) ser aqui interpretado por Silvia Calderoni... uma mulher. Da água nasce vida... da muher nasce vida. Mas, no entanto, todos nós sabemos pelas regras e normais instituídas que Jesus foi um homem. Assim até que ponto poderá ter este filme uma vida, por muito curta que seja, num país que vive repleto de dogmas e certezas religiosas como Itália?
As interpretações têm tanto de bizarro como de importante na composição deste filme, sendo que são de destacar as de Vincent Gallo que aqui tanto se assume como o "xerife DJ" como "Pusher", estando assim nos dois lados da história contribuindo de forma inegável para ambas, não deixando de referir que tem um dos momentos mais bem conseguidos do filme quando, logo no seu início, nos entrega um duelo de dança numa praça central completamente desertificada.
De destacar ainda a "Duquesa" ultra-sensual dominatrix que a composição de uma assumida leading lady do cinema italiano Claudia Gerini compõe, e que um pouco mais desenvolvida seria certamente considerada uma das vilãs do ano. E finalmente Silvia Calderoni que entrega um(a) "Kaspar Hauser" tão alucinado como os demais mas, pensando bem, num mundo onde a ordem e o sentido parecem não existir, um Messias só poderia ser de igual calibre.
E se a nível de composição este filme vence pela excentricidade e pelo surrealismo apresentado, é também verdade que a nível técnico é um claro e evidente vencedor. Não só pela brilhante e enigmática fotografia de Tarek Ben Abdallah que transforma toda a paisagem da Sardegna, onde decorreram as filmagens, num ambiente desertificado, rude e bruto típico de cenários apocalipticos, onde apenas personagens de idêntico calibre conseguem (sobre)viver, como também a banda-sonora da Vitalic o transformam numa experiência quase sensorial que não só nos hipnotiza como seduz fazendo-nos por breves momentos deixar levar o nosso corpo e mente para um qualquer patamar que tem tanto de estranho como ao mesmo tempo de apelativo.
No final, depois de tudo decorrido, sabemos realmente que atravessámos uma experiência diferente, bastante alternativa, mas há qual não ficamos em nada indiferentes e mesmo que alguns teimem em dizer que não, o que é certo é que este filme consegue estanhamente seduzir-nos e cativar-nos pela sua excêntrica originalidade tornando-se assim numa clara referência que, infelizmente, poucos irão ver. Felizes daqueles que conseguirem ter a oportunidade.
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8 / 10
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segunda-feira, 25 de março de 2013

Io Sono Li (2011)

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Io Sono Li de Andrea Segre e a sua primeira longa-metragem de ficção que no passado ano venceu não só o David da Academia Italiana de Cinema de Melhor Actriz como também o prestigiado prémio LUX atribuído pelo Parlamento Europeu, é mais um dos filmes presentes na secção competitiva da 6ª edição da Festa do Cinema Italiano.
Shun Li (Zhao Tao) é uma imigrante chinesa em Itália que trabalha numa fábrica têxtil nos arredores de Roma com o objectivo de pagar não só as suas dívidas como também de trazer para o país o seu filho de outo anos. Sujeita aos caprichos dos seus patrões, Shun Li é informada que tem de viajar para a pequena cidade de Chioggia onde irá trabalhar num café propriedade dos seus patrões.
É neste local, ponto de encontro de alguns dos residentes da pequena cidade, que Shun Li conhece Bepi (Rade Serbedzija), um pescador de origem eslava residente em Itália há décadas, a quem todos carinhosamente chamam de "Poeta", e é com ele que estabelece uma invulgar amizade que os dois sentem como genuína por perceberem bem a condição um do outro enquanto imigrantes num país que não é o seu.
No entanto, enquanto esta amizade lhes garante um conforto há muito não sentido, começa também a provocar os seus incómodos não só na própria comunidade chinesa que havia alertado Shun Li a não estabelecer qualquer proximidade com nenhum italiano, como também na própria comunidade de Chioggia que considera esta amizade inapropriada para os costumes mais conservadores da mesma.
Andrea Segre que aqui se estreia na ficção, não perdendo no entanto o registo documental que esta obra tem e que podemos constatar através das pequenas reflexões sobre a vida e o espaço feitas pelas narrações de "Shun Li" bem como pela forma como as imagens exactas são captadas ao longo desta história, escreveu também este argumento em parceria com Marco Pettenello, e ambos deram origem a uma simples mas poética história que reflecte sobre as experiências de vida daqueles que se encontram afastados do seu espaço natural ao mesmo tempo que abre portas para um entendimento sobre todas aquelas pequenas questões que estão invariavelmente ligadas a um novo início como a solidão sentida, as pessoas que se conhecem e os potenciais elos que se criam a elas como também ao espaço que, podendo ser radicalmente diferente daquele de origem, consegue normalmente criar pontos de referência com os quais cada um se identifica. A manutenção de costumes antigos e a abertura aos novos modelos de vida existentes no local que se escolheu para esse novo caminho sendo que, não estando só presentes os aspectos mais positivos, há que também equacionar os entraves e dificuldades colocadas a um estrangeiro de uma cultura tão distinta como a chinesa da europeia.
Acima de uma qualquer história romântica, que não o é, este filme é um belo poema contado através de imagens sobre o poder da amizade. A amizade verdadeira. E a forma como ela se pode manifestar em primeiro lugar por aqueles que, como nós, se encontram afastados do seu lugar natural e com os quais estabelecemos uma inicial e espontânea ligação pois por muito adaptados a um local que se esteja, apenas um estrangeiro pode identificar as fraquezas de outro num espaço que não lhe é natural como aqui é estabelecido através da relação criada entre "Shun Li" e "Bepi", e finalmente a forma como essa mesma amizade se pode manifestar de forma silenciosa pois para praticarmos o maior acto de auxílio não precisamos necessariamente de o dar a conhecer ao mundo, facto que é também aqui retratado no pequeno grande gesto que une de forma inequívoca "Lian" (Yuan Wang) a "Shun Li" que, não tendo uma amizade declarada e expressa (pelo menos não para o espectador), acabam por criar um elo mais forte do que imaginado quando a primeira trata da chegada do filho de "Li" que agora vê finalmente o seu desejo concretizado.
A amizade, que é essencialmente o que vemos celebrar neste filme, é aqui magnificamente retrada através das duas inspiradas interpretações principais, nas quais os pequenos gestos e os pequenos rituais que vão aproximando dois indivíduos acabam por se tornar a fonte de uma vida adormecida pela qual ambos passavam. A pesca tradicional e o mar primeiramente seguidos da poesia como forma de expressar os mais nobres pensamentos pela palavra, transformam-se assim nas mais puras formas de ligação entre os Homens que através deles encontram não só a comunicação como a identidade que os faz encontrar o seu lugar de pertença.
Finalmente uma breve referência não só à fotografia de Luca Bigazzi que transforma esta pequena comunidade num local muito particular e aparentemente isolado de todo um restante mundo, como também para a sensível e sentida banda-sonora de Pascal Couturier nomeada para o European Film Award, que é de uma sensibilidade intensa que expressa na perfeição os sentimentos e os momentos particulares de cada uma destas igualmente poéticas personagens. Um filme a não perder.
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7 / 10
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domingo, 24 de março de 2013

Una Famiglia Perfetta (2012)

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Uma Família Perfeita de Paolo Genovese é uma inteligente comédia trágica italiana que passou pela 6ª edição da Festa do Cinema Italiano de Lisboa no cinema São Jorge, numa adaptação de Genovese em parceria com Marco Alessi e Luca Miniero da obra original de Fernando León de Aranoa.
Tudo se desenrola durante as celebrações natalícias na casa de Leone (Sergio Castellitto), um homem rico e poderoso que tem os seus próprios planos para as festividades na companhia da família na casa da Umbria. Leone é um homem solitário e a família que tem... não passa de um conjunto de actores que contratou para representar e recriar a família que nunca constituiu e assim garantir uma época animada. Para além de Leone, serão Carmen (Claudia Gerini), Fortunato (Marco Giallini), Sole (Carolina Crescentini), Luna (Eugenia Costantini), Pietro (Eugenio Franceschini), Rosa (Ilaria Occhini), Daniele (Giacomo Nasta) e Angelo (Lorenzo Zurzolo), os verdadeiros intervenientes desta alternativa celebração de Natal que irá finalmente revelar a verdadeira essência de cada um deles e aquilo que representam para os seus colegas.
Ao longo daquelas largas horas ficamos a conhecer muito mais do que esperávamos e percebemos que alguns destes indivíduos não são assim tão desconhecidos de Leone, e que as próprias relações entre o conjunto de actores que trabalha habitualmente nos mesmos projectos estão, também elas, ameaçadas não só pelo que se passa naquela casa como principalmente por anos de convivência e um elevado conjunto de sentimentos e emoções reprimidas que encontram, nesta situação, o momento perfeito para serem finalmente reveladas.
Esta história consegue captar um aspecto bastante interessante pois ao ser revelado que aquelas personagens não são na "prática" uma família, ficamos no entanto a perceber e a reconhecer que as reuniões de família são exactamente o que ali está retratado. As ocasionais zangas e as reconciliações sentimentais e amorosas bem como um sentimento de dever cumprido que se conquista mesmo com os ocasionais aborrecimentos que fazem parte das festividades.Os presentes, ainda que simbólicos, que representam a atenção que temos para com os demais e o tempo que lhes dedicámos a escolher aquilo que sabemos ir deixá-lo contente e principalmente a confusão, muita confusão de preferência, que acabam por alegrar de forma indiscutível toda uma época que pode ser só por si já bastante (in)tensa.
Neste filme temos assim um pouco de tudo e percebemos que não só nos identificamos à nossa própria maneira com aquilo que vemos como também acabamos por pensar que fazemos parte daquela família inventada com quem trocamos um conjunto bem animado de gargalhadas. Não é perfeição que procuramos mas sim aquele lugar especial ao qual percebemos também poder pertencer e que esta tão peculiar casa da Umbria parece tão bem "encarnar".
Castellitto, Gerini e Giallini são uma tripla protagonista perfeita que faz facilmente transparecer a química existente entre si deixando-nos uma boa parte do tempo incertos sobre o desfecho da relação entre ambos. Se Gerini e Giallini são um casal de actores quando o filme começa, certo é que quando percebemos que entre Gerini e Castellitto já existiu uma relação largos anos antes, torna-se complicado perceber se essa mesma relação não irá novamente florescer. Muito dinâmica é também a dupla Eugenio Franceschini e Eugenia Costantini como a dupla de irmãos que... não o são, e deixam uma visitante "Alicia" (Francesca Neri), num  perfeito estado de nervos e alucinação. Todo o elenco funciona de uma forma coesa e muito ritmada que não nos dão um minuto de descanso com o seu aceso e bem disposto ambiente familiar.
Com um conjunto de segmentos emotivos que ora chamam pela lágrima num claro retrato da solidão que se sente mesmo estando acompanhado de tantas pessoas, como também temos uma comédia bem ritmada, este filme consegue por diversas situações criar uma empatia total com o público que não se inibe de rir e sorrir com o seu bom e inteligente humor, e funciona não só pelo seu argumento como principalmente pelo conjunto notável de actores que lhe cor e muita vida.
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7 / 10
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Gli Equilibristi (2012)

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Os Equilibristas de Ivano De Matteo presente na secção competitiva da 6ª edição da Festa do Cinema Italiano de Lisboa, foi anunciado por Stefano Savio, director da Festa, como "um dos grandes filmes italianos do último ano ao qual poucas pessoas prestaram atenção". Se em Itália poucos deram conta que este filme estrou não posso saber... mas que este é decididamente um dos grandes filmes do ano... não tenho a menor das dúvidas.
O riquíssimo e muito actual argumento escrito por De Matteo e Valentina Ferlan apresenta-nos logo de início um momento mais intimo e de claro desejo que só mais tarde iremos perceber como se explica. Aos poucos conhecemos Giulio (Valerio Mastandrea) e Elena (Barbara Bobulova), um casal pais de Camilla (Rosabell Laurenti Sellers) e Luca (Lupo De Matteo), que vivem uma aparentemente normal existência típica de uma família moderna. No entanto, aos poucos sentimos que existe um presente mal-estar que atormenta Elena, e que ela está prestes a ceder à pressão que sente.
É então que os instantes iniciais deste filme nos mostram o porquê dessa pressão e como ela está a afectar a vida de um casal que tem no seu seio a traição momentânea, mas determinante, de Giulio e como esta pode terminar definitivamente o conceito de família como até então o conheceram.
Para bem da família e como a última esperança de que esta venha um dia a recompôr-se, Giulio sai de casa e inicia um processo de estabilização. Primeiro em casa de um amigo, depois pelo processo de alugar a sua nova casa passando pelas dormidas em pensões sempre duvidosas pois são as únicas para as quais ainda consegue ter dinheiro. O segundo trabalho, o dinheiro para os filhos quer para a escola quer para as suas saídas e divertimentos, as dormidas no carro e finalmente a única fuga que vê como possível para pôr um final ao seu desespero.
Tendo como ponto de partida a traição matrimonial cometida por "Giulio", este filme vai muito para além deste assumidamente problemático encontro sexual. Aqui o que realmente está em causa é toda uma sobrevivência pós-traição que lança este homem para o início de uma segunda vida onde já tem, obviamente, todo o peso das responsabilidades que ao longo dos anos foi construindo, nomeadamente a existência de dois filhos que tem de sustentar. É neste exacto momento que transporta-nos para o nosso subconsciente a noção e o sentido do próprio título deste filme, Os Equilibristas que, face a um mundo em constante mutação e que não pára ou espera por ninguém, está duro e impiedoso para com aqueles que não o conseguem acompanhar. Um mundo repleto de pessoas normais que vivem numa luta diária para conseguir todos os dias, cada dia, chegar ao final do mês ultrapassando todas as dificuldades económicas que sentem ao longo deste processo e onde as despesas se acumulam e o dinheiro parece não chegar para sobreviver mais um dia, numa procura do equilíbrio que parece nunca chegar.
E é exactamente neste momento em que tudo parece desmoronar num instante, perdendo pouco a pouco não só os seus bens como também o seu conforto, bem-estar e especialmente a sua dignidade que percebemos que a vida de um indivíduo pode, a qualquer momento, transformar-se radicalmente ao ponto de estar ameaçada a sua própria existência tida, até então, como certa. Lançado num mundo real, que já desconhecia, para começar uma vida nova, "Giulio" é um homem perdido no tempo onde a crua realidade sobrepõe-se à sua existência através de novas barreiras com o próprio valor do dinheiro que tem em comparação com os preços daquilo que precisa pagar, dos acessos e dos apoios que existem (muitos dos quais o próprio administrava através do seu trabalho na câmara) que parecem não chegar ou em nada facilitar, ele é no fundo um homem perdido que apenas tem um único caminho a seguir na esperança de que algo (seja o que fôr) mude lá ao fundo, sendo que para lá chegar vai ter obrigatoriamente de conhecer todas as profundezas que uma sociedade que espreita para devorar mais uma vítima desprevenida.
Esta é a verdadeira crise... Aquela que primeiro retira um bem, depois outro... de seguida os apoios e finalmente a dignidade que, uma vez perdida, faz esquecer qualquer réstia de esperança no dia de amanhã que se torna absolutamente irrelevante se irá chegar ou não. É neste exacto momento que o próprio sentido da vida, para aqueles que ainda conservam algo que se assemelhe a uma, deixa de existir e a única escapatória possível será mesmo pôr um fim a uma luta que não dá frutos e a uma vida que parece ser apenas destinada para descer cad vez mais para um fundo que não chega.
E ao ritmo do argumento acompanham-se extraordinárias interpretações. Para quem me conhece começar a falar de Valerio Mastandrea é iniciar um conjunto de elogios que não irão tardar. "Parcial" poderiam muitos dizer mas o que é certo é que Mastandrea consegue simplesmente com um silêncio e um olhar transmitir um conjunto de emoções e arrepios que quase nos cortam o ar que respiramos, pois percebemos que aqueles momentos pelos que o seu "Giulio" passa são, independentemente dos momentos que levam a lá chegar, realidades para qualquer um de nós. Percebemos que o desespero e a imagem de um fim que não chega e que massacra a todos os instantes são efectivamente possíveis de acontecer a um qualquer indivíduo.
A sua interpretação é não só avassaladora como estabelece uma relação próxima com o espectador que o acompanha na sua intensa descida a um inferno desconhecido que percebemos apenas ir ter um único final para o qual queremos uma rápida intervenção... venha de onde vier. Ele sente e reconhece o erro momentâneo (mas fatal) que cometeu com a sua traição. Ele sabe que vai ser difícil para a sua mulher de o esquecer, e tenta com todo o seu esforço e cumprimento das obrigações familiares que nunca param de aparecer, colmatar esse mesmo erro e encontrar uma qualquer redenção que tarda em aparecer, e sabemos que todo aquele suplício (pelo qual tantos e tantos passam como podemos constatar na dura realidade do almoço de Natal) é mais do que castigo para uma pessoa conseguir suportar, e é assim que aos poucos se vai separando dos poucos conhecidos que tem e principalmente da sua família que não quer preocupar com a sua cada vez mais debilitada condição. Mastandrea tem assim um profundamente emotivo desempenho que não deixa ninguém indiferente ao seu sofrimento (e que deixou a sala do São Jorge num absoluto silêncio), ao mesmo tendo que nos obriga a reflectir sobre todas aquelas pessoas que passam anónimas ao nosso lado com os seus problemas que, apesar de escondidos pelos mesmos, são revelados por uma sociedade que não perdoa a mínima falha, e que mostra todas as fraquezas ou incoerências políticas e sociais de apoio a todos aqueles que vão sendo "colhidos".
Impossível não destacar ainda a interpretação de Barbara Bobulova como a mulher ferida e com um próprio caminho individual em que, até então, não havia pensado bem como uma agradável revelação pela parte de uma inspirada Rosabell Laurenti Sellers que interpreta a jovem rebelde mas atenta e preocupada filha de "Giulio" e "Elena" e que, à semelhança de Mastandrea, muito me agradaria ver nomeada ao David da Academia Italiana de Cinema este ano.
Finalmente refiro três factores técnicos mas que são determinantes para a contribuição dramática deste filme. O primeiro sendo a fotografia de Vittorio Omodei Zorini que transforma toda uma quente e vibrante Roma, numa cidade fria e desprovida de sensibilidade, no mais cru e bruto retrato de uma cidade e sociedade que assistem indiferentes às vidas daqueles que por elas vagueiam como se não tivessem (e na prática muitos não têm) um rumo e um caminho para seguir. Onde a dor de um se percebe ser a dor de tantos que a sofrem em silêncio e no escuro, sózinhos no seu próprio problema e na companhia de vários que, como o próprio, foram levados a um lado (in)voluntariamente desconhecido da sociedade da qual lentamente também se vão alienando.
De seguida é de referir a magnífica, assombrosa e emotiva banda-sonora de Francesco Cerasi que tão depressa nos dá um retrato dos tempos áureos vividos em felicidade por aquela família como, instantes depois, nos transporta para um mundo vazio de esperança que consegue muito rapidamente emocionar-nos lançando-nos também numa melancolia pela realidade vivida por aquele homem, e finalmente a própria caracterização que transforma de momento a momento, o "Giulio" de Mastandrea num homem que atinge rapidamente não só os seus próprios limites como também os limites de uma degradação humana que desconhecia.
Os Equilibristas é não só o melhor filme desta 6ª edição da Festa do Cinema Italiano (e o qual assumo esperar ver premiado) como também, seguramente, um dos melhores filmes estreados este ano numa sala de cinema... seja através de um festival seja comercialmente. Este é um daqueles filmes que tem obrigatoriamente de ser visto e que transforma definitivamente Mastandrea como um dos actores do momento.
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sábado, 23 de março de 2013

È Stato il Figlio (2012)

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È Stato il Figlio de Daniele Ciprì foi o filme que fechou o meu segundo dia da 6ª edição da Festa do Cinema Italiano naquela que é uma ora cómica ora trágica e emotiva história sobre uma peculiar família siciliana, num argumento escrito a três mãos pelo próprio Ciprì, Massimo Gaudioso e com a colaboração de Miriam Rizzo.
Contada num dia igual a tantos outros num tempo futuro a partir do interior de um departamento postal onde Busu (Alfredo Castro), um homem aparentemente desgastado pelos anos e pela vida, tenta colmatar os seus dias de isolamento e solidão a contar a história da família Ciraulo àqueles que a querem conhecer, como se dela tivesse feito parte. A família Ciraulo é composta por seis pessoas. Nicola (Toni Servillo) o chefe de família, Loredana (Giselda Volodi) a mãe, Tancredi (Fabrizio Falco) o filho mais velho, Serenella (Alessia Zammitti), Fonzio (Benedetto Raneli) o avô e Rosa (Aurora Quattrocchi) a avó, estes últimos pais de Nicola e todos a viver na periferia de Palermo, na Sicília.
Nicola é o único grande sustento da família e para todos trabalha vendendo ferro velho de um navio abandonado no porto, numa vida dura e sem grandes objectivos ou ideais de sonhos, mas que de forma geral é pacífica e sem grandes problemas. Depois de um dia de praia com os vizinhos, o único entretenimento que ainda podem pagar, Serenella é baleada ao encontrar-se no meio de uma luta de bandos rivais e acaba por falecer. Após um duro e inesperado luto, um dos seus vizinhos sugere a Nicola que se faça valer do subsidio estatel para as vítimas da mafia, e conseguir dessa forma um maior sustento para a sua família, não deixando desta forma que a morte de Serenella passe completamente despercebida, e garantindo assim que a família possa viver com algum maior conforto e segurança, facto que os leva a contrair um elevado número de despesas e endividamento prematuros, acabando por cair nas mãos de um usuário.
Quando o dinheiro finalmente chega e as dívidas são colmatadas, apenas permanece o impasse sobre o que fazer com o restante, facto que Nicola resolve com a compra de um Mercedes que irá impressionar a vizinhança mas que, ao mesmo tempo, será o último teste a esta peculiar família e que irá definitivamente marcar os seus destinos.
Sem revelar muito mais desta história, pois a verdadeira surpresa encontra-se perto do final quando percebemos o que realmente sucedeu no seu todo, a única coisa que posso adiantar é que se este filme conservou um registo próximo da comédia a maior parte da sua duração, é nos últimos quinze minutos que percebemos o quão longe vai todo o seu potencial dramático e esquecemos de imediato todas as gargalhadas que esta tão característica família siciliana nos conseguiu provocar. Se por um lado assistimos a uma família numerosa que apenas tenta (sobre)viver num bairro que além de problemático pela sua pobreza generalizada, é também ele vítima de alguns ajustes de contas que ali são efectuados longe dos olhares mais "citadinos", é também verdade que quando a oportunidade aparece, estas mesmas pessoas tudo farão para manter um certo estatuto (ou o se ideal) que agora parece poder abrir um conjunto de portas e de momentos que, até então, seriam apenas o fruto de uma imaginação ou sonho distante.
Todo o pouco cenário que nos é dado a conhecer do ambiente em que se encontram. assemelha-se muito de perto a um mundo que terminou ou que está prestes a terminar. Praias desertas, um bairro onde reside apenas uma população pobre e a constante presença de duas enigmáticas figuras encarnadas por um homem idoso que assiste ao desenrolar dos acontecimentos sem que alguém dê pela sua presença, bem como uma criança que pretende brincar com as demais mas que é sistematicamente, também ela, ignorada e deixada sózinha dia após dia. Não nos encontramos junto de um cenário fim de mundo na essência de ter existido um qualquer apocalipse que tenha exterminada a população e a vida tal como a conhecemos. Aqui o apocalipse é aquele proveniente da misérias, da falta de sonhos e de objectivos, de recursos para poder evoluir no estilo de vida e na forma como encaramos o exterior e aquilo que existe para além de uma qualquer concepção de vida que, desde nascença, foram obrigados a aceitar como sendo a única possível de vir a "ter". Este apocalipse que é a miséria, que não tem tempo, local ou acontecimento per si, vai aos poucos consumindo todos aqueles por onde passa sem que os próprios percebam que ele chegou mas, no entanto, os seus efeitos são notórios e uma vez lá todos o aceitam como sendo "normal", nunca o questionando ou tentando perceber como se encontraram no seu centro.
Depois de vermos este filme não poderíamos esperar outro que não Toni Servillo para dar vida a um maior que a própria, como é "Nicola". Bruto e rude uma boa parte do tempo, "Nicola" não é um homem com um fundo mau ou violento, ele é sim o fruto de uma condição que sempre conheceu. Sem grandes esperanças e desde cedo habituado a tratar da sua família de nascimento e daquela que ele próprio constituiu, não havia espaço para pensar em certas condições sentimentais ou de afecto que seriam, imediatamente, consideradas como excessivas. Excessos esses que ele próprio comete quando antevê para si um futuro melhor, ou pelo menos com algo com o qual ele nunca se atreveu a sonhar mas que agora possui, colocando assim em causa toda a sua continuidade.
Ainda com a participação de Giselda Volodi como a mãe encarregue de ser o único, mas tímido, suporte afectivo deste filme e uma Aurora Quattrocchi como a por vezes submissa por vezes autoritária avó "Rosa", o elenco completa-se com um "Tancredi" composto por Fabrizio Falco que através dos seus silêncios e olhares perturbadores como se revelassem que por dentro vive um desespero angustiante mas que tenta, através do seu apego a pequenas coisas e momentos, preservar a última réstia de Humanidade que consegue encontrar em si, demonstrando que por muita miséria que possa existir à sua volta ele não está a ela vinculado e, como tal, não precisa de a contemplar.
Tal como a belíssima e trágica mensagem que este argumento nos pretende transmitir, também este filme e as suas personagens igualmente trágicas serão intemporais pois representar nos vários momentos da História e das histórias, um pouco daquilo que a própria raça humana deixa... fragmentos, momentos e uma vontade quase sempre escondida de poder contemplar aquilo que está para além do horizonte que nos é "permitido" ver.
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8 / 10
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A.C.A.B.: All Cops Are Bastards (2012)

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A.C.A.B.: All Cops Are Bastards de Stefano Sollima, que aqui assina a sua primeira longa-metragem além do argumento em parceria com Daniele Cesarano, Barbara Petronio e Leonardo Valenti, e que se baseia na obra homónima da autoria de Carlo Bonini, foi o filme escolhido para dar início à secção competitiva da 6ª edição da Festa de Cinema Italiano de Lisboa.
ACAB, que numa tradução literal seria algo como "todos os polícias são cabrões", num revivalismo do slogan skinhead inglês dos anos setenta do século passado importado para a actualidade como uma clara referência à guerrilha nas cidades, nas estradas e nos estádios, é uma história baseada em factos reais sobre as vivências profissionais e pessoais de um conjunto de polícias de intervenção.
Cobra (Pierfrancesco Favino), Negro (Filippo Nigro) e Mazinga (Marco Giallini) são os veteranos líderes de um grupo de polícias de intervenção que para além de parceiros se consideram como irmãos, apoiando-se e defendendo-se tanto na profissão como nas suas respectivas vidas pessoais e vivem em ambas as realidades uma constante violência não conseguindo distanciar-se dos problemas que vivem diariamente da sua vida pessoal que sai invariavelmente afectada quebrando todo o tipo de laços afectivos e sentimentais que podem ser criados.
É a este universo que chega Adriano (Domenico Diele), um jovem recruta que se junta à polícia de intervenção como forma de obter mais algum rendimento para compensar as perdas económicas que a família tem sentido, e assim possibilitar um mais confortável nível de vida. Numa sociedade que se encontra à beira da ruptura e onde a violência e a agressão são as palavras de ordem, este jovem idealista e defensor das regras, da ordem e da lei encontra-se num caminho ambíguo e onde terá urgentemente de escolher qual o rumo a seguir. Se aquele pelo qual os seus valores e ideais apontam ou se outro onde irá defender a sua nova "família" independentemente daquilo que a sua consciência ditar.
Tendo como pano de fundo alguns dos acontecimentos mais marcantes da vida social italiana dos últimos anos, passando pela cimeira do G8 em Génova até à morte de Gabriele Sandri (a quem o filme é aliás dedicado) um adepto da Lazio, este filme ultrapassa a "simples" vivência deste conjunto de homens. Além de se manter como um relato da sua difícil profissão, o aspecto mais brilhante deste argumento é enquadrar a vida destes homens junto de uma sociedade que está moralmente desgastada, oca e vazia de qualquer tipo de referências. Se po rum lado temos estes homens que arriscam diariamente a vida num variado conjunto de situações que passam pela violência em estádios de futebol junto das claques enraivecidas, ou até mesmo junto de manifestantes que podem agredi-los, não deixa também de ser verdade que, muitos deles, estão já também programados para uma excessiva violência "vítimas" daquilo que a própria sociedade lhes imputou.
Não que sirva como total justificação, pelo contrário explica os "porquês" mas não os valida com isso, percebemos que muitos destes homens vivem num país que os encara como a força bruta lançada para as trincheiras quando as situações se complicam mas, em contrapartida, em vez de os valorizar essa mesma lei que se serve deles, acaba por lhes retirar muito daquilo que é seu património (imóvel, familiar (...)) não reconhecendo que a sua vida está diariamente posta em risco e que esse nunca lhes é reconhecido. É aqui que entram em jogo as suas frustrações pessoais... famílias desfeitas, bens que nunca chegam mas são atribuídos a estrangeiros que vilanizam toda uma sociedade "justificando" assim a inserção de muitos junto de grupos extremistas de direita que já por si são adeptos de uma violência radical quase desumana, num ciclo bola-de-neve que parece não ter fim.
Favino, Nigro e Giallini são magníficos enquanto personificação de uma velha guarda fechada em torno de si mesma e adepta de ideais extremistas pró-fascistas onde geralmente tudo o que é novo está impossibilitado de entrar, não sendo nunca questionados e com a sua própria noção de lei. Quase a funcionarem como um so, Favino encarna a força pensante, aquele que coordena os acontecimentos e que age por impulso mas com certezas. Nigro é exímio como o homem impulsivo que apenas se deixa prender às suas próprias certezas, mas que quando as perde se vê imediatamente desamparado e só demonstrando uma perfeição interpretativa quando tem em mãos a personagem ideal, e Giallini é a personificação do homem que em tempos teve tudo quanto ambicionou mas que, de um momento para o outro, se vê atraiçoado pelos seus próprios ideais.
Mas os três não estariam completos sem a força de mudança e aquela que, de uma ou outra forma, os acabaria por fazer tremer, e Domenico Diele é essa força. Bruto e com as suas próprias incertezas e frustrações que o deixam em muitos momentos num limbo, ele encarna a força moral que se encontra perdida. Uma espécie de luz ao fundo do túnel que está sempre presente para alertar que independentemente daquilo que achamos de uma sociedade, por vezes tão injusta, tem de estar sempre (sem qualquer excepção) regido por um conjunto de leis que a regulam. Ou isso ou um vazio de poder estaria de imediato presente na sociedade permitindo a todos fazerem o que dela entendessem.
Com uma intensa e enérgica (tanto quanto a acção) banda-sonora da autoria de Mokadelic que sabe exponenciar toda a adrenalina que constantemente se faz sentir e uma exímia fotografia de Paolo Carnera nomeada ao Donatello da Academia Italiana de Cinema que nos transporta para todos os lugares onde a acção decorre quase como se estivessemos presentes nos mesmos, este filme é intenso, duro, cru e com quota parte de violência quer física, verbal e até mesmo psicológica que, sendo imparcial e mostrando-nos portanto os dois lados da mesma história (e das mesmas personagens), nos permite acesso ao principal, ou seja, perceber os passados de cada um, os porquês do rumo de vida que levaram e as opções que em tempos tomaram e que os levaram ao sítio onde agora se encontram.
Uma intensa primeira-obra que deixa a fasquia, e a expectativa, bem elevada para o próximo trabalho de Sollima mas que o afirma como um cineasta em observação para o futuro.
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9 / 10
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sexta-feira, 22 de março de 2013

Romanzo di una Strage (2012)

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Romanzo di una Strage de Marco Tullio Giordana foi o filme escolhido para a abertura da 6ª edição da Festa do Cinema Italiano de Lisboa e que contou com a participação do realizador no cinema São Jorge.
Este filme retrata os dias pós 12 de Dezembro de 1969 quando na Piazza Fontana, em Milão, explodiu uma bomba dentro da Banca Nazionale dell'Agricoltura que vitimou 17 pessoas tendo ferido mais de 80.
Inicialmente convencidos que teria sido obra dos grupos anarcas italianos, o comissário Luigi Calabresi (Valerio Mastandrea) e os seus superiores Marcello Guida (Sergio Solli) e Antonio Allegra (Giacinto Ferro) interrogam todos os membros conhecidos dos grupos pela cidade, ligando-os ainda a vários outros atentados bombistas que haviam ocorrido em diversas cidades do país. Um desses detidos é Giuseppe Pinelli (Pierfrancesco Favino), um conhecido anarca não violento de quem pretendem retirar informações sobre os trágicos acontecimentos mas após três dias de incessantes questionários onde já se denota o desgaste físico de todos os envolvidos, Pinelli aparece morto na rua e a polícia defende que ele saltou da janela do gabinete de Calabresi que, apesar de não se encontrar no gabinete, não só é responsabilizado tanto por uma população indignada como nenhum dos seus superiores permanece oficialmente a seu lado.
Em 1972, quando a investigação aponta para grupos neo-nazis que pretendem instaurar uma ditadura em Itália mas que nunca foram devidamente investigados, Calabresi que parece ser o único interessado num correcto desfecho do acontecimento é morto a 17 de Maio perto da sua casa.
Um sempre atento e preocupado com a História recente italiana tal como podemos verificar pela sua filmografia que envolve títulos como A Melhor Juventude (La Meglio Gioventù) ou Sangue de Guerra (Sanguepazzo), Marco Tullio Giordana escreveu o argumento deste filme em parceria com Sandro Petraglia e Stefano Rulli tendo como base o livro de Paolo Cucchiarelli. Com um registo quase documental dos acontecimentos que nos permite não só conhecer como desenvolver os seus conhecimentos sobre o caso, Giordana entrega-nos também uma cuidada e pensado realização que nos deixa margem para perceber uma completa sequência do caso não deixando de lado o mais importante... o factor humano.
É certo que este tipo de filme em muitas ocasiões se perde para um aspecto que o compõem; ou se dedica muita atenção ao lado documental onde se espera um registo quase exaustivo dos factos conhecidos ou, por sua vez, é dedicada toda a atenção aos principais intervenientes e à forma como todo o acontecimento os influenciou de uma ou outra forma. Aqui, no entanto, Giordana tem a brilhante habilidade de fazer uma harmoniosa divisão dos mesmos, isto é, por um lado temos um registo fiel dos factos mas não são esquecidos aqueles que foram mais directamente implicados sem criar nenhum nível de condescendência para nenhum deles mas indicando-nos quem esteve, realmente, por detrás de tudo numa orquestração que a certo ponto nos começa a preocupar, principalmente pelo extremo em que uma brutal ocorrência dita "nacional" pode ultrapassar fronteiras sem que alguma vez se tenha pensado nisso. É esta habilidade que o seu argumento tem ao inserir-nos primeiramente no contexto social e político do país naqueles conturbados anos, e depois sem grandes juízos de valor sobre os mesmos, consegue relatar-nos os factos e a forma como eles foram à altura apresentados a todo um país que repudiou veemente a violência que se fazia sentir um pouco por todo o país, ansiosos que estavam de recuperar uma tranquilidade que se encontrava, há largos anos, desaparecida.
A dominar todo este filme temos duas interpretações de dois actores cujo ome já deveria falar por si só e que representam o melhor que Itália (e o mundo) podem ter. Valerio Mastandrea e Pierfrancesco Favino controlam este filme com as suas sentidas, francas e fortes interpretações. Por um lado temos um Mastandrea que, como comissário Calabresi, encarna o homem preocupado com a falta de pacificação que se faz sentir no país, principalmente se considerarmos que há altura já decorriam mais de vinte anos que a guerra tinha terminado, mas onde se continuavam a fazer sentir fortes divisões políticas e sociais que, em última análise, faziam sentir uma igualmente forte divisão em dois grandes blocos... uma direita saudosista da ditadura e uma extrema-esquerda que sentia os ecos das grandes manifestações sociais que se faziam sentir por França ou Inglaterra. No entanto, Mastandrea dá através da sua interpretação, uma ideia clara de como era a vida conturbada deste homem que vivia dividido com o decorrer dos acontecimentos e especialmente pela forma como pretendia que a sua família não fosse afectada o que, inevitavelmente, viria a acontecer.
Por outro lado temos um Pierfrancesco Favino, naquela que foi a sua quarta nomeação e segunda vitória ao Donatello de Melhor Actor Secundário da Academia Italiana de Cinema, numa interpretação que sendo em duração bastante reduzida é, no entanto, forte, determinante e, basicamente, aquela em torno da qual uma boa parte deste filme se desenrola, constituindo assim os dois actores uma dupla forte, dinâmica e por vezes com uma emotividade contida que, no entanto, transparece pela determinação dos seus olhares.
De destacar ainda o trabalho de fotografia de Roberto Forza também nomeado ao Donatello que incide todos os focos de luz e cor nos exactos momentos aos quais devemos dedicar a nossa atenção e a caracterização de Ferdinando Merolla e Enrico Iacoponi que nos integram imediatamente na nos anos 60 / 70 do século passado, bem como a reconstituição de toda uma conturbada época política e social em Itália e que transformaram este num dos maiores e mais polémicos filmes italianos do último ano assim como numa antecipada e cheia cerimónia de abertura a noite passada em Lisboa que teve ainda os esclarecimentos de um realizador que é ele próprio uma aula viva da História de Itália, transmitindo os seus conhecimentos de forma a que o próprio espectador não só se insira no momento como questione muitos dos factos que, não tendo ficado abertos à livre interpretação de cada um ficaram, no entanto, por esclarecer quanto aos respectivos autores.
Romanzo di una Strage é assim um filme desafiante, bruto pela irracionalidade de uma época que pretendia desesperadamente encontrar um culpado sem querer saber se era o certo, e principalmente pelas injustiças e atropelos que a lei comete contra si própria pois, tal como disse Giordana, "o problema não é necessariamente a lei mas sim aqueles que por vezes a operam". Existe assim a urgência de perceber que são duas questões bem distintas, tanto na altura como obviamente nos nossos dias..
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9 / 10
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